Dia 32, Arsorah.
    No dia seguinte, acordei em casa com o corpo dolorido e o dedo anelar inchado. Havia um caldo recentemente cozido em cima da mesa, assim como massas e frutas. Minha tia devia tê-lo feito e saído mais cedo. Após agradecer a refeição, fui ao campo de cultura voltar ao trabalho, como em todas as manhãs. Estava arando a terra ao lado do cercado das lumplumas. O calor do sol era intenso, senti o suor escorrendo pelo meu corpo, mas as roupas não estavam visualmente molhadas. Fitei-me curiosa em uma lumpluma…

    — Mas… elas não estavam todas mortas?

    O céu ficou fortemente laranja. todos olhavam em minha direção, mas seus rostos estavam distorcidos. A realidade parecia estar se quebrando. Soltei o ancinho e entrei em pânico… em um piscar de olhos, toda a plantação se transformou em uma plataforma de madeira com pessoas em seus arredores, me olhando com desprezo e curiosidade.

    Antes de reagir, as tábuas se quebraram e me encontrei no topo da colina. Senti uma mão me empurrando e cai daquele despenhadeiro, indo de encontro à correnteza da ravina. A água ficava cada vez mais densa e escura. Nadava bruscamente para me manter na superfície, debatendo-me com os braços. Surgiram correntes do fundo do rio, entrelaçando minhas mãos e meus pés. Tão fundo… afogaram até as minhas esperanças.

    Foi quando vi o cadáver de Louis flutuando sob grãos vermelhos de areia. Esse decrépito sentimento encheu o vazio que a água deixara, era melhor que o nada. Seu peito estava perfurado por uma estalactite. Abracei-o, segurando sua cabeça com o toque suave de minhas mãos, enquanto acariciava seu cabelo macio. Mas eu continuava afundando… não queria levá-lo para a escuridão do abismo. Ao soltar sua mão em um último ato, seus olhos se abriram, emanando uma cor vibrante. Afugentando aquela escuridão abissal com um esbelto azul celeste.

    — Você pode se entregar ao abismo, ou pode lutar pela superfície. A escolha nunca foi da correnteza, sempre foi sua. Não deixe ser tudo em vão, Laurient.

    Despertei com o coração palpitando e a respiração ofegante, tentando respirar o máximo possível. Eu podia ver o suor. Mas o que acabou de acontecer? Pareceu tão real, deveria ser real… faltava pouco para amanhecer, só o recém cantarolar dos pássaros para acalmar minha mente depois de um sono intranquilo. Meus olhos estavam inchados, apresentando um vermelho tênue. Meus pulsos, acorrentados de forma apertada. Mal consegui descansar na madrugada anterior. Me colocaram para dormir em um tipo de depósito em cima de uma carroça.

    — Acorde! — Já era a segunda vez que a mulher, parada em frente ao vagão, repetia.

    Seu sotaque era estranho e distinto, mas compreensível. Sentei-me no chão ainda um pouco zonza, com a mão apoiada no joelho.

    — Eu serei sua mentora, te mostrarei o mostruário de Destadt, suas tarefas… Argh. — Ela parecia nervosa, era perceptível em sua voz falha. Respirou fundo e seguiu. — E as tarefas diárias que fará.

    — E o homem da cartola? Vann…

    — Irei levá-la até ele. Mas saiba que o mestre Destadt é um homem ocupado, ele tem negócios mais importantes para tratar. Então, estará sob minha supervisão na maior parte do tempo. Siga-me.

    Segurei na grade do vagão para me apoiar e ver a paisagem. Instintivamente, apertei as pálpebras devido a claridade. Parecia que tínhamos nos locomovido um pouco. Estávamos em uma área que eu desconhecia. Nounhill estava distante, mas ainda era visível há muito longe. Pelo visto, o sono não tinha sido tão ruim assim. O horizonte se expandiu de forma esplêndida diante de mim. Imponentes montanhas inescaláveis com picos nevados. As copas dos pinheiros balançavam com o zéfiro matutino. A vegetação era coberta por arbustos, dispostos em uma descida ao lado de uma trilha. Novos lugares, novos horizontes.

    Haviam outros vagões de carroça, uns pareciam se conectar, já outros, ficavam isolados. A moça estava me guiando em direção a um pequeno acampamento alojado em um local mais distante, com uma tenda improvisada em um estofo amarrado nos troncos das árvores. Ela andava com as mãos nas costas, uma por cima da outra. Parecia estar segurando um papel entre os dedos.

    Pelo trajeto, algumas pessoas do acampamento me observavam, uns riam baixo, outros balançavam a cabeça como um sinal de negação e os demais mantinham os olhos baixos. A maioria parecia estar atarefada com algo. Elas eram consideravelmente distintas entre si, desde a cor da pele até… suas variações anatômicas.

    Ao mesmo tempo que é impressionante, também é amedrontador o fato daquele homem juntar todas essas pessoas em um só lugar. Todas marcadas, todas maculadas.

