Um cenário de vermelhidão e brilho intenso emanava de dentro para fora daquela coisa, em que outrora já chamavam de lar. A fumaça negra subia do térreo para o primeiro andar, acomodando a todos que estavam ali presentes em uma névoa mortífera. As fuligens criavam um rastro até os pés descalços de Gustav. O tecido das roupas que vestia já estava por um fim; secas como carvão. Seus braços, quentes como as águas de uma fonte termal, envolveram a garotinha como um cobertor carnudo; percorrendo entre seus cabelos loiros.

    — Shh, agora está segura de todo esse infortúnio. — Sussurrou Gustav

    “Ela deve estar se tremendo de tanta ansiedade… já que agora está livre das amarras desses vermes”. Seus olhos sobrepujaram o cadáver da mulher, esses monstros merecem a purificação, a unção das chamas de Gustav. Agora eram um só com a beleza do fogo. Ele viu os olhos da menina esbugalhados, quase saltando do rosto, enquanto se prendiam aquela imagem quase estética, da mulher que fora queimada ainda viva.

    — Sim, minha criança, abra mais os olhos e aprecie essas luzes vibrantes dando vida à esses monstros vis; descanse sob nosso calor.

    O rapaz olhou para a janela de madeira quebradiça e deteriorada pelo incêndio. Não havia outra escapatória, qualquer minuto a mais naquele ambiente hostil poderia ser fatal para a garota. Ele saltou graciosamente, acompanhando o ritmo das chamas, para fora daquele inferno escaldante… pelo menos era o que qualquer outro acharia.

    Embaixo do véu da noite, próximo ao incidente incendiário no bairro das Daedras, os vizinhos e transeuntes olhavam de longe aquele espetáculo luminescente. O fogo já estava se espalhando para a terceira casa. Incêndios eram muito incomuns naquela parte da cidade, por isso a comoção era tão grande. Alya chegou cansada, correndo enquanto olhava para os dois pés, um atrás do outro. Mais de 15 quilômetros do posto da associação. A jovem olhou para aquela estrutura ornamentar, que agora apenas servia para afugentar as pragas da noite e para guardar os cadáveres daqueles já purificados por Gustav, pobres almas perdidas.

    — Alya… está atrasada. Muito atrasada. — Aterrorizado, Galand lembrava dos gritos daqueles que já se foram. Ele apertou o punho, não havia nada que ele pudesse fazer. — Muito atrasada. — Ele repetia, mas não só para Alya, e sim para sua própria consciência.

    — Só acaba quando eu decido!

    Alyaseguiu correndo para dentro dos escombros da casa, ela não podia ter feito toda essa rota em vão. Seu rosto e suas costas ardiam, apesar da resistência sobre-humana de sua carne. Com muita dificuldade, a pele queimava e os olhos secavam. Ela tossia e limpava os olhos enquanto vasculhava pelos cômodos da moradia por alguém ainda vivo… foram tentativas inúteis. Subindo para o segundo andar, onde a maré de fumaça se acumulava aos montes, chutou a porta trancada de um dos quartos. Havia um berço mantido em perfeito estado, além de detalhes de tecidos intactos na cama ao lado. Por algum motivo, as chamas pareciam não ter chegado naquele local.

    A moça caída ao chão, vestida com um avental branco e um vestido com rendas, parecia estar sem sorte. Alya a sacudiu, mas seus olhos vazios pareciam já estarem sem vida. Ela afastou a renda do berço cautelosamente, e havia um bebê a fitando com olhos calmos, como veludo. O profundo azul de seus olhos atingiu a alma dela, como uma singela paisagem. A criança utilizava um colar com um cristal da mesma cor que aquela imensidão azul que afugentava o medo dentro do coração de Alya, trocando por uma ponta de esperança. Não, na verdade, ela já havia se decidido, pelo menos uma pessoa ela salvaria. Faria daquela criança, um chama de esperança no coração de seus outros familiares e de todas as outras pessoas que esperavam lá fora.

