A floresta ao redor de Lantiva era densa e viva, com suas copas ondulando ao vento e o perfume úmido da terra carregando o frescor do orvalho. Talia caminhava pelo bosque naquela tarde, com uma cesta de cogumelos quase cheia. Conhecia aquelas trilhas como a palma da mão e sabia os lugares certos onde a natureza era generosa. Contudo, ao se aproximar de uma clareira, seus passos vacilaram. Entre as folhas caídas e os galhos retorcidos, havia algo que não pertencia à paisagem: um rapaz desacordado, com a pele marcada por ferimentos e poeira.

    Ela correu até ele. O desconhecido respirava com dificuldade, mas estava vivo. Talia sabia que não poderia deixá-lo ali. Como lhe fora ensinado, ela retornou para a vila, avisando sobre o ocorrido. Conseguiram erguê-lo ainda desacordado e o levaram para a cidade.

    Ao se aproximarem do grande portão de madeira que demarcava a entrada de Lantiva, alguns aldeões deixaram suas tarefas para observar a cena. As lavadeiras, que penduravam panos ao vento, pararam suas conversas. O ferreiro Ardun saiu de sua forja, secando o suor da testa com o antebraço. O rapaz era branco, com traços claramente opostos ao do povo do vilarejo. Eles possuíam a pele um pouco mais escura, com um tom oliva, como se fossem marcados pelo sol e pelo trabalho árduo.

    — Talia, o que aconteceu? — perguntou Ardun, franzindo o cenho ao ver o estado do rapaz. — Ele se parece com o povo do norte… — disse com certa discriminação no tom de voz.

    — Eu o encontrei na floresta — respondeu ela, ofegante. — De acordo com nosso código, precisamos ajudar, não importa quem for, até que ele decida participar da comunhão do vilarejo.

    — Sim… é verdade. Precisamos manter nossa palavra. Você fez certo, Talia. — Pôs a mão no ombro da menina.

    A multidão se formou rapidamente, cada rosto carregando expressões de curiosidade e preocupação. A curandeira do vilarejo, veio apressada com uma sacola de couro pendurada no ombro.

    — Tragam-no para a casa de curas — ordenou com firmeza.

    Ardun e outro homem chamado Fendrik ajudaram Talia a carregar o rapaz até a casa de curas, uma construção simples de madeira com janelas largas que deixavam entrar a luz suave do sol. O cheiro de ervas medicinais impregnava o ambiente, e camas de palha estavam dispostas ao longo das paredes. Mara examinou o jovem com um olhar treinado. Limpou os ferimentos com água morna e aplicou emplastos de ervas enquanto sussurrava preces originais do seu povo.

    — Ele vai sobreviver? — perguntou Talia, gaguejando ao pronunciar tais palavras.

    — Os ferimentos não são fatais, mas ele está exausto e desidratado — respondeu Mara. — Acredito que vá ficar tudo bem.

    Nos dias seguintes, a rotina do vilarejo se ajustou para incluir o novo hóspede. As crianças espiavam pela janela da casa de cura, curiosas sobre o convidado misterioso. Até mesmo os homens, que geralmente se mantinham ocupados com seus afazeres, passavam por lá para perguntar sobre seu estado. Talia visitava frequentemente, trazendo flores silvestres para alegrar o ambiente. Aos poucos, o rapaz começou a recuperar a cor no rosto.

    — Seu cabelo é brilhoso como o sol e vermelho como a chama — disse Talia, se segurando para não encostar precipitadamente no rapaz.

    — Nunca em minha vida vi um homem com um cabelo tão grande… isso não é certo… — Comentou um dos lenhadores do vilarejo. — E sua barba ainda nem cresceu; ele deve ser um fracote.

    — O que são essas marcas em seu braço? Parece com… um ninfalídeo. — Uma moradora se questionou.

    — Vamos perguntar quando ele acordar. — A curandeira morria de curiosidade por dentro, principalmente porque aquilo era algo nunca antes visto para os olhos de alguém tão estudiosa como ela.

    Para o vilarejo, era como se adotassem um novo cidadão para participar daquela pequena sociedade que crescia aos poucos naquele local. No amanhecer do outro dia, seus olhos finalmente se abriram. Ele se levantou, sentando na cama abruptamente. Desarrumou os lençóis no ato, dando um susto na curandeira ajudante.

    — Senhora Durval! — Seu desespero momentâneo ecoou por toda a casa de cura. Ergueu o braço com a prótese de madeira para frente, como se tentasse salvar alguém.

    Parou, olhando ao redor, confuso com o ambiente caloroso e rústico. Seus olhos pareciam extremamente espantados. Ele respirava pela boca, ofegando, como se tivesse corrido uma maratona. Não era essa primeira impressão que os cidadãos esperavam.

    — Acalme-se, agora está seguro. — Apesar do medo repentino, a curandeira ajudante manteve-se com uma postura profissional e séria, tentando acalmar o paciente.

    Mara aproximou-se com uma tigela de caldo fumegante, entregando nas mãos do garoto.

    — Bem-vindo de volta ao mundo dos vivos — disse ela, com um sorriso encorajador. — Você está seguro em Lantiva.

    — Lantiva? Como vim parar aqui?

    — Uma jovem lhe achou desmaiado na floresta. É um milagre que não tenha sido devorado.

    “Um ‘milagre’, né…”, Ele amassou a coberta com sua mão, se lembrando do que tinha acontecido.

