Capítulo 11: Minha marca ao mundo
Dia 15, Osterah.
Graças a Sornenm, posso enfim consumir a carne fresca de soldados, e ainda sem ser perturbada. Isso sim é sangue de qualidade. Já posso sentir meus músculos crescerem a cada dia. A minha força está voltando. O motivo para tudo isso é que acabaram os experimentos de laboratório. Algumas semanas atrás, fizeram testes estatísticos, analisando nossas habilidades físicas, mentais e morfológicas. Desde então, estamos lutando na arena. Ela fica no meio do Coliseu, e, quando a vi pela primeira vez… Nossa, que lugar imenso!
Acima dos muros, sentavam-se centenas de pessoas para nos assistir lutando contra soldados armados. Espadas, maças, arcos, balestras, lanças, machados… Podem vir como quiser! Tanto os próprios cidadãos de Dealina quanto os forasteiros vêm para presenciar as lutas mais sangrentas e brutais de toda a região de Draffey. Finalmente, entendi o propósito do coliseu. Ubran se aproveita das nossas capacidades adaptativas para modificar nossos corpos e torná-los mais fortes. Aqueles que sobrevivem aos experimentos são usados como ferramentas de entretenimento na arena. Quanto mais entretermos os espectadores, mais bonificações ganhamos, seja uma cama mais confortável ou uma comida mais deliciosa. Passei a respeitá-lo, apesar de toda a dor que trouxe para as nossas vidas. A arena é simplesmente incrível! Sinto como se ela fosse um presente depois de todo esse tormento. Ser aclamada pelo povo após cada vitória triunfante é um sentimento que não tem preço. Ubran deve ganhar rios de dinheiro com isso.
Embora possa parecer repetitivo, é muito mais gratificante viver lutando do que ser humilhada naquele chiqueiro de Nounhill. Nossos adversários podem ser prisioneiros, desertores ou qualquer lutador que queira apostar sua vida em troca de dinheiro… Esses últimos nos subestimam. É raro algum de nós ser morto em combate, mas acontece. Às vezes, lutamos contra criaturas e, sinceramente, essas são as piores batalhas. Geralmente, só precisamos sobreviver por um tempo limite. Aliás, não seria nada lucrativo para Ubran perder seus escravos.
Se não fossem os contratos, poderíamos matar esses guardas em meio segundo e fugir daqui. Seria tão fácil quanto esmagar formigas.
Ontem, Rounn me disse algo que me deixou pensativa. Nós dois possuímos ciclos de loucura, porém controversos. Quanto mais sinto fome, mais perco a minha sanidade. Já ele, quanto mais come, mais o parasita se desenvolve, fazendo com que ele perca cada vez mais a sanidade. E as suas orações… Todos os dias, ele suplica para esse tal de Hornnek (principalmente antes de expelir o parasita), uma divindade tão falsa quanto a dos ewulianos. Mas não irei comentar nada sobre isso; prefiro evitar intrigas com ele. Eu teria pena de Sornenm se ele enchesse o coitado de orações a serem atendidas.
Oh, quase ia me esquecendo. Estávamos sentados no chão do quarto, um de frente para o outro, jogando Gargântua. (Você caça um Gargantuoso e o alimenta com comidas aleatórias. Em quem ele cuspir primeiro, perde.) É uma criatura pequena, e sua dieta é super variada, nunca se sabe qual comida ele vai rejeitar.
— Rounn, sabe qual o dia de hoje?
— Dia quinze, eu suponho — disse em um tom melancólico.
Ele estava naqueles dias. Quando o conheci, ele sempre demonstrava um puro sentimento de desespero quanto mais o parasita se desenvolvia. Isso parece estar, aos poucos, sendo substituído por uma depressão momentânea… E também algum tipo de paranoia.
— De qual estação?
— De Infreus. Com certeza, eu vou perder esse jogo. Nunca ganhei nada na vida.
— O quê? Mas isso não existe! — Coloquei uma beterraba em sua boca, e ele aceitou.
— Claro que existe… Ah, sim, culturas diferentes. É a estação em que as flores brotam com mais frequência. Vocês têm isso? — Pôs um limão na boca do animal.
