— Senhor? Senhor Rerdram? — Um velho senhor abordou o jovem que estava sentado no banco na entrada da cidade. Os respingos de água em suas roupas entregavam a previsão de um temporal.

    Era um rapaz baixo, de cabelo preto, demasiadamente enrolados em dreads. Seu traje havia sido delicadamente confeccionado: um terno de botões, tingido de marrom e cinza. Sua pele era negra como o ébano ou como uma terra pura e fértil. Seu sotaque era estranho e distinto, mas compreensível. Ele carregava consigo, em seu colo, uma grande maleta amadeirada, que segurava com ambas as mãos e levava para onde fosse.

    — Com sua licença, acredito que seja a senhor Rerdram, presumo. — Disse ele, ajeitando o monóculo.

    De caráter austero, ele o observou de cima a baixo e imitou sua fala: — Acredito que seja o detetive Howard, presumo.

    — Excelente… — disse o homem, até ser interrompido.

    O rapaz se levantou e o cumprimentou solenemente, com um aperto de mãos nada agitado.

    — Rerdram, Rerdram Vorlanie. Apesar de sua demora, é um prazer conhecê-lo — disse ele, com a mão esquerda, enquanto a direita permanecia segurando a alça da maleta. Ao terminar as saudações, recolheu sua maleta com as duas mãos, segurando-a de um só lado. — O senhor está atrasado por dezessete minutos e quarenta e oito segundos, senhor Howard.

    — Si… Sim, perdoe-me por tê-lo feito esperar. Houve um imprevisto, um vazamento de gás na avenida principal que dá acesso à estação.

    — Suponho que também sofreremos um atraso em nossa chegada, considerando o incidente.

    — Precisamente… Digo, talvez… Nesse caso, é melhor irmos diretamente ao departamento. Senhor, deixe-me levar a bagagem. — Disse ele logo atrás, seguindo os passos nada apressados do garoto.

    — Não será necessário. — Levantou a maleta com toda a força de seus finos braços e a pôs no banco da carroça, subindo em seguida.

    — Cocheiro, prossiga. — Disse o homem.

    Vallendrea fazia parte de um conglomerado de sete cidades comandadas por uma oligarquia. Além disso, a população local era composta, em sua maioria, por senhores nobres, sendo sua economia majoritariamente consequente das forças militares e de corporações pertencentes a esses senhores. Contudo, existia uma minoria de grupos indigentes. Uma estrada de cascalho e areia se estendia até a cidade. Rerdram observava fixamente a paisagem coberta de gramado alto, verdejante, algodão e trigo; algumas árvores estavam dispostas pelo campo, distantes umas das outras.

    — Em sua cidade natal existem campos tão belos quanto estes, senhor?

    — Na verdade, Drafei é uma região cheia de colinas e montanhas; há poucos campos por lá.

    — Hm, entendo. Cocheiro, mude a rota; vamos pelas extremidades da cidade.

    — Mas…

    — Pare de pensar um pouco no tempo. Apenas aproveite a viagem.

    Pelo caminho, Rerdram observava de longe as moradias mais altas da cidade. No horizonte, era visível o departamento criminal. A chuva piorava, invadindo as ranhuras da carroça. Eles passaram reto pelo local, e o jovem não compreendeu o motivo.

    — Sr. Howard, acredito que o cocheiro tenha errado a rota — disse Rerdram.

    — Na verdade, senhor, este homem é o único inato que está ciente da localização do departamento de homicídios, a não ser, claro, pelo governo de Hiutan.

    O cocheiro olhou para trás, sorrindo para o garoto, como se sentisse especial por cumprir tal tarefa.

    — Mas eu não me inscrevi para a vaga de investigador no departamento de homicídios. — O novato deu-se de ombros

    — Eu sei… — sorriu com o canto da boca.

    “O que ele quis dizer com ‘eu sei’?”

    Em mais alguns minutos, finalmente alcançaram a construção austera. O local se encontrava no alto de uma colina, escondido entre um vasto bosque. O descomunal portão amadeirado oferecia, enfim, um pouco de abrigo contra a densa chuva. Com sua rugosa mão, Howard bateu com os nós dos dedos, e o som oco reverberou pela noite, quase abafado pelo ruído das gotas de chuva. O garoto tremia de frio enquanto olhava fixamente para as nuances da porta, bem trabalhada nos detalhes, formando figuras semelhantes a aves se deleitando da carne de outras criaturas. Passou a mão ligeiramente sob a superfície para sentir sua rispidez, quando, de repente, escutaram rangidos de trincas se movendo. Vagarosamente, um dos lados da porta se abriu para dentro, iluminando o rosto encharcado dos dois. Após um momento, um homem alto e magro, de expressão severa e enrugada, apareceu na brecha, lançando um olhar crítico aos visitantes.