    “O colar deve ser um tipo de relíquia”, essa hipótese rondava em sua mente. E sem pensar duas vezes, ela agarrou aquele bebê e a pôs segura entre seus braços. Aquele pequeno ser não chorava e nem sequer se esperneava, era uma garotinha tão calma como as águas de um rio sereno. Desceu as escadas como um raio, passou pelos escombros quebrando tudo que era necessário e pulou para fora daquele inferno.

    Os espectadores se espantaram com seu retorno. Apesar de estar claramente queimada, ela havia sobrevivido a uma morte inevitável. Mas quando ela abriu os braços, aqueles que estavam mais perto se uniram a seu redor, para ver a criança que irradiava como uma pérola, principalmente o colar.

    — Que menina mais adorável. — Comentou um cidadão

    — Se afastem, os escombros pode desmoronar. Se afastem do incêndio. Alya, dá uma força… — Disse Galand, chegando mais perto, tentando impor sua autoridade quase invisível.

    — Melhor saírem de perto pessoal. — Ela andou para mais longe, atraindo a multidão para onde aquela doçura de criança ia.

    — Minha jovem, tem certeza que não restou mais ninguém? — A idosa sacudia as mãos enquanto juntas, como se implorasse por algo.

    — Infelizmente eu fiz o máximo que pude, senhora.

    — Entendo… — Sua voz tremulou abafada.

    Galand se aproximou com um homem, trajado de vestes de tecido fino, tingidas de branco e roxo, utilizando acessórios chamativos.

    — Alya, este homem afirma ser parente dos moradores que se tornaram vítimas do incêndio.

    Ela o entregou logo, sem mais nem menos. Espantado, o senhor franziu o cenho, enquanto olhava para aquela pequena criaturinha em seu colo que não esboçava reação alguma.

    — Turi… então ela tem os olhos da mãe. Oi Turi, é o titio. Vai ficar tudo bem, viu. — Cutucou o narizinho da pobre criatura, que milagrosamente estava livre de fuligens. Ela não demonstrou nenhuma reação ao seu toque.

    Em instantes, o colar se rompeu e a feição carnuda e rosada de suas bochechas começaram a se tornar ossos, e sua pele demonstrava queimaduras de terceiro grau. Os cabelos loiros desapareceram, e o couro cabeludo se deteriorou em segundo. Parecia um reflexo de um espelho distorcido, como em um riacho de águas turbulentas.

    — Mas o que é isso? — Ele gritou com sua voz rouca, soltando o esqueleto da criança… deixando aquele cadáver pútrido ser consumido por aquela estrada agressiva de pedra. — O… o que você fez? o que significa isso? — Ele balançou as mãos, como se sacudisse para tirar poeira.

    Aquele cenário parecia um quadro de uma obra de arte expressionista brutal. As feições macabras nos rostos dos espectadores tentavam encaixar alguma lógica naquela cena repulsiva e totalmente inesperada. Como se a criança tivesse derretido em seu colo.

    — O que você fez? — O homem repetia tais palavras, como se profanasse Alya diante daquela multidão.

    — Eu… eu não fiz nada. — Ela se afastou.

    Galand se manteve calado, ela não estava preparado para algo tão abrupto aos olhos.

    — O QUE VOCÊ FEZ?! — Um ruído brutal se dissipou pela noite, o senhor estava tanto com raiva quanto estava confuso.

    Mas alguém precisava conter o peso da culpa. E quem seria mais adequado do que um profano? As pessoas esqueceram a cerimônia, esqueceram os feitos de Alya dentro da corporação e do departamento criminal, elas apenas se esqueceram… ou… não.

    — Monstro!

    — Eles são profanos!

    — Eu avisei que isso não daria certo.

    — Por que colocaram essas aberrações no departamento de justiça, o barão de Vallendrea está louco.

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