Capítulo 16: Deixo tudo em suas mãos
Depois de um longo dia estressante, voltei ao quarto para acabar com aquela intranquilidade que pairava sob minha mente. Rounn estava deitado em uma cama no canto do quarto, dormindo profundamente de tanto cansaço. Até mesmo babava no travesseiro de penas. Eu o avistei de longe nessa mesma tarde, treinando repetidamente com a senhora Durval, o que será que ele está planejando?
Sua respiração era lenta e constante, e a luz fraca destacava os traços de exaustão em seu rosto. A pele marcada pela luta, as olheiras profundas, os cortes ainda cicatrizando… e aquela maldita prótese em seu braço. Eu não posso culpa-lo, mas é como se existisse outra de mim, tentando livrar-se desse peso de maneira ilógica. Ele parecia mais jovem enquanto dormia, como se o sono fosse a única coisa capaz de esconder, ainda que temporariamente, a vida brutal que levávamos.
Ao lado dele, repousando sobre a cama de palha, estava seu diário. As páginas estavam abertas, e a tinta desbotada parecia reluzir sob a luz, chamando minha atenção. Aproximei-me devagar, temendo que qualquer movimento brusco o acordasse. Meu coração ainda carregava o peso da discussão que tivemos mais cedo. Fui dura demais. Me abaixei ao lado da cama e deixei que meus olhos percorressem as palavras no papel. Era um poema. “O epílogo dessas cores”, os versos pareciam transbordar sentimentos que ele nunca colocaria em palavras faladas.
“Sempre achei… que juntos vislumbraríamos o amanhecer; Até o último raio de sol resplender; E quando teu olhar castanho enaltecer; Não haverá mais o que temer.”
“Que ilusão… nossas vidas um dia se esvairão; Mas nossas lembranças… eternas serão; se passaremos esse tempo lamentando ou sorriso, é a sua decisão; Deixo tudo em suas mãos.”
“Querida, não sei o que nos espera; Mas enquanto andarmos por esta terra; Vamos viver cada segundo que nos resta; Cada momento será único, senhorita, não há pressa..”
“Só você e eu contra o mundo, isso basta; Lhe mostrarei uma vida tão bela quanto uma alvorada; Então vamos colorir tudo de amarelo, vai ser belo; Até o fim de tudo, é lá que eu te espero.”
Li os versos mais de uma vez, sentindo o nó apertar na garganta. Aquilo não era apenas um poema; era uma confissão do que havia de verdadeiro em seu coração. Nem pude me desculpar antes do dia acabar… então eu o acordei. Coloquei as mãos em volta de sua cabeça, encostando minha testa na dele. O coitado estava tão atordoado pelo sono que não entendeu nada do que eu estava fazendo.
— Sim, Rounn, vamos colorir tudo de amarelo.
— Seremos apenas nós contra esse mundo de merda Laurient, algum dia… é uma promessa. — Bocejou.
Sentia o calor da sua respiração em minhas mãos. Era uma sensação de conforto inexplicável. Um conforto que acalmava a mente, não o corpo. Fui para minha cama dormir, e desejamos boa noite um para o outro.
Três meses depois.
Já era tarde da noite. Por um momento, esqueci onde estávamos. Não ouvi as correntes, os passos, nem os gritos distantes que sempre ecoavam pelos corredores. Havia apenas aquele pedaço de papel e as palavras que me faziam ver Rounn de um jeito diferente. A memória daquela noite distante estava percorrendo em minha cabeça, como um pressentimento de que aquele destino estava cada vez mais perto; tão perto…
Eu estava fraca, mas não tanto quanto no dia em que me deixaram duas estações inteiras sem comer. Na primeira vez que senti os sintomas da abstinência, cada minuto parecia um ciclo de tormento interminável. Eu não perdi a consciência, mas meu corpo inteiro foi tomado por uma espécie de pânico, como se dois guerreiros travassem um combate sangrento e feroz para decidir quem conquistaria o domínio sobre minha mente. Quando tento atacar um inimigo, é como se enxergasse Rounn em seu lugar. Como se a culpa pela perda de seu braço fosse minha… e, de certa forma, realmente é.
Voltando para a realidade, o Coliseu fervia de energia. Os gritos da multidão já enchiam o ar, as pessoas pareciam mais empolgadas, ou era minha imaginação? Atrás dos portões de ferro que levavam à arena, Rounn ajustava os protetores de couro em seus pulsos. Sua expressão era séria, seus olhos fixos na mulher que segurava uma prancheta enquanto anotava algo sem dar atenção ao tumulto ao redor, parecia que ele iria pedir algo a ela a qualquer momento. Ela usava um vestido justo de couro preto, e sua postura rígida deixava claro que estava acostumada a lidar com prisioneiros desesperados e com soldados arrogantes.
