Capítulo 12: Um plácido jardim
Dia 21, Osterah.
Eu vi o antebraço esquerdo de Rounn escurecer antes mesmo que ele percebesse. O corte do machado foi preciso… mas ele era só mais uma marionete, quem se importaria com sua saúde em uma realidade como a nossa? A infecção estava se espalhando. Quando o sugeri ir para a enfermaria (uma palavra bonita para um lugar onde mais se morre do que se cura), parecia nem me escutar.
— Rounn!
Ele estava sentado de costas para a parede. Sua mão repousava no joelho, perceptivelmente trêmula. Seu braço… mal o movia. O enfaixamento não havia funcionado. Mas já era óbvio, a ferida foi profunda demais. Ele sabia, e mesmo assim, optou por ignorar essa sentença de morte.
— A enfermaria não deve ser da mesma forma que os laboratórios. Você não vai passar novamente pelo mesmo, eu prometo.
Sua visão estava fixa, suspensa no ar. Seu olhar não era de paz. Apesar de imóvel, seu coração batia descompassadamente por dentro. Pude notar isso em seu pulso ao segurar sua mão. Rounn era um homem preso ao passado. Vivendo as mesmas angústias, em um tempo em que as feridas não saravam e seus monstros eram tão reais quanto um dia já foram. Ele precisa esquecê-los, como eu também preciso…
— Rounn… por favor… — Eu chorava em sua frente, segurando sua mão sobre minha bochecha.
As lágrimas caíam em sua pele, escorrendo pelos seus machucados. Eu estava… chorando? Ele se levantou como se estivesse em uma trincheira na guerra. Pedi para que se apoiasse em mim. O movimento era brusco demais para o que restava de força nele. O corpo inclinou-se como se um peso invisível puxasse suas costas para baixo, mas ele não tropeçou. O braço necrosado balançava ao lado do corpo, sem vida. Ele o ignorava, como se não fizesse parte dele.
Resolvi levá-lo em meu colo. Rounn parecia… menor. Como uma criança indefesa. E isso era uma afronta. Eu reconhecia sua força, não importava se tivesse vindo de um laboratório ou não. Ele aguentou tudo isso como um guerreiro. Eu não permito que ele continue nesse estado.
Na enfermaria, retiraram as faixas… a ferida era tão negra quanto o parasita que carregava consigo. O enfermeiro jogou álcool por cima do antebraço e mandou beber o resto.
— Pegue, beba tudo de uma só vez.
Quando terminou, pôs um pano em sua boca. Ele não gritou. Nenhuma súplica. Nenhum pedido. Apenas ficou lá, imóvel como um velho tronco retorcido, enquanto o curandeiro ajustava a lâmina. “Infelizmente, será necessário amputar o membro”, disse ele, sem cerimônia. Como se cortar um braço fosse tão comum quanto podar uma videira.
Seus olhos estavam fundos. Não era medo. Não, não era mesmo. Mas também não era coragem. Ele simplesmente desistiu de lutar contra essa dor. Podia pressentir o ódio estampado em sua face… eram os mesmos olhos que eu tinha. Um sentimento de vingança contra as injustiças vividas.
A lâmina repartia o osso, e o som… ah, o som eu nunca vou esquecer. Um arrastar seco e áspero, como se estivesse sendo esfolado vivo. A serragem da carne, o estalar de juntas, e o cheiro metálico e acre de sangue velho que impregnava o ar… Contra meus inimigos, eram sensações prazerosas, mas agora, assistir Rounn passar por isso era angustiante.
Ele sequer piscou. Não havia alívio. Só silêncio. O antebraço caiu com um baque que ecoou mais alto que qualquer aplauso da arena. O curandeiro tratou do que restara do membro. Só sobrava uma parte de seu cotovelo. Jogou um pouco de álcool e pediu para Rounn fechar os olhos. Ele nem sequer obedeceu.
— Tudo bem então.
Puxou um bastão de ferro esquentado por brasas e utilizou-o para cauterizar o que restava do braço aberto. Foi a única etapa em que Rounn gemeu de dor. Depois, trouxeram a prótese. Madeira, couro, fios e pregos. Nada delicado, nada digno. O homem amarrou-a no toco do braço dele com suas próprias mãos. Ligou suas articulações aos fios da prótese, e quando terminou, pediu para testá-la. Ouvi o estalo da madeira como um osso falso tentando se mover.
