Capítulo 6: Mais vale um pássaro na mão...
Diário de Laurient
Dia 35, Arsorah.
Ano 523 d.F
“Aos poucos, compreendia a dádiva que me fora presenteada. Depois daquele dia, esse tipo de incidente ocorreu só mais uma vez, isso porque estava testando até que ponto eu podia aguentar a fome. Era preciso caçar os desavisados de Nounhill, pelo menos a cada quatro dias.”
“Parei de trabalhar nos campos e passei a conseguir minha renda de outra forma. Já fazia algumas semanas, não acredito que coloquei Caius e Louis nessa, mas de toda forma, Caius não recusaria uma proposta arriscada e ‘divertida’ como essa. Eu até poderia julgá-lo dizendo que ele tem um parafuso a menos, mas como a ideia foi minha…”
“Íamos para a capital reivindicar o que era nosso, o que deveria ser. Em algumas sequoias de distância, contemplávamos as muralhas da cidade, complementada com torres laterais de vigilância, pequenas frestas e guaritas com arqueiros. Ao passar dos portões imponentes, em que geralmente eram assegurados por três ou quatro guardas, notávamos os olhares tortos para cima de nós. Abria-se um caminho bifurcado entre as pessoas, enquanto Caius andava com as mãos de trás da cabeça. Ele não tirava aquele sorriso irritante do rosto.”
“A cidade sempre parecia estar mudando, mas, de alguma forma, ele sempre sabia o caminho. As vezes me pergunto se ele vem aqui todos os dias, eu não me sentiria segura com todos esses olhares agonizantes. Em um instante, senti o suor, grudento e frio, da mão do pequeno Louis envolvendo a minha. Ele se encolhia, invadindo meu espaço cada vez mais.”
— Laurient — sussurrou em uma voz aguda, me cutucando na costela.
“Virei-me para o lado por instinto… aquele olhar penetrante… parecia me consumir por dentro. No momento em que aquele homem fitou em minhas mãos, suas bochechas inflaram. Senti meu corpo pesando e uma agonia envolvendo meus nervos. Era alguém tipicamente alto, comparando com os outros moradores de Nounhill. Usava um tipo de cartola pequena e uma vestimenta elegante de cor roxa, embora estivesse desgastada e rasgada. Revirei a cabeça para seguir caminho e mantive Louis protegido entre meus braços.”
“Pareceu não estar nos seguindo, devia ser só mais um esquisito nos julgando. Era melhor não contar para Caius, ele teria feito um alarde em meio a tanta gente. No fim do entardecer, as lamparinas que ficavam dispostas entre as moradias e os comércios foram sendo acesas, uma por uma. Enquanto algumas pessoas se direcionavam á taberna local, nos escondemos em barris e outras tranqueiras jogadas na viela detrás do estabelecimento. Caius havia se cansado de fuçar no lixo a muito tempo, então de um tempo para cá, nossa dinâmica ficou mais perigosa.”
“As vozes foram cessando, não havia mais gente pelos arredores, era o momento crucial de tentarmos algo. O tempo foi se fechando e começou a chuviscar sob nossas cabeças quando saímos do esconderijo.”
— Laurient, sobe.
“Entrei pela janela aberta mais próxima, junto com o Louis. Enquanto Caius ficava de guarda, espreitando para avisar-nos de um possível perigo. Caímos em um depósito antigo, que exalava á mofo. Estava escuro, como de costume, mas as finas brechas nas tábuas de madeira das paredes permitiam entrar um pouco da luminescência das tochas do lado de fora. Girei a maçaneta da saída dos fundos, mas não deu em nada. Nas prateleiras havia temperos, vegetais e garrafas de óleo. Alguns sacos de farinha e potes de conservas dispostos no chão. Há barris de tamanhos variados encostados nas paredes, quase vazios, suas tampas mal ajustadas indicando o uso constante. Pequenos fiapos de teias de aranha surgem nos cantos. Mas sem carne alguma.”
“Saqueamos o que podíamos e passei a comida pela janela. Escutei a madeira podre rangendo do outro lado da porta, uma chama se aproximava. Escalei a janela às pressas, mas Louis era baixo de mais. Caius me segurava enquanto tentava puxar o pequeno pelos braços. Segurei em suas mãos e puxei-o com tanta força que minhas veias pularam do braço. O trinco enferrujado da porta rilhou, foi um alarde de desespero para nossos ouvidos. O sapato de Louis prendeu em um prego torto. Gritou de dor quando o passamos pela janela. Olhando pelo canto do olho, a figura de um homem com um avental cinza ensanguentado apareceu afugentando a luz.”
— Vermes imundos!
“O troglodita vinha em sua direção, mas consegui retirá-lo a tempo da janela. Ele caiu no chão em cima da perna, gemendo de dor. Caius pegou-o no colo pelas costas. Corremos sem pensarmos duas vezes pelas sombras da cidade. Um estrondo reverberou pelo ar, era o som da porta quebrando com toda força em pedaços…”
— Caius, não olha para trás, só continue correndo! — As sobrancelhas de Louis quase tocavam em seu cabelo.
“Senti um pingo d’água caindo em meu nariz. Os ewulianos tinham o péssimo costume de revestir o solo com pedras e minerais mortos, destruindo toda a terra fértil. Por causa disso, o ar ficava abafado e úmido quando chovia, podia sentir subir pelos meus pés e adentrar em meu nariz, dificultando a respiração. Mudávamos de cenário a toda hora, viela por viela, mas aquele louco ainda nos perseguia, mesmo que não fosse tão rápido. Mesmo que respirasse ofegante, o cansaço parecia estar ofuscado pela adrenalina.”
— Droga, o Louis está começando a pesar! — Os passos de Caius reduziram.
“Notei a trilha de sangue feita pelo ferimento do menino. Arranquei um pedaço do tecido da minha roupa e enfaixei seu pé, enquanto quase me chutava e me insultava. Passamos por mais algumas ruas e a princípio pareceu que funcionou. Mas Caius parecia ficar cada vez mais cansado. Por mais que tivesse um bom porte físico, estava começando a ofegar. Seu passo Reduziu e não conseguia me acompanhar com tanta facilidade. Até que o homem voltou a nos perseguir.”
— Eu tive uma ideia, continua correndo e confia em mim.
— Certo, mas não vá fazer besteira.
“Quando viraram a esquina, fiquei mais um pouco e esperei o grandalhão aparecer. Joguei uma tábua de madeira para ele ficar mais irritado.”
— Aí, seu ewuliano de merda, vou comer toda a comida que roubei. — Estirei o dedo e virei a outra viela para despistá-lo, e ele veio atrás de mim. “Deu certo” pensei. Mas, um pouco mais a frente, senti em instantes uma mão pesada vindo das sombras do corredor, desferindo um soco em meu rosto, então apaguei.
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