— Eu quero lutar com espada e armadura. — disse ele confiante
— A mulher ergueu o olhar, arqueando uma sobrancelha com desdém. “Você sabe que isso é contra as regras. Vai deixar os pobres inimigos indefesos contra um prisioneiro rank A?
— Não vou utilizar minha morfose. — respondeu ele, sem hesitar. — Eu prometo sobre o meu contrato. — As asas do ninfalídeo brilharam na cor verde escuro por um momento, aceitando seus termos.
Ela estreitou os olhos, avaliando-o como quem tenta decifrar as intenções de um jogador em um tabuleiro.
— Aliás, eles querem ver sangue, suor e esforço. Não alguém terminando a luta com um estalar de dedos.
A mulher ficou em silêncio por alguns segundos. Finalmente, soltou um suspiro cansado e anotou algo na prancheta.
— Muito bem. Armadura e espada. Irá lutar contra um guerreiro de rank D.
Quando os portões se abriram, a luz do sol invadiu o túnel estreito e escuro, cegando-o por um instante. A maneira como segurava a espada agora refletia uma confiança em suas habilidades, bem diferente daquela hesitação que sentia meses atrás. A armadura de couro reforçado não era exatamente luxuosa, mas seria suficiente para protegê-lo contra golpes leves. Ele respirou fundo e deu os primeiros passos na arena.
Galand e Rerdram tentaram sair despercebidos, mas abordei-os antes.
— Para onde estão indo Rerdram? Sua luta é daqui a dois turnos.
— Hum? argh, Laurient… — Rerdram ficou me observando, como se julgasse se valeria a pena ou não me contar o que tinha em mente. — Digamos que…
— Não vale a pena contar para ela, mano. Não vou com a cara da Laurient. — Galand e eu trocamos olhares furiosos. Esses dois são tão parceiros quanto eu e Rounn, chega a ser irritante.
— Bem, apenas desejo boa sorte. — Eles saíram, deixando minha curiosidade fluir.
A morfose do Rerdram é um mistério, tanto quanto o próprio. A multidão explodiu em gritos e aplausos. De onde eu estava, na beirada da arquibancada dos prisioneiros, vi como ele parecia pequeno no centro daquela vasta arena, mas sua postura ereta e confiante era impossível de ignorar.
O adversário já o esperava. Um homem com um corpo de um guerreiro comum, forte na medida certa para as habilidades de Rounn. Ele segurava um machado de lâmina dupla que brilhava sob o sol. Tinha que ser um machado… Quando o viu, abriu um sorriso cheio de dentes, como um lobo que havia encontrado sua presa. O homem investiu primeiro, o machado descendo em um arco largo, mas previsível. Rounn caminhava tranquilamente em sua direção. Se moveu com rapidez, desviando para o lado e girando a espada para contra-atacar. O golpe não encontrou a carne do oponente, mas deixou claro que ele não estava ali para brincar.
Os dois começaram a trocar golpes ferozes. O som do metal ecoava pelas paredes do Coliseu, cada impacto arrancando gritos da multidão. Rounn mantinha-se ágil, usando o ambiente e a própria força do inimigo contra ele. Cada passo que dava era calculado, cada movimento pensado. Ele não estava apenas lutando, estava fluindo como uma folha.
Houve um momento em que o adversário conseguiu acertá-lo, o machado atingiu de raspão no ombro da armadura. Rounn recuou, ofegante, mas seus olhos não demonstravam medo, apenas concentração. Ele esperou pacientemente por uma abertura, como um predador à espreita.
O homem preparou o machado para um golpe lateral. Rounn curvou o corpo, esquivando-se do ataque com um movimento ágil. No mesmo instante, ele brandiu a espada, cortando a virilha do inimigo. Era como se estivesse usando todos os músculos de seu corpo, executando múltiplas ações ao mesmo tempo. Desviava, atacava, se defendia, até chutava o adversário. Que espetáculo! Cada movimento era fluido, como uma dança. Por fim, o homem, tomado pela raiva, avançou com toda a força, descontrolado. Rounn girou o corpo e cravou a lâmina da espada na lateral do inimigo. Ele aprendera bem com a senhora Durval.
Continua…
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