— Osterah… Mais de 120 dias inconsciente? Fiquei em transe por duas estações inteiras! — Dei carne de javali para a criatura comer, mas ele rejeitou, cuspindo em mim logo em seguida. — Merda! Como alguém pode não gostar de carne de javali?
Meu corpo começou a enrijecer até ficar completamente paralisado, exceto pela cabeça. Sua saliva possuía uma neurotoxina paralisante. A criatura abriu a boca com seus dentes afiados para me devorar. Ele tinha apenas um terço do meu tamanho, mas, mesmo assim, era aterrorizante.
— Olha só, eu ganhei… Não fiz mais que a minha obrigação.
— Rounn, não deixa ele me morder! — O animal se aproximava vagarosamente. — Rounn!
— Relaxa… — Pegou a criatura no colo, acariciando sua cabeça.
Passar 15 minutos naquela posição… ridículo. Uma mulher apareceu em frente aos nossos aposentos e nos chamou para a arena. Ela segurava uma prancheta de madeira, anotando os nomes dos participantes verificados, o horário das lutas e quem seria o adversário.
— Koran, seu duelo começa daqui a dez minutos. Desça e vá se preparar.
— Koran? — disse Rounn.
— Na verdade, é isso mesmo, hehe. Não mencionei meu verdadeiro nome para Vann, então ele disse que me chamaria de Koran.
— Isso foi… um pouco inusitado.
— A Lau… digo, a Koran não vai poder lutar agora. Ela está paralisada pela saliva do Gargantuoso. Podemos trocar de turno? — sussurrou muito baixo, como se nem tivesse vontade de falar.
— O quê?
— Ele perguntou se podemos trocar de turno.
— Esses idiotas sempre aprontam alguma coisa… Tudo bem, uma só vez não deve ter problema. Siga-me. — A inspetora saiu para o corredor.
Estávamos atrás das grades de ferro da arena junto com outros competidores. Rounn se preparava para a luta. Por ser considerado um lutador da categoria A, ele tinha o direito de escolher uma arma de sua preferência. Havia um arsenal imenso de diferentes ferramentas mortíferas à sua espera. Dava para sentir a empolgação daquelas lâminas, loucas para cortar o inimigo. Ele esticou a mão para pegar uma, e…
— Um escudo?
— Não me julgue. — Seus olhos quase lacrimejavam. Era melhor manter distância…
Era um escudo redondo de prata com símbolos delicados e bem detalhados. A maior parte das armas presentes no coliseu aparentava ter sido saqueada em guerras. O portão foi se abrindo lentamente com Rounn em sua frente. Sentada no chão, ainda paralisada, tornei-me alvo de piada dos outros competidores.
— Quando eu voltar ao normal, vou chutar a cara de vocês!
Um jovem de cabelos escuros e olheiras marcantes se prontificou a um pronunciamento.
— Ela é de categoria S, seus imbecis. Comparados à força dela, vocês não passam de vermes… — Finalmente, um pouco de respeito. — Mas seu intelecto é tão avançado quanto o de um nerblin.
“Argh, desgraçado, ele me comparou a um nerblin?” Rangei os dentes.
— Rerdram, cale a sua boca! — Rounn virou-se para trás.
Sua voz já não estava mais trêmula e fraca. Foi imponente o suficiente para deixar todos assustados. Seu rosto estava vermelho e em prantos. O portão enfim se abriu completamente, e ele entrou na arena. Virei-me e estirei a língua, demonstrando um sorriso de satisfação para aqueles covardes… ou melhor… vermes!
Do outro lado da arena, entraram dois guerreiros bem armados… Essa batalha devia ser minha. Rounn estava no centro da arena, sem armadura, com apenas um escudo nas mãos, como um mero adorno para evitar uma morte rápida. O calor do sol abrasador não o incomodava, e o suor que escorria pelo rosto parecia apenas mais uma camada de sua desolação interna. Tudo o que ele precisava era de tempo.