    A garota afastou o toldo, que mantinha Vann separado dos demais e permitiu a minha entrada. Ele estava sentado em frente a uma escrivaninha revisando alguns artigos. Os papéis e os livros pareciam antigos, exceto pela caderneta a qual escrevia suas epifanias momentâneas ou ideias cativantes, era como dizia. Estava utilizando um tipo de vidro envolto de um metal em seu olho. Tão indefeso… e eu, tão imprudente.

    — Bom dia, mestr…

    — Seu desgraçado!

    “Tão perto”, veio à minha mente. Um mero passo em falso com intenção de matá-lo, e a marca em meu braço apertou abruptamente, quase rasgando minha carne. “Mas tão longe”, conclui.

    — Tola, nem se quer uma divindade pode romper esta marca. Aliás, seu braço deveria estar em pedaços agora, eu sabia que você seria um tanto interessante para minha coleção.

    “Merda…”, me acanhei.

    — O que é isso em seu rosto? — Minha voz estava cansada.

    — Ah, isso? – Apontou para tal objeto. — É um monóculo. Comprei de uma simpática dama na região de Corallea.

    — Corallea? E serve para quê? — Minhas sobrancelhas estavam apertando de tanta dúvida.

    — Você é curiosa, mocinha. Isso é bom, muito bom… sabe, todos possuem suas peculiaridades, adaptações diferentes resultam em corpos diferentes. Cada um tem sua maneira de perceber o mundo. Não sentimos o mesmo gosto ao comer a mesma fruta, nem sempre vemos as mesmas cores que abrangem este mundo. Você entende?

    — Posso tentar. — Facilmente podia ser medida a ignorância em meu tom de voz.

    — Este item permite que, de alguma forma, minha visão se torne nítida novamente. Assim, eu posso, por exemplo, focar nas palavras deste livro. — Levantou o manuscrito. — Pegue, veja com seus próprios olhos. – Pôs o objeto em minhas mãos.

    Coloquei o monóculo para experimentar, segurando pelos dois dedos.

    — Que estranho, tudo parece estar borrado.

    — Exato! Não é intrigante? Mas quando sou eu quem o utilizo, volto a enxergar como se fosse a tempos atrás, antes de meus olhos se cansarem.

    Neste momento, eu parei para refletir. Eles não eram como nós, mas também não eram como os ewulianos. Foi a primeira vez que conheci pessoas de culturas e etnias distintas. Me veio à mente a lembrança de quando Louis disse que o suídeo tinha a mesma cor das plantas, mas eu não enxerguei assim… Era a isso que Vann tinha se referido? Uma maneira de ver o mundo de uma forma diferente.

    — Mestre…

    — Perdão, eu ainda não sei o seu nome. – Abaixou o monóculo.

    Não podia esquecê-los. Tantos pensamentos intrusivos que me invadiram a mente. Ele os matou sem pestanejar, isso é um fato. E age como se fosse nada demais. Eu deveria estar com muita raiva, mas aquele sonho… é como se ele realmente tivesse me dito aquilo. Mas agora estou confinado a fazer os desejos de um homem. De qualquer forma, foi o que fiz por todo esse tempo, desde que nasci na colônia. Apenas aceitar e fazer exatamente o que me mandavam.

    — Você não merece pronunciar meu nome. — O que eu fiz? Eu não deveria tê-lo confrontado com tamanha grosseria.

    — Tudo bem. — Levantou as mãos por um momento. — Até lá, te chamarei de… Koran. Significa “roxo” para os Unraleanos. — Vann sorriu ligeiramente e voltou-se aos papéis.

    — Mestre, o arauto da cidade de Dealina enviou esta carta. — A moça estirou a mão em sua direção.

    — Coloque a carta em cima da mesa. E leve a garota daqui — afirmou sem tirar sua atenção dos papéis.
    Ela o reverenciou de cabeça baixa e saiu. Não pude parar de olhá-lo. Até ontem era apenas uma figura misteriosa me observando pelas ruas de Nounhill. É uma sensação estranha e inexplicável que arrepiava os pelos do meu braço. Um homem estranho que parecia conseguir tudo o que quer. Era a minha percepção sobre ele até então. E eu continuava o fitando, como se fosse aviar todas as minhas dúvidas, como se algo de diferente pudesse acontecer a qualquer instante. Mas a mentora tocou em meu ombro, tirando-me daquele transe.

    — Vamos — disse de um jeito que soou agressivo.

    — Espere. — Seu olhar estava distante. — Não, ela não terá serventia. Prenda-a novamente na cela, e quando chegarmos à Dealina, ela irá para o Coliseu.

    — O que é isso? — Fiquei perturbada com o silêncio arrebatador enquanto a mulher me levava. — Alguém me diz o que é esse Coliseu!

    Virei-me vagarosamente. Ele não parava de focar naqueles papéis, mesmo não parecendo se interessar tanto quanto a alguns momentos atrás. A garota levou-me de volta para o vagão do início daquela manhã. Quando fechou a grade, me disse:

    — Eu sinto muito, mas não serei mais sua mentora.

    Apoie-me

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota