Capítulo 7: ... Do que dois voando
Diário de Laurient
Dia 36, Arsorah.
Ano 523 d.F
“Tudo estava meio confuso. Despertei com a visão turva, os ouvidos tinindo e um gosto de ferrugem na língua. Ainda tonta, mexi um pouco a cabeça e comecei a ouvir grunhidos e sons um tanto irreconhecíveis. Exausta, fui retomando a consciência aos poucos, até que a figura de um homem alto e magro, mas de forma atlética, começou a se formar à minha frente. Ele estava próximo, próximo até demais. Usava um coturno negro simples e uma blusa de tecido roxo por baixo, além de algo que alguns Ewulianos utilizavam: um colete social, embora um pouco rasgado. E seu rosto… era aquele mesmo estranho de antes!”
“Ao seu lado, uma figura robusta, que acredito ser seu comparsa, segurava uma mini cartola, protegendo-a da ventania. Seus longos fios negros de cabelo balançavam ao mesmo vento gélido que ricocheteava em minha nuca. Ele estava me olhando de cima para baixo. Foi então que percebi as correntes que me prendiam a uma cadeira, embora com o braço direito livre. Os murmúrios vinham do lado. Caius e Louis estavam amarrados com cordas e tinham as bocas tapadas. Atrás de nós, havia uma ravina profunda, com as águas de um rio caudaloso rugindo lá embaixo. Eu estava fraca demais para gritar por ajuda.”
— Louis… — Foi o primeiro a quem me preocupei ao olhar para os dois.
“O homem pôs um pé no escabelo da cadeira e pegou em minha mão, tentando encontrar maneiras de entrelaçar nossos dedos. A palma nua de sua pele esbranquiçada esfriava a minha, suada pela corrida de uma tentativa falha de fuga. Havia tatuagens geométricas estranhas marcadas por toda a mão, que pareciam percorrer até o braço. Não aparentavam significar nada. Parecia estar confuso e, ao mesmo tempo, admirado com a minha peculiaridade. Tive medo de negar seu toque, dada a situação.”
— Fascinante… Vê, Roderick? Uma garota de seis dedos, das mãos aos pés. — Largou minha mão vagarosamente, aproveitando cada contato entre nossa carne. — Possuo exemplares com afinidades e divergências inusitadas, mas este… toda vez eu me surpreendo com algo novo. É sempre fascinante.
“Na outra mão residia uma luva. Parecia ser feita de pano costurado a uma malha firme. Apesar de sua aparência antiga, estava estranhamente conservado de forma impecável. Os desenhos pintados no tecido lembravam suas tatuagens.”
— Quem… é… — perguntei com a voz abafada.
— Ah, sim… Perdoe-me os modos. Por favor, me chame de Destadt, Vann Destadt. — Beijou minha mão com os lábios secos.
“De longe, senti o olhar perfurante de Caius ao ouvir aquele nome. Não sabia se significava algo, mas, por aqui, ter dois nomes era sinônimo de poder. Olhei-o com certa rispidez, e ele respondeu com um sorriso amigável, expressando-o nos olhos. Estalou os dedos e seu capacho pendurou os garotos na ravina, segurando-os pela corda.”
— O que está fazendo?
“Soltei um grito rouco e o sangue foi espalhado pelo vento. Os meninos se debatiam e balbuciavam. A cada vez que olhavam para baixo, a situação piorava. As pedras pontiagudas os convidavam para uma morte certa. Caius expressava agressividade, e Louis, seu medo costumeiro de tudo.”
— Vamos direto ao ponto. — Ajeitou a luva. — Quero que façamos um trato, ou melhor, que trabalhe para mim.
“A forte ventania dramatizava cada vez mais o momento. Meus amigos gritando em desespero; Seu cabelo esvoaçando no vento como o rio abaixo de nós; minha consciência perturbada; meu coração acelerando… tudo parecia rápido demais.”
— Você fará tudo o que eu mandar daqui em diante. Em troca, digo a Roderick que solte seus amigos. Concorda? — Estendeu a mão em minha direção, olhando fixamente, com aquelas mesmas bochechas infladas.
