Capítulo 9: Enclausurada
Dia 9, Arsorah.
O metal se tornava cada vez mais pesado, um fardo o qual me acompanhava muito antes dessas correntes. Como se pertencesse à minha essência, ou até mesmo como se fosse uma extensão do meu próprio corpo. Prendiam meus pulsos com força, rangendo com o movimento das minhas mãos. Os guardas me puxavam como um animal de carga, enquanto os archotes iluminavam o caminho como uma viseira, guiando-me para um fatídico destino.
Havia escutado histórias sobre o Coliseu pelo caminho, mas nada me preparou para o que vi ao atravessar seus portões pesados. Era uma grande arena construída com pedras maciças, como se fosse esculpida por dentro de uma montanha. Estava fechado no topo por placas de metal, como também em algumas partes das paredes. Era possível escutar gritos distantes reverberando pelo material, além do eco dos nossos passos pelo chão empoeirado. Posso imaginar quantas batalhas épicas e sangrentas ocorreram. O sangue deles tingindo o campo de batalha… o vislumbre escarlate em suas armaduras… escorrendo por suas lâminas. Quanta fome.
A mão de um dos soldados me empurrou para frente, e eu quase tropecei. Ele me jogou para dentro de uma cela e bufou com cansaço, parecendo não estar a fim de nenhuma conversa fiada. Sentei-me no chão e esperei o tempo passar. O ócio se tornou uma meditação para mim nesses últimos dias. Ao olhar para o lado, meu coração saltou pelo susto. Um homem, ou o que restava dele, sentado em um canto, curvado como um cadáver esquecido. Sua pele parecia cera envelhecida, seu olhar vagava perdido pelos cantos da cela. Quando ele percebeu minha presença, algo brilhou em seus olhos, um resquício de sanidade lhe acordou para a realidade.
— Você… não veio para ele, veio? — sussurrou com a voz trêmula, assustado.
— Estou presa e acorrentada, o que você acha?
— Vann Destadt…. Hahahaha. – Velho maluco.
— Você… – Minha curiosidade superou o medo.
— Eu trabalhava para aquele desgraçado. — Sua sanidade parecia ter voltado.
Ele assentiu. Olhou para as correntes em meus pulsos como se enxergasse nelas um reflexo do próprio passado.
— Eu era um pesquisador, parte de seu círculo mais próximo. Ele me prometeu conhecimento, descobertas que o mundo jamais imaginaria. Mas eu não sabia… não sabia suas verdadeiras intenções. Ele se escondeu atrás de um nome falso. E, no fim, quando eu não tive mais uso para ele, tornei-me uma de suas cobaias. — Cruzou os braços como uma criança birrenta.
— Ele forjou seu nome? — Eu murmurei, absorvendo o peso da revelação.
— Hahahahaha… Vann Destadt. — Apertou os dedos sobre os olhos, como se estivesse afogando em agonia.
“Haja juízo. Sornenm, abençoe-me com paciência para que eu não mate este velho.”
— Sim. Nunca houve um Destadt de verdade em Ubran. Apenas um homem ambicioso o bastante para tomar tudo o que desejava. Usou o sobrenome da família para adquirir este local de forma “legal”. Antigamente, esta estrutura era uma arena utilizada pelos Destadt para torturar seus opositores, pessoas inocentes. — Ele ergueu o olhar para mim com certa intensidade.
— Por que me contou tudo isso?
— Você já ouviu falar – ele fez uma pausa dramática e olhou para os lados, acho que a loucura o havia vencido novamente. — Sobre a Distorção?
— A Distorção… — Balancei a cabeça, confusa.
— Sim. Por ser um poder raro e perigoso, tornou-se alvo de repúdio entre os devotos de Crowny e, com o tempo, foi esquecido por muitos. Já foi muito utilizado em um tempo antes desse. Ubran usa a manopla para explorar pessoas em condições de miséria, em que não possuem escolha a não ser aceitar seus contratos. São juramentos inquebráveis, e quem desobedecer sua parte… morre. Mas você já deve ter entendido isso. — Apontou para meu braço marcado. — A distorção… é algo que vai além de nossa compreensão, e essa relíquia é uma das poucas restantes.
— Mas então…
— Vann… Vann… Hahahaha Destadt.
“Pobre alma perdida.”
— Me… me desculpe, é a doença, ela está me enlouquecendo.
— Continue, hehehe. — Afastei-me o máximo para longe dele.
— Alguém precisa detê-lo. Ele possui uma arma poderosa, e após sua morte, não deve cair em mãos erradas, não novamente. As pessoas precisam saber, as relíquias distorcidas devem ser destruídas.
“Espero que esse velho fique longe das minhas entranhas.”
— Silêncio. — Parou por um instante. Era visível o medo estampado em sua face. — Eles estão vindo — disse rapidamente em uma voz trêmula.
Se escondeu nas sombras e começou a cavar o chão como uma toupeira. O que fizeram com este homem para deixá-lo assim?
— Como assim alguém está vindo? Não escuto nada. — Porém, o som dos passos ficou audível após alguns segundos.
Uma figura apareceu sob a vastidão daquele corredor. Ele largou uma tigela de madeira no chão, perto das grades. O líquido dentro dela era espesso e de odor azedo, podendo senti-lo mesmo antes de pôr a colher perto da boca.
— Que nojo, até a comida da colônia supera essa.
— Cala a sua boca.
— Aposto que só diz isso para sentir o gosto da superioridade. — Fiz o sorriso mais maçante possível.
— Você é irritante. — Vagarosamente tirava a espada da bainha para me intimidar.
— Abre a cela e vem me peitar, otário. Nem preciso tirar minhas algemas. Será a sua lâmina contra meus dentes. — Abri bem a boca.
Ele me fitou fixamente até soltar uma gargalhada breve.
— Hahahaha. Vocês me divertem tanto. Não preciso te descer o sarrafo, já vai ser torturada amanhã mesmo, eu sinto é pena.
Curvei a cabeça e encaixei a mandíbula em uma das barras da cela. Apertei aquele ferro pútrido até amassar. Seus olhos se abismaram ao observar aquela cena.
— Argh, esse gosto é horroroso. “Aê”, vocês não lavam isso aqui não?
Ele saiu devagar até deixar uma brecha na porta, e então falou:
— Apodreça no inferno, seu monstro.
— Merda. — Soquei a parede.
“Se eu não lamber pelo menos uma gota de sangue até amanhã, talvez esse velho acabe morrendo.”
O antigo cientista estava encolhido no chão. Tremia como se estivesse enfrentando o rigoroso inverno de Arktarr. Com as mãos ainda presas pelas correntes, peguei o recipiente e forcei-me a beber. O gosto era horrível, uma mistura amarga e rugosa. Nesses últimos dias, a comida comum voltou a servir, consigo conter minha fome com ela, mas não a vontade… não o meu desejo por poder.
Pelo visto, eu adquiro as características de quem devoro. Isso pode até ser útil, mas, se for alguém mais fraco, também ficarei mais fraca. E se for assim mesmo, eu prefiro evitar mordiscar essa pilha de ossos aí. Estou viciada nisso, nessa força que percorre meu corpo a cada mordida. Mas talvez, em um estado de transe, eu evite atacar os fracos.
Deitei-me no canto da cela, o chão frio contraia os meus músculos. Fechei os olhos, desafiando o desconforto daquele local. Uma hora, o sono chegou como um rápido presságio para a tortura que aconteceria no amanhecer daquela madrugada.
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