Capítulo 15: A arte da lâmina
Os portões da arena se abriram pela primeira vez naquele dia. Ela caminhava como se tivesse sido derrotada, como se atravessá-los na saída fosse mais difícil do que ao entrar. Suas mãos estavam menos ensanguentadas do que costumavam ficar ao fim de cada batalha. E seus lábios estavam secos; o vermelho tênue que apresentavam era de sua própria cor natural.
— Essa foi rápida! O que houve, Laurient? As vítimas de hoje não eram tão divertidas para brincar? — disse Galand.
— Não vem encher o saco. — Sua voz saiu macia como uma nuvem, mas tempestuosa por dentro. — Rounn, vamos dar uma caminhada!
— Assim tão depressa?
Puxou meu braço para fora daquele lugar asqueroso, cheio daquela gente ridícula. De qualquer forma, era melhor não estar ali. Ela foi me deixando para trás naquele corredor de pedra. Seu olhar estava focado nas árvores lá fora. Tomar um ar… Mas não era isso que ela queria. Gritou do lado de fora do Coliseu, espantando os pássaros por perto. Algo naquela batalha a havia estressado.
— Por que está tão apressada? Laurient, se aconteceu algo, você pode me contar.
— Argh. — Apertou a cabeça. — Eu não consigo! — Andou em círculos.
— Não consegue…?
— Devorá-los! Esmagá-los entre os dentes; roer seus ossos, beber de seu sangue… Por que parece tão difícil? Tem algo martelando em minha cabeça, e isso está fazendo ela doer, Rounn.
— Considerando que você não é de pensar muito, hehe.
— O que está insinuando?
— Nada… Apenas que não se importa em saber o que se passa em seus pensamentos.
— E você pensa demais, né? Ou pelo visto, não… — Cutucou meu peito e caminhou para o lado oposto.
— Ei, para onde está indo? — Segui seus passos apressados, mas ela parecia estar ficando chateada. — Pelo menos tente. Pare e escute o que sua mente está lhe dizendo.
— Você foi participar daquele jogo besta! Aquela luta deveria ser minha. — Vociferou com convicção, mas logo depois seu rosto se avermelhou.
— Eu ainda não estou entendendo, Laurient. Mas está dizendo que a culpa é minha?
Olhou para baixo, escondendo a reação.
— Só me deixa em paz! — Pareceu ter ido embora chorando.
Fiquei inerte e respirei fundo. O que será que deu nela? Se ela não consegue devorar mais, então… não usará a morfose! Ela pode perder o controle quando ficar com fome, e não vai ser nada legal. É melhor deixá-la sozinha para organizar os pensamentos. Eu precisei de espaço naquele dia; ela pode estar querendo o mesmo. Semana após semana, minha única responsabilidade era lutar na arena e sobreviver. Agora, preciso me preocupar com os problemas de Laurient. E os meus também… A mente é um mistério.
Mais uma vez me encontro passeando por aquele jardim selvagem. É a melhor parte do meu dia: solitário e tranquilo. As pétalas das túlipas se tornam tão formosas nesta estação. Irei levar um buquê de cada flor para a senhora Durval; ela vai adorar. Só espero que não coloque chá na água das plantas.
Duas batidas na porta, como de costume. Quando a mácula se dissipar e ficarmos livres, irei morar numa casa pequena e aconchegante como essa.
— Senhora Durval? — Segurava o buquê com a mão direita, enquanto a prótese dava mais uma batida na porta.
— A quem você está chamando? — Ela apareceu de súbito atrás de mim, cutucando meu ombro. Me causou um tremelique. — Ora, são para mim? Obrigada, querido.
— Como está o seu dia, senhora Durval?
— Excelente, como em todas as manhãs.
— Hehe, ainda nem sei por que pergunto…
— E cadê a sua amiguinha?
— Ela… está passando por uns problemas. Você sabe, ela é uma antropófaga, então…
— Vá direto ao assunto, menino!
— Ela falou que começou a ter receio de comer carne humana, mas não entendi bem o motivo. Parece haver algo a incomodando.
— Que coisa maravilhosa! Ela está, enfim, segurando as rédeas. Entrou alguma noção dentro daquela cachola.
— Mas, se ela não comer, uma hora ou outra irá perder o controle…
— Ou vai machucar a si mesma. Sim, provavelmente é isso que ela fará. — Girou a chave na fechadura.
— E eu acho que tenho alguma culpa nisso. Mas realmente não entendi o que posso ter feito. Durante a caminhada, revisei todas as palavras que disse a ela, meus atos, minhas escolhas… e nada condiz. — Parei para pensar enquanto minha cabeça fervia. — Talvez eu devesse não usar minhas habilidades!
— Ficou louco? Vai ser morto em instantes contra qualquer guerreiro do Coliseu.
— A menos que… — Cocei o queixo.
A Sra. Durval fitava fixamente minha boca, esperando que não saísse nenhuma besteira dela.
— … Me ensine a arte da lâmina. — Ajoelhei-me perante a grandiosa guerreira que ela já foi um dia.
— Como?
— Me ensine a manusear a espada. Assim, poderei lutar sem utilizar a morfose. Se a Laurient não vai utilizá-la, eu também não irei.