“Um arrepio percorreu minha espinha. A escolha parecia óbvia, clara até demais. Era a morte dos três ou o fim da minha liberdade. Tudo estava em minhas mãos. Forçaram essa situação para que eu não tivesse escolha, e a morte não era uma opção. De cabeça baixa, segurei sua mão e aceitei meu fatídico destino. O que importava naquele momento era a segurança dos garotos. Os traços da luva percorreram meu braço até o ombro, desenhando figuras harmoniosas únicas.”
— Uma marca indelével. É belíssima, não concorda?
“Suas tatuagens, juntamente com os desenhos na luva, começaram a demonstrar cores exuberantes: a de seu braço, um vermelho escarlate; e na manopla, uma tinta negra. Vagarosamente, a minha foi ganhando cor; um tom de púrpura cintilava na marca tatuada, afugentando a escuridão da noite. Roubou a atenção de Caius e Louis, que até pouco se debatiam.”
“Era como uma chama que se alastrava, mas de forma calorosamente confortável. Parecia sentir mais alguma coisa, mas não com os cinco sentidos. Como se estivesse em toda parte, pertencendo à própria natureza ao redor. Naquele momento, não pensei muito sobre isso; o medo prevalecia sobre o mistério. Diferente das formas geométricas em sua mão, as linhas criaram as asas de um ninfalídeo, um inseto conhecido por sua delicadeza e beleza, possuindo diferentes cromas.”
— Solte… eles. — Sussurrei, olhando aos seus pés.
— Roderick, pode soltá-los. — Estalou os dedos.
“O homem bufou e abriu a mão de uma só vez. A corda foi arrancada pelo vento, indo em direção ao penhasco abaixo. Minha sonolência logo foi tomada por um susto desperto.”
— O que você fez! — Empurrei-me em direção ao abismo, mas a perna da cadeira quebrou antes.
“Fiquei derrubada ao chão, escutando os gritos abafados pela altura e pelas bocas tapadas de mal jeito. Era uma distorção? Aquilo era uma ilusão ou só mais um sonho? Foi uma falsa promessa? Não… minha dúvida cessou no momento em que escutei o som da correnteza sendo abafada pelo estrondo da queda.”
— Por que os matou? — Tentava me libertar das correntes.
— Hmm, para duas crianças enxeridas saírem por aí espalhando boatos sobre mim? Eu acho que… não! Sem contar que o prometido foi mandar soltá-los, e foi o que fiz. Deveria prestar mais atenção aos termos de um contrato. — Se agachou do meu lado.
“Soou um estalido com os dedos e o grandalhão me colocou nas costas, como um saco de trigo. Fitei-me no fundo daquele abismo, observando as duas silhuetas se movimentando nas águas violentas, cada vez mais se afastando. Comecei a evocar um antigo ritual do meu povo para aqueles que se vão, proferindo-o em um baixo tom.”
— Pode soltá-la, por enquanto.
“Pude ler em sua expressão austera: se ele quisesse me matar, já teria feito. A partir daquele momento, eu não passava de um objeto para tal, assim como para qualquer Ewuliano. Apesar de me tratar com desgosto, não havia engano em seu olhar. Após me recompor, Destadt se afastou para longe, sem dizer uma palavra. O homem que o acompanhava me encarou por um tempo e seguiu-o, balançando a cabeça.”
“Os passos na grama, a respiração pesada de Roderick, o fluxo da correnteza, as folhas, os insetos e as aves noturnas… tudo se extinguiu. O silêncio reinou em minha mente. A álgida ventania me acomodava em meu devaneio… Queria que fosse tão fácil assim. Arranquei uma parte da grama em um ato de dissuasão. Levantei-me e olhei para o fundo do abismo.”
— Que sensação estranha, é como se nada mais fosse real. — Foi o questionamento que invadiu meus pensamentos diante de tanta calmaria. Então, tudo retornou.
“Os passos pararam sob a grama. Então, é isso… mais dois corpos jogados à sarjeta… e uma escrava. Ajoelhei, manchei minhas mãos com a terra úmida e a espalhei pelo rosto.”
— Quer que eu a traga, chefe? — Roderick deu um passo.
— Não a impeça.
“Caius, me perdoe por não termos nos conhecido melhor. Louis, que sua vontade viva em mim. Arranquei a semente de um fruto nas proximidades e ali a enterrei, nos limites daquele precipício. Sornenm, cuide dos espíritos deles. Que reencarnem longe de toda essa corrupção. E faça das raízes dessa árvore, tão firmes quanto nossa fé.”
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