Ele levantou o braço novo, olhando para aquela coisa que agora fazia parte dele, mas que nunca seria dele. Fechou o punho para testar. Os dedos se moviam com certa rigidez, quase emperrados.
— Obrigado, enfermeiro.
Apenas o agradeceu, mal olhou no rosto do homem que acabara de salvar sua vida. Ele só queria sair logo daquele lugar que lhe trazia memórias tão desconfortantes.
— Rounn, para onde está indo? — O segui, chamando-o de volta.
— Para o Bosque. Preciso respirar um pouco de ar fresco. — Sua voz estava calma como um zéfiro matinal.
— Você precisa ficar de repouso.
Rounn me ignorou e continuou de cabeça erguida para seu destino. O curandeiro mal se importou; o seu trabalho ali já estava feito.
— Me espera! — Andei alguns passos apressados para alcançá-lo.
À poucos metros do coliseu, residia uma floresta de bétulas e áceres, com grama baixa e riachos límpidos. Rounn caminhava à frente, o peso dos seus passos enterravam suas botas na trilha de terra úmida. O chuvisco da primavera deixava aquela tarde mais bela. O cheiro da floresta era fresco e pungente. Musgo, pinho e folhas eram pisoteados pelos meus pés nus. A luz do sol se filtrava pelas copas das árvores em raios dourados e quebrados. Ele sempre vinha aqui quando o mundo ficava insuportável. Entre os troncos e o silêncio cheio de vida, ele podia ser apenas ele mesmo, longe dos olhares e dos julgamentos que o perseguiam desde criança.
— A floresta não espera nada de mim — ele disse uma vez.
Hoje, ele não falava. Caminhava com sua outra mão ainda humana tocando as cascas das árvores, enquanto a prótese de madeira descansava ao lado do corpo. Seguimos em silêncio até o som de um riacho nos alcançar. Logo depois, a trilha se abriu para revelar algo que não esperávamos, havia um pequeno chalé escondido entre os pinheiros. A casa parecia ter crescido da terra, com paredes de pedra cobertas de trepadeiras floridas e um telhado inclinado, onde galhos secos e folhas caídas haviam se acumulado. Perto da porta, vasos de barro sustentavam plantas de ervas que exalavam um aroma forte e doce.
Antes que eu pudesse falar, a porta rangeu. Uma velha senhora saiu, com mãos nodosas e um rubor de alegria em sua face. O avental estava sujo de terra, e uma trança de cabelos brancos caía pelo ombro.
— Ela nos observou por um momento longo demais.
— Vagando longe de casa, não é, rapaz?
Rounn não respondeu de imediato. Seus olhos, antes cheios de desconfiança, se detiveram nas plantas e nas ervas secando penduradas sob o beiral. Havia algo naquele lugar. Algo sem pressa, sem pretensões. Um mundo pequeno e simples, onde ele não era visto como monstro ou guerreiro. Apenas alguém que existia.
— É uma floresta. Ninguém é dono dela. — Disse suavemente.
Ela riu, e o som foi um estalo caloroso para o coração de Rounn.
— A floresta tem seus próprios donos. Eu só apenas uma hóspede. Entre, vai querer um copo d’água? Ou talvez um chá?
Ele olhou para mim, se perguntando se aquilo era seguro. Vi a dúvida de algo tão simples percorrer em seus olhos, um resquício do que o mundo tinha feito com ele. Mas depois, sem outra palavra, deu um passo à frente e seguiu a senhora.
Dentro do chalé, o calor do forno e o cheiro de pão fresco nos acolheram. A velha senhora se chamava Durval, e enquanto ela mexia com plantas e raízes, Rounn a observava com uma calma que eu não via desde… na verdade, eu nunca o vi assim. Após uma curta conversa, o anoitecer me chamou para voltar aos meus aposentos. Mas ele dispensou esse chamado.
— Deixe-me ficar aqui, pelo menos esta noite.
Uma noite sem o Rounn… isso vai ser estranho. Mas, se era o que o seu coração suplicava… eu respeitei o seu desejo.
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