Ajoelhou-se no solo, fitando o chão com um olhar vazio. Suas mãos sujas agarraram uma porção de terra dura e seca. Com um suspiro pesado, levou o punhado à boca, mastigando lentamente, sentindo a aspereza do solo que nutria a criatura dentro dele. O sabor não importava. Era sua única carta na manga.
Enquanto a terra caía de sua boca, ele suplicava palavras baixas, em forma de poema.
“Pálido cavalheiro errante, traído por teus semelhantes, por aqueles que trazem o presságio de teu destino previamente forjado. As vozes exigiam o que não desejavas ser…”
As palavras eram um veneno para si, mas ele as proferia sem piedade. Cada verso servia para que seu sofrimento não cessasse. Naquele estado, ele não se importava com a morte nem com o resultado da batalha. Não havia nada mais importante para ele do que proferir aquele poema, que devorava sua sanidade enquanto o pleófago se alimentava de sua melancolia.
O som dos passos dos guerreiros se aproximava cada vez mais. Dois homens de armadura estavam quase lá. Um empunhava uma espada longa, e o outro, um machado de lâmina dupla. Estavam prontos para o combate. Mas Rounn apenas desviava e levantava o escudo com um gesto preguiçoso. Tudo o que precisava era se defender e esperar.
Os guerreiros atacaram com força. O portador da espada golpeou primeiro, cortando o ar com um movimento fluido. Rounn levantou o escudo, bloqueando o golpe, mas o impacto fez sua mão tremer. O machado veio logo em seguida, e a lâmina arranhou o seu braço esquerdo, rasgando a pele e cortando seu músculo. Ele gemeu, mas não parou. O parasita dentro dele não tinha tempo para dor. Precisava continuar.
“A máscara é teu refúgio contra o sofrimento iminente. Mantenho os olhos fixos em um horizonte que nunca alcançarei. Meus sonhos foram destruídos, maculados e dissolvidos…”
A batalha continuava. Defendendo-se com o escudo, Rounn sentia seus braços sangrarem intensamente. Ele estava perdendo, mas não se importava. O parasita precisava de mais. Mais dor, mais terra, mais vida para consumir.
“Sou a ferramenta quebrada e inutilizada da família…”
Tudo parecia estar sob controle, mas um dos inimigos o chutou violentamente, interrompendo sua meditação. Mal se mantinha de pé. O fim estava próximo… Mas eu não podia permitir. Pensei em toda a minha vida miserável e em todo o ódio que já senti. Então, gritei como se libertasse uma verdade profunda enterrada no meu coração:
— Rounn, eu te odeio!
Não sei o que se passou em sua mente, mas ele caiu como um boneco de pano. O homem do machado estava prestes a matá-lo, mas Rounn esbravejou, rompendo o barulho da arena.
— Extermine-os!
Lesionou os lábios com os dedos, forçando-os a abrir mais.
A criatura dentro dele se moveu rapidamente pelo esôfago, empurrando a pele do peito. As entranhas negras emergiram, ocupando a boca e esmagando a língua. Se havia restos de comida entre os dentes… duvido que não tenham saído. O pleófago saltou para fora: uma figura retorcida, grotesca. Um parasita que se alimentava de sua essência e agora ansiava por mais. Ele se arrastou como um pesadelo em direção aos guerreiros.
O parasita os atacou com ferocidade. Penetrou em seus corpos, rasgando-os de dentro para fora e espalhando sangue pelo gramado e pelas vestes de Rounn. Após alguns metros, tentando buscar outra vítima na arquibancada, o pleófago caiu exausto. Diante dos corpos mutilados, Rounn se ajoelhou.
O público aplaudiu entusiasmado. Não havia morte tão violenta fazia dias. Era disso que o povo de Dealina gostava: ver o sofrimento alheio. Rounn estava exausto. Ele me disse que aquilo não era uma vitória gloriosa, mas estava feliz por ter sobrevivido.
De repente, uma espada perdida cortou o rosto de Rounn. A lâmina abriu uma cicatriz profunda do rosto ao pescoço. Ele nem se moveu. Aquela dor não era nada comparada a tudo o que já havia passado.
“Eis o meu castigo por fugir dos seus moldes. A marca que o mundo me deu… Mas não importa. Eu os marcarei de volta…”
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