A face da Sra. Durval pareceu séria; ela entendeu que eu não estava ali para brincadeiras. Aposto que, em seu espírito, ainda vive essa chama. Uma chama que a atrai para o furor da batalha.
— Pois então… Irei lhe ensinar todas as técnicas que essa mente velha ainda lembra.
— Eu agradeço. Isso significa muito para mim.
— Mas antes, uma pausa para o chá. — Eu já devia ter previsto.
No fim da tarde, o calor do dia começava a ceder, deixando o ar morno e um pouco mais leve, enquanto a brisa fresca fazia as folhas nas árvores sussurrarem em um ritmo calmo, como se bocejassem. A espada que a Sra. Durval entregou para mim era simples. Sem adornos, mas tão pesada quanto minha inexperiência com lâminas — pelo menos para ela.
— Já utilizou alguma espada antes?
— Só algumas vezes nas aulas de esgrima em…
— Então esqueça tudo. O ensinamento desses cretinos do império não vale nada.
Segurou a espada com as duas mãos. Seus dedos calejados ainda eram ágeis, apesar de sua força estar debilitada. Girou a lâmina no ar com uma graça que desmentia sua idade.
— Primeira lição, menino: a espada é uma extensão de seu braço. E seu braço deve ser uma extensão de sua vontade.
Agarrei o punho de couro com firmeza, mas senti a espada puxar minha mão para baixo, como se tivesse uma mente própria — uma criatura que precisava ser domada. Já estou fazendo isso com uma; não será com duas que irei falhar. A Sra. Durval observava cada movimento com seriedade.
— Você está lutando contra a espada, e isso é uma tolice. Balance-a com suavidade, como se estivesse dançando com uma parceira leal.
— Dançar? Com uma arma? — Balancei a cabeça, incrédulo, mas tentei. Movi a espada para o lado, depois para cima, sentindo o peso deslizar. A tensão em meu braço cedeu um pouco. O equilíbrio entre vontade e ação começava a se formar.
— Melhor. Agora ataque. Não com raiva, mas com convicção.
Avancei com um grito, golpeando o ar vazio à frente.
— Mais uma vez. Mais firmeza no punho, mas relaxe os ombros.
Repeti o movimento. Meus pés afundavam levemente na terra macia. Não era apenas um aprendizado de técnica; era um ato de transformação.
Na terceira hora, o sol já se erguera alto no céu, e o firmamento limpo e azul observava nossos esforços silenciosamente. Todo aquele suor grudento escorria pelo meu rosto, mas não pedi para parar. A Sra. Durval, com a paciência de quem viu muitos morrerem por descuido, corrigia cada postura, cada deslize.
— Sua base é fraca como um galho de salgueiro. Enraíze seus pés no solo. Você é uma árvore, não uma folha ao vento.
Reforcei minha postura, sentindo os calcanhares firmes contra o chão. A espada se tornava mais familiar, e o mundo ao meu redor desacelerava. Cada movimento dela fazia sentido. Mas eu já estava ficando cansado.
— Agora vamos testar sua resistência. A espada não pesa no primeiro golpe. Mas e depois do quinquagésimo? Do centésimo?
Ela colocou um galho caído na frente do meu peito e indicou que eu o cortasse em duas metades, o mais semelhante possível. Um teste de paciência e força. Os primeiros cortes foram precisos, mas, ao vigésimo golpe, meus braços tremiam, e o suor fazia o punho da espada escorregar. Eu mordia o lábio, pedindo por água.
— Que tal… uma pausa… pro chá? Hehe. — As palavras acompanhavam minha respiração irregular.
— Não! O pior que pode fazer é desistir durante uma batalha. Mas, compreendendo seu estado, vamos ao ato final do treinamento de hoje. Lute comigo!
Segurei a espada com as mãos ainda doloridas, mas determinado a dar o meu melhor. Ela não pegou uma espada verdadeira, mas um bastão de madeira. Não precisaria nem de uma arma de verdade para dar conta de mim.
Avancei, tentando um golpe lateral rápido. Ela desviou com um giro simples, o bastão ricocheteando contra o meu pulso com um golpe seco. A dor percorreu meu braço.
— Muito lento. De novo.
Tentei novamente uma estocada direta. Ela desviou para o lado com uma facilidade irritante e acertou meu tornozelo, me fazendo tropeçar.
— Você pensa demais antes de agir. No campo de batalha, pensar é o que mata.
Frustrado, avancei com uma série de golpes impulsivos. Ela bloqueou todos com movimentos que lembravam uma dança, enquanto eu apenas me debatia como um peixe fora d’água. O bastão dela bateu no meu ombro, nas costelas e, finalmente, nas costas.
— Basta! — gritei, ofegante, caindo de joelhos.
— Essa foi a primeira lição real. Nunca lute como se fosse uma tempestade. Seja como o vento: sutil, mas constante. Eu ganhei porque usei o que você me deu: a raiva cega. Mas não só isso; claro, possuo anos de experiência.
Ela ofereceu a mão, ajudando-me a levantar.
— Um dia, você vai entender. Mas agora, vamos fazer uma pausa para o lanche.
Sim, é a isso que me referia. A verdadeira arte da lâmina. Ela luta como se pintasse um quadro, em que cada pincelada aperfeiçoava mais o seu combate, como uma bela obra de arte colorida.
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