Capítulo 13: Uma Flor, um sonho e um monstro
Talvez eu tenha sido rude com a Laurient ao deixá-la partir sozinha. Ela pôde ter pensado que eu não prezo por sua companhia. Devia tê-la escutado antes. Uma noite sem a Laurient… Mas eu precisava de um lugar para descansar a mente. Eu só queria esquecer tudo e viver em paz. Assistir ao belo céu estrelado, deitado na clareira desta floresta. Quando foi a última vez que parei para apreciar o frescor da brisa noturna? É tão aconchegante. Poder voltar para casa pela trilha de um córrego, temendo o canto das corujas noturnas e o uivo dos canídeos, mas sabendo que, no fim daquele caminho, haverá alguém esperando além de um jardim de lilases, orquídeas e tulipas, em um chalé confortável. Sem remorsos, discussões, preocupações ou deveres. Eu só queria esquecer de todas aquelas merdas… Argh.
As chamas crepitavam dentro da lareira de tijolos vermelhos. Eu amava aquela coloração amarelo-alaranjada que o fogo deixava no ambiente. Combinava com o caloroso abraço que ele produzia diante do frio da noite. O cheiro de ervas secas, um amálgama de aromas terrosos e mentolados, pairava no ar, tentando acalmar meus sentidos em constante alerta. Descanse, Rounn, pelo menos uma vez… Aquela figura maldosa não está mais entre nós.
Cortei algumas fatias de pão e servi os pratos. Sentei-me à mesa de madeira rústica. A prótese pesava sobre a mesa como um lembrete constante daquela tarde fatídica no coliseu. A senhora Durval esquentava a água para preparar um chá. Triturava as folhas de hortelã em um pilão com certa destreza, misturando-as com erva-doce. Eu observava constantemente o braço falso, apoiando a mão direita nele, como se quisesse arrancá-lo.
— Não vai conseguir dormir com essa expressão no rosto, mocinho — ela comentou. Sua voz era tão suave quanto o murmúrio de uma nascente.
— Esse não é o tipo de cansaço que o sono resolve.
— A dor está piorando? — Era uma alma cheia de compaixão.
— Não é a dor — respondi, hesitando. — É o peso… de lembrar e de não poder esquecer.
Durval assentiu, silenciosa. Depois, pegou uma pequena bolsa de couro e retirou um recipiente. — Esta planta ajuda a clarear a mente e aliviar a tensão do corpo. Não cura o passado, mas torna o presente mais suportável.
Observei-a enquanto trabalhava. A imagem daquela noite voltou à minha mente com dolorosa nitidez. A tentativa, a falha… a mácula que me transformou em um monstro. Mas, daquela vez, não era culpa minha.
— Não é o presente que me atormenta — murmurei.
Este conteúdo está disponível no Illusia. Se estiver lendo em outro lugar, acesse https://illusia.com.br/ para uma melhor qualidade e maior velocidade.
Ela sorriu, um sorriso sábio e um pouco triste. — A vida é mais simples do que fazemos parecer. A maioria das preocupações é como folhas secas levadas pela ventania do tempo — sentou-se ao meu lado. — Ninguém escolhe onde nasce nem como é criado. Mas o que fazemos depois… isso é o que importa. E nem sempre a vida precisa ter batalhas; às vezes, tomar um pouco de chá em frente à lareira resolve.
Durval inclinou-se para frente. Seus olhos brilhavam… ou talvez fosse eu quem apreciava suas palavras e sua forma humilde de viver. Ela era o tipo de pessoa que eu desejava ser.
— O que define um homem não são os golpes que ele leva, mas como se levanta depois de cada um.
— Eu vou tentar… pensar mais sobre isso. Obrigado, senhora Durval.
— Ora, não precisa me agradecer com palavras. Amanhã você irá regar o meu jardim.
— É sério? Nossa, que cativante. Eu adoro essas tarefas ordinárias. Regar um jardim… deve ser uma experiência encantadora. Estar presente entre a natureza já é maravilhoso…
— Você é um rapaz excîntrico, Rounn. Bem, vamos comer.
Ao fim daquele dia, a exaustão física e mental pesava sobre meu corpo como uma âncora. A noite havia sido longa, mas maravilhosa. Fora excepcionalmente tranquila, exatamente como eu desejava.
— Durma em minha cama. Visita minha não dorme no desconforto.
— Senhora Durval, não será necessário, eu sou jovem e…
Este conteúdo está disponível no Illusia. Se estiver lendo em outro lugar, acesse https://illusia.com.br/ para uma melhor qualidade e maior velocidade.
— Está me chamando de velha? Ora, rapazinho, no meu tempo… eu… — Ela se calou, ficando desmotivada por algum motivo. — É… ora, eu realmente estou ficando velha. Parece que minhas aventuras ocorreram ontem. A memória é algo engraçado.
— Por favor, não quero atrapalhá-la. Já estou lhe perturbando muito…
— Hã? Meu rapaz, não tenho uma companhia tão boa quanto a sua há anos. Mas, se quer dormir no sofá, tudo bem. Tenha bons sonhos — levantou a voz.
— Boa noite, senhora Durval.
Optei pelo sofá da sala, onde a lareira ainda emanava um calor tênue. Ela estava certa. Esses sentimentos antigos, que repercutiam em minha mente, me impediam de ter um sono tranquilo. Principalmente agora, por causa da perda do meu braço… uma necessidade de sempre culpar alguém, de me sentir derrotado, pisoteado, injustiçado… O sono demorou para chegar, mas dormi a noite inteira feito pedra. Enrolei-me em uma velha manta de lã e adormeci sob a luz cintilante das brasas.
