Capítulo 5: Jogada aos porcos
Diário de Laurient
Dia 3, Arsorah.
Ano 523 d.F
“Lembro-me daquela manhã de forma tão vívida que, por vezes, parece que ainda estou presa nela. A luz do sol brigava inutilmente contra a névoa densa que abraçava a cidade de Nounhill, pintando tudo com um tom cinzento. O silêncio era profundo, quase sagrado, como se o vento tivesse parado para observar aquele dia incomum. Dentro de mim, uma tempestade de raiva e indignação rugia.”
“Eu estava encurralada em uma viela estreita, onde as paredes das casas, marcadas pelo tempo, inclinavam-se como se tentassem se fechar sobre mim. Cada passo, cada movimento dos dois garotos que me cercavam, fazia o espaço parecer menor. O cheiro de podridão, vindo de um bueiro parcialmente aberto, impregnava o lugar. O buraco no chão se abria como uma garganta escura, conectada aos labirintos do esgoto, de onde parecia emanar algo mais do que apenas odor: um aviso.”
“Meus joelhos estavam dobrados contra o peito enquanto eu me encolhia, tentando proteger a cabeça dos golpes que vinham de todas as direções. Os sapatos dos dois eram impecáveis, feitos com um cuidado quase artístico. O contraste entre aquela elegância e a brutalidade fazia meu estômago revirar. A cada chute, eu me encolhia como uma lagarta, protegendo a cabeça e ficando quieta, mas por dentro, queria morrer. Meus ferimentos pioravam a cada pontapé dado, mas os delinquentes continuavam a me colocar contra a parede.”
— Já me diverti o suficiente, vamos devolver essa aberração de seis dedos para o lugar de onde veio.
— É, também não estou mais aguentando esse mal cheiro. Faça uma boa viagem, sua rata imunda!
“Eu não sei o que me deu, mas algo dentro de mim me comoveu a machucá-lo, não queria deixar que saísse totalmente impune. Quando o mais alto foi me chutar, mordi sua canela com toda a força que pude. Meus caninos perfuraram sua carne profundamente, marcando minha arcada dentária em sua pele, sangrando até mesmo dentro de minha boca.”
— Argh! Desgraçada! — Puxou a perna, úmida de saliva e sangue, escorrendo ao chão e sujando seus sapatos. — Joga ela logo.
“Segurei em sua canela com força, quebrando seus ossos.”
— Não, não dessa vez! — Disparei com toda a força das pernas para cima do inimigo, atacando sua clavícula. Foi quando eu acordei.
“Pude enxergar as primeiras luzes da manhã penetrando pelas frestas do porão, escuro e esquecido. As tábuas eram antigas e mal colocadas. Os rastros de sol deixavam claro a visualização da poeira no local, além de algumas tralhas deixadas no chão. Minha cabeça estava girando, mas logo passou ao me sentar por alguns segundos para tentar processar tudo que aconteceu. Como cheguei até aqui? Há sangue no chão, parece estar seco.”
“A fome… cessou. Minhas mãos, olhei bem para elas… o que eu fiz. Devorei um homem. Não… não fui eu. Isso não sou eu. Se bem que não foi minha escolha, então, algo dentro de mim o fez, não eu. Isso é estranho, eu não deveria me sentir inconformada? Mas me parece tão certo. É nojento, mas, significa menos um Ewuliano vivo, é algo para se orgulhar. Talvez eu estivesse um pouco assustada naquele dia, mas hoje, só enxergo como uma benção.”
“Subindo as escadas, entrei na casa a procura do banheiro. Era uma moradia simples. Derrubei um tonel de barro em uma bacia para me lavar. A sujeira se acumulava quanto mais eu esfregava, junto com todo aquele sangue coagulado que formara uma crosta em minha pele. Fui até o quarto e vesti outra muda de roupa. Finalmente, algo decente para vestir, diferente daqueles trapos nada confortáveis. Peguei a vestimenta menos masculina que encontrei em seu armário. Indo até a porta, vi um pequeno cofre de madeira em cima de uma escrivaninha… afinal, o que teria de ruim em pegar alguns trocados de um cadáver?”
“Saí para as ruas da cidade. Parecia estar nos limites de Nounhill, nunca havia estado tão longe de casa. O sol parecia estar mais forte, os rostos das pessoas mais vívidos, as palavras mais concisas, e o canto dos pássaros mais belo. O que antes parecia um sonho distorcido, tornou-se uma obra de arte completa. Me sentia mais presente, mais consciente, menos presa em minha mente. Não sei se era impressão, mas minha pele parecia ter adquirido uma tonalidade mais oliva.”
“Espera… virei minha cabeça para trás, observando as colinas e florestas após a periferia, parecia tão fácil. Ultrapassei o grande portão, ninguém parecia desconfiar. Tudo estava tão calmo. Pisei na grama verde e selvagem e dei alguns passos para longe dali. Mas, e as criaturas, como eu irei sobreviver sozinha? Talvez o mundo afora seja mais perigoso do que dizem. Talvez eu não esteja preparada. Além disso, não posso deixar os garotos sozinhos… não quero deixar. Esses novos horizontes terão que esperar. Algum dia, seguirei o pôr do sol até seu limiar, e então verei sua contemplação pela eternidade… e até hoje, é apenas uma promessa esperançosa que fiz a mim mesma.”
“Voltando para a cidade, cheguei em uma praça central. Entrei em uma taverna chamativa, que se destacava por seus detalhes em madeira talhada e uma delicada estrutura de tijolos vermelhos. Sentei-me no balcão principal, esperando ser atendida. Um senhor magricela ergueu a cabeça, mantendo contato visual.”
— Quero sua bebida mais cara. — Não foram só alguns trocados…
“Ele ergueu as sobrancelhas e começou a prepará-la. O homem ao lado esbarrou seu cotovelo em mim, chamando minha atenção.”
— Vai dar um golpe no velho, é? Pode esquecer, viu.
— Não, eu tenho dinheiro. A bebida é tão cara assim?
— Você? Uma mestiça? Haha. Deixe-me adivinhar, sua mãe, que era uma colona, morreu durante o parto, e seu pai, de sangue ewuliano, teve que cuidar de você, se não ele sentiria culpa. É raro, mas acontece. Você teve sorte, se tivesse nascido com a pele mais escura, talvez ele não te assumiria.
— O que? Na realidade… — Olhei para o meu braço. Então, é verdade, a minha pele se tornou mais clara mesmo, mas como? Como era mesmo o nome? Animorfose? Um presente de nossos deuses, sim, para reivindicar nossas terras novamente! obrigada, grande espírito Sornenm. Deve ser por isso que notei menos olhares pelo caminho. — É, é isso mesmo. Foi um bom palpite. — Era melhor dançar conforme a música.
— Aha, minhas habilidades de dedução nunca falham. — Bebeu um gole em sua caneca.
“Hm, exibido.”
— Sua Baronesa, moça. — A pôs em cima da mesa.
“Veio em uma caneca de vidro temperado, e cubos de gelo quadriculados, pela estética deve custar o olho da cara.”
— É uma bebida de médio teor alcoólico, batido com frutas rosáceas e azáleas, que são tipicamente doces e suaves, com extrato de limáceas do norte de Hiutan.
“Nunca havia encostado meus lábios em algo tão refinado assim. Menos ainda em álcool.”
“Argh, como é forte! Mas no final, até que é saboroso.”
— Quanto custa? — Coloquei a mão no bolso.
— Dezessete moedas de Draelis.
“E lá se foi quase metade do meu saque. Mas não importa, foi uma experiência única que provavelmente não vou poder repetir tão cedo. A menos que…”
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