    — Senhores, creio que cometeram um equívoco. — O cavalheiro retirou um relógio de bolso, que funcionava à base de magnetismo, e observou as horas. Atrás, havia um desenho de um roedor bordado no metal escuro. Howard forçou uma tosse e se virou para o garoto.

    “Ah, sim”, ele pensou.

    Então, retirou um relógio prateado do bolso da calça. Apesar de estar bem molhado, ainda funcionava perfeitamente. Virou-o, mostrando as costas do relógio. Dessa vez, era uma figura de uma serpente, cujas presas reluziam no metal recém-forjado.

    — Seja bem-vindo, senhor. Perdoe-me pelo inconveniente. — O homem abriu as duas portas por inteiro, mostrando uma boa parte da sala de estar.

    “Droga… eu não deveria estar aqui.”

    Parecia que a sala havia sido limpa há pouco tempo. Era vasta, com um teto alto sustentado por vigas de carvalho esculpidas com intricados detalhes, representando cenários de batalhas, pessoas importantes ou animais com características peculiares. No centro, ligada a um pilar retangular que alcançava o teto e levava a uma chaminé, uma lareira monumental de pedra dominava a parede. Acima dela, um escudo ornado com o emblema da associação estava exibido. Parecia a figura de um temível Caça-Morte, uma ave rapinante no topo da cadeia alimentar, pisoteando os outros animais que representavam os níveis da organização: Morinus, um canídeo; Erivora, uma ave de caça; Glestríade, uma serpente branca; e, por fim, um pequeno roedor.

    O chão era coberto por tapetes luxuosos e espessos, tecidos à mão, em tons de vermelho, dourado e marrom. Poltronas e sofás de couro escuro, com almofadas de veludo ricamente bordadas, estavam dispostos de maneira estratégica ao redor da lareira, convidando ao descanso e à conversa. À esquerda, imensas janelas com vitrais coloridos deixavam a luz natural invadir o espaço, criando um jogo de luzes e sombras que dançavam pelo chão e paredes. A luz do luar filtrada pelos vitrais pintava a sala com um espectro de cores suaves, dando um ar quase etéreo ao ambiente. Cortinas de brocado pesado, decoradas com fios dourados, podiam ser puxadas para bloquear a luz, mas naquela noite estavam abertas, permitindo que a chuva lá fora fosse visível, transformando a janela em um quadro vivo de movimento e som.

    — Sr. Vorlanie, eu esperarei aqui na sala de estar, enquanto preenche sua documentação.

    — Ce… certo — gaguejou, mantendo as mãos encolhidas sobre sua barriga.

    Ele se dirigiu até a recepção e foi indicado para a coordenadoria do departamento. No fundo da sala, subiu por uma escada em espiral de ferro forjado, que se erguia graciosamente até uma varanda interna, visível do primeiro andar. Da varanda, era possível ver toda a sala de estar e ouvir o murmúrio das conversas que ocorriam abaixo. Pequenos candelabros de prata estavam estrategicamente colocados ao longo da escada e varanda, iluminando suavemente o caminho com suas chamas.

    Ele passou por um corredor próximo à escada. Ao se dirigir à coordenadoria, notou de relance uma sala com uma estante maciça de madeira escura que abrigava livros antigos. Encantado, voltou e deu uma rápida olhada nos títulos, que variavam de tratados de filosofia a estratégias militares. Peças de arte antiga, incluindo tapeçarias e esculturas, decoravam as paredes, cada uma contando uma história do passado glorioso da associação.

    A sala exalava um leve aroma de incenso de eucalipto, que se misturava com o cheiro da lenha queimando na lareira. Isso, junto com a melodia da chuva, fazia-o se sentir acolhido, mesmo longe de casa.

    — Muito interessante a coleção, não concorda?

    Ele levou um susto e retrucou: — Eu… eu tenho permissão para estar aqui, certo?

    — Não. — Sua voz saiu fria, fazendo o garoto esperar por uma bronca.

    — Ah… eu… me desculpe.

    — Só estou brincando, hehe — ele estendeu a mão — pode me chamar de Courton, é um prazer.

    — Rerdram Vorlanie, senhor — se aproximou da porta e o cumprimentou.

    — A propósito, eu sou o diretor deste departamento. Me acompanhe, por favor.

    Ele estremeceu, seu corpo congelou por um momento, mas prosseguiu. No corredor, estavam a caminho da sala dele.

    — Tome cuidado com esses olhos curiosos, não vai querer sair por aí abrindo qualquer porta que encontrar. Entendeu? — Seu olhar pesou.

    — Ah, mas a porta já estava aberta.

    — Você me entendeu? — repetiu rispidamente.

    — Isso não irá se repetir, diretor — Por mais tenso que estivesse, precisava manter a compostura naquele ambiente de trabalho. Afinal, não havia com o que se preocupar; era só seguir as ordens.

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