Capítulo 3: Uma caça voraz
“Acordei com o rosto sujo de areia, havia desmaiado. Desde manhã me sentia faminta; o café pareceu não ter sido o suficiente para me deixar alimentada. Deve ter sido isso. O fazendeiro colocou sua mão em meu ombro, mandando eu me levantar. Olhei para trás e a criatura estava caída na terra baldia, parecia ter definhado, mas ninguém ousava chegar perto. Aquele velho tolo reclamava com os lavradores sob a situação, como se pudéssemos ter feito algo para impedir.”
— Como isso aconteceu? Trouxeram um Pleófago para minha colheita! — Andava de um lado para o outro, impaciente.
“Todos os galiformes tinham sido dilacerados, só o que sobrara fora algumas penas no chão. E quanto à plantação, uma parte tinha sido devastada pelo animal e outra esmagada pelos pés dos fugitivos.”
— Pisaram em tudo! Era melhor que ficassem parados, Argh!
“Por mais que isso significasse menos comida na mesa, não me incomodei. De toda forma, a maior parte dos alimentos cultivados iam para Nounhill, sem contar a produção da carne das Lumplumas, vai tudo para aqueles cretinos. Não importa o quanto estejam saciados, sempre querem mais. Enquanto o proprietário continuava reclamando, uma das colonas furtivamente lhe desferiu um soco no lado direito de seu rosto.”
— Vai se lascar! Eu to cansada dessa merda toda. Eu me demito. — Retirou a bolsa de uma alça que carregava para colocar as sementes e a jogou no chão.
— Vadia! Sua família vai pagar por isso! — Recolheu um pedaço de dente de sua boca e olhou para sua mão.
— Todos já estão mortos mesmo. — De longe, mostrou o dedo do meio para ele.
“Outros dois também decidiram se demitir depois daquele episódio traumático, as vezes me pergunto se ainda estão vivos.”
— Mais alguém? — Ninguém mais o dirigiu a palavra.
“Todos olhavam para o chão, alguns de mãos trêmulas, outros roendo as unhas… pareciam pensativos, mas ninguém se atreveu a levantar um dedo.”
— Então voltem ao trabalho! — Liberou a raiva do fundo de sua alma.
“O resto daquela manhã de trabalho foi melancólica. Não escutei mais nenhuma conversa no campo desde então, principalmente entre os que receberam a tarefa de retirar os corpos dos mortos ou arrancar as plantas ensanguentadas. Mas nenhuma alma viva teve o receio de chegar perto do cadáver do velho com a cabeça partida, era preferível se demitir do que ter a chance de um parasita daqueles entrar em seu corpo. Apenas me mantive concentrada em minhas frustrações.”
“Após organizar a minha daquela bagunça, me direcionei até a floresta local para procurar por uma fruta fresca. Não muito distante do vilarejo, sentei-me em um galho de uma árvore e mordisquei uma akee. Assistia as nuvens seguirem em direção as montanhas, esperando para me carregarem durante meu devaneio. Até que fui interrompida pelo filho do carpinteiro, Caius, e atrás dele, Louis, seu irmão mais novo.”
— Ei, garota dos seis dedos! Vem com a gente? — Apontou para trás, em sentido à floresta.
“Não comentei nada, apenas desci da árvore e o segui. A temporada de Ohaarus já estava quase chegando ao fim. As folhas secas no chão se partiam com nossas pegadas pela floresta. Meus olhos se perdiam pelos cantos, reparando em cada espaço diferente que me chamava a atenção. Não sei se é por causa do costume em enxergar sempre a mesma paisagem, mas vejo tantos elementos novos.”
— Não toca nisso, Louis. — Deu um tapa na mão do menino, antes dele encostar em algo verde claro pregado na árvore.
“Mais a frente, paramos diante de uma cachoeira, e mais abaixo, residia um lago de águas claras.”
— A colina é muita extensa para descermos pelos lados, seria mais rápido se…. — Caius se agachou e soltou uma breve risada.
— Tem certeza de que não é melhor procurar em outra região? — apoiei-me com a mão na cintura.
— Acha que já não tentei isso? — levantou-se e pôs as mãos nas costas dele. – Se quiser sobreviver, vai precisar aprender mais do que caçar, escutou, irmão? — Segurou Louis pelas pernas e pelo pescoço e o arremessou para o meio do lago. Ele caiu como se fosse por um escorregão desajeitado
— Não vai querer ficar para trás, né Laurient? — Pulou logo em seguida
— Mas que saco.
“Me joguei e tentei estabilizar meu corpo no ar para não cair de costas. Meus pés doeram um pouco no impacto. A água se afastou e então me abraçou, cobrindo meu corpo e encharcando minhas roupas, as deixando pesadas. Os peixes se afastaram agitados. A água estava gelada e refrescante. Ouvia o barulho abafado da cachoeira e de Caius nadando enquanto tentava acalmar seu irmão se debatendo na água. Submergi e nadei diretamente para a margem. Louis tossia o pouco de água que entrara em seus pulmões, enquanto o ‘senhor arranja encrenca’ batia em suas costas.”
— Ugh, você esqueceu que eu não sei nadar, seu idiota? — Pulou para dar um peteleco na testa dele.
— Eu não ia deixar você morrer, deixa de besteira, e assim foi mais rápido do que dar a volta na colina. — Deu um sorriso forçado de canto.
— Caius, por que trouxe seu irmão? Ele só vai atrapalhar. Nada pessoal, Louis.
— Uma hora ele tem que aprender, ué. Aliás, ele será a isca.
— Hm, e você concordou com isso?
Louis balançou a cabeça afirmando e enxugou seu rosto.
– Mas será a última!
“Seguimos em frente. A terra grudava na sola dos meus pés molhados, infiltrando-se entre os dedos. A grama não coçava e nem espetava mais, parecia ter criado uma proteção natural. Sentia os grãos de areia coçando minhas pernas e encostando em minha canela. Coloquei o braço na frente dos dois, impedindo que eles dessem mais um passo. Lá estava a criatura, deitada sobre o solo de uma pequena clareira, se banhando no sol. Parecia descansar depois de uma refeição matinal.”
— O que foi?
— Não enxerga? — Apontei para o local.
“‘Não vejo nada’, ‘E nem eu’, os dois disseram.”
— É um suídeo.
— Oba, hoje o rango vai render. — Caius passou a língua entre os lábios.
— É difícil de notar quando a pele dos suídeos tem a mesma cor que as plantas, né? — disse Louis.
— Não tem não…
— Como não? Às vezes você é bem estranha, garota dos seis dedos… — Puxei a orelha dele,..
— Como é?
— Ai, ai… desculpa.
Ao aproximar-mos mais, começou a mexer o focinho, mas continuou parado.
— Droga, é um Couramuço. E ele sentiu nosso cheiro. — Disse Caius, sua orelha estava vermelha.
— Então por que não vem nos atacar? — Louis fez mais uma pergunta.
— Para ele somos meras formigas. Sua pele é resistente por fora, não vamos conseguir cortá-lo, não assim — expliquei a ele e me levantei para o lado oposto, prestes a ir embora.
– Ei, vai aonde?
— Ué, se facas e lâminas de nada servem…
— Então mataremos de outra forma. Esta noite, comerei meu bife de suídeo, e nem mesmo um guarda Ewuliano irá me impedir! — Estava convicto em sua fala, mas fiquei curiosa em como esse idiota faria isso.
— Louis, é melhor eu ser a isca. — Ele me olhou com os olhos brilhando.
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