Os raios de sol que se infiltravam pelas frestas das cortinas me acordaram. A casa estava silenciosa, exceto pelo cantarolar dos pássaros e pelo crepitar das brasas que ainda se apagavam lentamente. Levantei-me e caminhei até a cozinha, onde o aroma de uma torta recém-assada me cativou.
Durval já estava sentada à mesa, saboreando uma xícara de chá. Ao me ver, sorriu e fez um gesto para que me sentasse.
— Dormiu bem?
Apenas assenti com a cabeça, sentindo-me um pouco constrangido por ter dormido no sofá.
Após o lanche, caminhei até o jardim, onde as plantas precisavam de cuidados. Enquanto regava as flores, meus pensamentos vagavam. Eram as mesmas merdas de sempre. Por mais que eu adorasse aquele lugar, não era apenas de um canto calmo e acolhedor que eu precisava.
Este conteúdo está disponível no Illusia. Se estiver lendo em outro lugar, acesse https://illusia.com.br/ para uma melhor qualidade e maior velocidade.
De repente, um grito estridente rasgou o silêncio matinal. Virei-me, alerta. O som vinha da direção da floresta. Deixando o regador de lado, parti em direção à fonte do som. Meus pés levantavam folhas secas e galhos quebrados enquanto eu corria. O som ficava mais audível a cada passo, até que me deparei com a cena. Era um Gargantuoso adulto. Ele mordia as pernas da garota, mas com cuidado, evitando as roupas. Pelo visto, elas não faziam parte de sua dieta.
A menina estava literalmente paralisada dos pés ao torso devido à saliva do animal. A senhora Durval chegou em poucos instantes, mantendo-se firme apesar da cena grotesca para olhos inocentes. Foi um julgamento imprudente. Ela carregava uma espada… Isso me surpreendeu. Partiu para cima da criatura, tentando confrontá-la com sua lâmina. Apesar de suas habilidades, uma simples investida do Gargantuoso a jogou ao chão, reclamando das costas. Seu corpo estava frágil e envelhecido.
Fui me aproximar para pegar a espada e acabar com aquele tormento… mas a mácula brilhou e apertou meu braço. Afastei-me instintivamente. Droga! Três quilômetros era a distância máxima que poderíamos nos afastar do coliseu. A menina me olhou, implorando por ajuda, pensando que eu estava paralisado por medo, por covardia… mas não.
— Não… eu… eu não posso chegar mais perto.
Ela nem devia estar ouvindo. Apenas gritava, em pânico. Merda… Só tenho uma coisa para tentar. Que se dane. A terra passava pela minha boca, penetrando em minhas entranhas, alimentando o monstro que havia em mim.
— Tão belo foi o luar daquela noite… Tão exuberante é o encanto dessas flores. Seu rosto me irradiou, com seu calor me abraçou. Com toda sua serenidade, você me salvou. Deu-me coragem para enfrentar meus temores e aceitar o tormento do meu passado doloroso. Luto pela vida de meus amados. Que toda essa ternura encontre um caminho nesta súplica. Arraste essa escuridão para fora daqui, sem causar sofrimento a este belo jardim.
Não era a hora certa, mas eu forcei a criatura a sair.
— Salve a garota!
Doeu… Muito mais do que o habitual. Mas não importa. É por eles que eu luto! O pleófago estava mais fraco que o usual, mas serviria. Ele se moveu pela grama, tomando cuidado com as flores mais delicadas — eu sabia! — e entrou pelo ouvido do Gargantuoso de uma só vez. A criatura grunhiu, soltando a perna da menina em seguida. Cambaleou, emitindo sons de dor, e se afastou. Seu cérebro deveria estar sendo destroçado por dentro. Interessante… O comportamento do pleófago muda conforme meus sentimentos e desejos. Já estava suspeitando disso há alguns dias.
— AAHH! — A jovem gritou de pavor ao me olhar. Tudo bem, não é todo dia que se vê um parasita grotesco sair da boca de um homem.
Este conteúdo está disponível no Illusia. Se estiver lendo em outro lugar, acesse https://illusia.com.br/ para uma melhor qualidade e maior velocidade.
— Durval, pegue a garota e corra para longe da criatura!
A perna esquerda da menina estava mutilada. O osso exposto escorria sangue e pingava saliva. Levamo-la às pressas para algum curandeiro em Dealina. Provavelmente, usaria uma prótese… assim como eu. Sentado, de cabeça baixa, em um banco ao lado, esperando por notícias, a sombra de alguém surgiu sobre meus pés. Era Durval… Ela devia pensar que eu era uma aberração.
— M… me perdoe — gaguejei.
— Pare de pedir tantas desculpas. Perdoar pelo quê? Você salvou uma vida, orgulhe-se disso.
— Mas…
— Por acaso você escolheu ser assim?
— Não, mas… — Ela não me deixou falar.
— Então não haja como se a culpa fosse sua — sentou-se ao meu lado. — O que eu te disse ontem?
— Para sermos o que desejamos ser, e não o que fizeram de nós. Mas essa escuridão ainda reside em mim. Não dá para ignorar.
— A questão não é essa, Rounn. A primeira coisa que esperam de um monstro é que ele aja como um. E o que você fez hoje foi uma escolha sua, não do mal que habita em você. Além disso, já vi coisas muito piores neste mundo. Participei de guerras, matei pessoas… São coisas das quais não me orgulho. Você só é mal se estiver ciente daquilo que está prestes a cometer.
Este conteúdo está disponível no Illusia. Se estiver lendo em outro lugar, acesse https://illusia.com.br/ para uma melhor qualidade e maior velocidade.
— Senhora Durval… — Uma lágrima escorreu pelo meu olho direito.
— Vamos para casa. Lá você me conta tudinho enquanto tomamos um chá. E vê se termina de regar minhas plantas!
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.