    — Como se chama, querido?

    — Koran… — Rounn lembrou-se da Laurient mentindo sobre seu verdadeiro nome, e ela estava certa nisso, se alguém descobrisse sua verdadeira identidade, poderia resultar em alguma reação indesejada. Até porque seu nome era famoso entre os frequentadores do Coliseu… que agora não passava de ruínas.

    O vilarejo de Lantiva, com suas casas de madeira e ruas de terra batida, mostrava uma hospitalidade calorosa. As mulheres traziam caldos quentes e pães macios para alimentá-lo. O som das marteladas na forja, os risos das crianças e o aroma de pão fresco eram constantes. Havia uma esperança entre os moradores de que o jovem desconhecido encontraria ali um recomeço. Rounn não dizia quase nada, apenas fingia que tudo estava bem e seguia o curso da vida. Afinal, ele finalmente conseguiu, obteve a “Liberdade” que tanto desejava. Sem mais contratos ou restrições; sem mais experimentos ou torturas; livre de lutas até a morte. Ele podia ir para qualquer lugar, mas do que adiantava… se não era a isso que seu coração realmente desejava.

    “Laurient… Durval… do que adianta. A vida toma tudo de mim.”

    Rounn então começou a explorar o vilarejo. Observava os aldeões com curiosidade e sentia-se grato por cada gesto de bondade. Determinado a retribuir, ofereceu-se para ajudar nas tarefas diárias. Porém, muitos dos aldeões desconfiavam de sua falta de experiência.

    — Vamos com calma — disse Ardun, rindo ao ver o jovem tentando levantar um machado que tinha a metade de seu tamanho. — Talvez outra tarefa seja melhor para você.

    — Que tal pescar? Eu posso ensinar você — sugeriu Talia, animada.

    Na manhã seguinte, os dois seguiram até o rio que corria ao sul de Lantiva. A água cristalina refletia o céu azul, e pequenas borboletas dançavam sobre a superfície.

    — Primeiro, você precisa aprender a preparar a linha — disse Talia, mostrando a ele como amarrar o anzol. — Não é difícil, mas tem que ser com paciência.

    Rounn observava com atenção, tentando imitar os movimentos dela. Sua expressão concentrada fez Talia rir.

    — Ei, não precisa franzir tanto a testa — provocou ela.

    — Estou levando isso a sério.

    A pesca começou devagar, com alguns erros e linhas emaranhadas, mas logo ela estava rindo das tentativas desajeitadas de Koran. Quando finalmente fisgou seu primeiro peixe, ergueu-o com triunfo.

    — Olha só! — exclamou ele, com um ríspido sorriso rápido, mas logo se proibiu de fazê-lo.

    — Nada mal para um novato — elogiou Talia, batendo palmas.

    O dia terminou com os dois voltando ao vilarejo, carregando peixes frescos em um balde de madeira. Os aldeões olharam com surpresa e aprovação ao ver Koran trazendo contribuições para a comunidade. Os insetos zuniam dentro dos bosques e pela relva do campo. Sempre havia algum aldeão admirando as estrelas. Naquela noite, enquanto as fogueiras ardiam e o cheiro de peixe assado se espalhava, Rounn sentiu pela primeira vez que fazia parte de algo maior.

    — De onde que tu é? — O Senhor olhou para aquele que chamavam de Koran.

    — Eu? hm… de uma cidade a muito longe daqui… chamada… Lunevir.

    — Sei onde fica não.

    — Pertence ao berço da região de Hiutan.

    — Hm, tu me fala muito bonito pra ser de cidade pequena. — Se referiu ao sotaque de Rounn.

    — Hiutan? Então você não é do povo do norte… como veio parar aqui tão longe, tão distante de casa? — Ardun, o ferreiro, juntou as mãos.

    — Nós… digo, meu grupo… estávamos viajando de carroça para outra cidade, sabe como é. Então uma fera nos atacou. — Rounn se enrolava cada vez mais em suas próprias histórias inventadas.

    — Uma fera? Como ela era? — Fendrik levantou o tom de voz, relembrando de seu passado, quando combatia ou fugia das criaturas da floresta.

    — Estranho, ele não cheira a feriycida. — Talia fungou em seu pescoço. — É realmente um milagre ter ficado vivo.

    — Esse rapaz é “mei” esquisito. E o que é essa marca em seu braço?

    — É… — Engoliu seco.

    — Já chega, rapazes, deixem nosso convidado esfriar a cabeça. Deve ter sido um dia cansativo para ele, ainda mais depois de tudo que ele passou. Seu corpo precisa de descanso. Vamos, Koran. — Mara o chamou de volta. Mais um minuto e ele iria fingir outro desmaio ali mesmo.

    O ar estava leve na casa de cura. Mara ajustou um emplastro no braço de Rounn, enquanto Talia coloca um buquê de flores silvestres ao lado da cama. O cheiro de ervas secas mistura-se ao aroma fresco que vem da janela aberta. O cintilar suave da lua dava uma atmosfera calma ao ambiente.

    — Você está se sentindo melhor? — pergunta Talia, ajoelhando-se ao lado de Rounn.

    Ele assentiu devagar, ainda com a voz rouca.

    — Bem mais. Obrigado a todos por isso.

    — Tudo bem. Agora deixem-no a sós um pouco, foi um dia cheio. Boa noite, meu rapaz.

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