Capítulo 30 - Recomeço
O sol mal havia rompido a linha do horizonte quando eles partiram. O orvalho escorria das folhas grossas e pingava em gotas pesadas sobre a terra encharcada. O ar úmido grudava na pele, como se cada respiração arrastasse consigo o peso da própria floresta.
Glartak seguia à frente, passos firmes, abrindo caminho pela vegetação cerrada. Cada galho quebrado sob seus pés soava como um estilhaço no silêncio sufocante. Shivana caminhava no centro, esguia, seus olhos âmbar atentos a cada detalhe, como uma fera sempre à espreita. Primal vinha por último, carregando no ombro largo o imenso machado que Glartak havia deixado cravado na entrada da caverna. Os músculos do grandalhão permaneciam tensos, prontos para agir ao menor sinal de ameaça.
A marcha era lenta, carregada. Não havia pressa, mas havia peso. O silêncio entre eles não era apenas de cautela — era também de reflexão, e esse fardo recaía principalmente sobre Glartak.
As palavras de Shivana ecoavam em sua mente como um sussurro persistente: filhos mais fortes, leais desde o nascimento. Algo completamente novo. Uma chama capaz de incendiar não apenas a esperança de uma raça, mas também sua ruína, se mal usada. Ele sabia que aquilo era uma chave. Mas chaves só abrem portas quando se tem paredes, teto… quando se tem um lar. E eles ainda não passavam de três sombras perdidas em meio a um mundo hostil.
Glartak parou de repente. A floresta pareceu conter a respiração. Seu olhar dourado ardeu sob a luz filtrada pelas copas altas.
— Estamos mais fortes… — disse, a voz grave cortando o ar como uma lâmina. — Mas somos poucos em número. Precisamos achar um lugar para recomeçar. Não quero mais viver escondido… — seu maxilar se contraiu, os punhos cerraram-se. — …mas a força sem números é um convite ao cerco. À bestialidade. Recuaremos, mas não para covis. Para um ventre. De onde nascerá algo que não precisará mais se esconder.
Shivana ergueu o olhar, surpresa pelo tom de frustração, mas em seus olhos não havia julgamento. Primal manteve-se imóvel, como uma rocha, aguardando apenas a ordem.
Glartak prosseguiu, cada palavra carregada de contrariedade:
— Vamos continuar seguindo até encontrar uma caverna… ou um ponto onde a floresta seja mais fechada. Precisamos de abrigo, precisamos de tempo. Só assim aumentaremos nossos números… ou ficaremos fortes o bastante para não precisar mais nos esconder.
Primal ergueu o punho e bateu contra o peito em saudação firme. — Sim, meu senhor. — Sua voz grave soou como trovão abafado.
Os olhos âmbar de Shivana fixaram-se em Glartak, buscando algo além das palavras — talvez dúvida, talvez um lampejo de fraqueza. Mas nada encontraram. Apenas a decisão de ferro. Assim, ergueu a mão direita ao peito e repetiu a saudação.
— Sim, meu rei.
O grupo voltou a marchar.
Foram mais de quatro horas de caminhada ininterrupta. O sol subia devagar, filtrando-se pelas copas espessas, e o chão tornou-se um mosaico de luz e sombra. O ar estava mais denso, impregnado de umidade e do cheiro de madeira em decomposição. Quanto mais avançavam, mais a floresta mudava. A vegetação se tornava sufocante, os galhos retorcidos pendiam como garras, as raízes erguiam-se em arcos grotescos, obrigando-os a desviar ou rastejar. O silêncio era quase absoluto, quebrado apenas pelo zunido de insetos e o farfalhar distante de criaturas menores fugindo de sua presença.
Glartak ergueu a mão, ordenando que parassem. Seus olhos dourados percorreram a mata com atenção. Cada detalhe, cada sombra, cada fenda entre as árvores era analisada como se fosse um campo de batalha.
— Primal. — disse, seco. — Faça a volta. Veja se há sinais de monstros… ou de outra coisa.
O grandalhão assentiu, desaparecendo entre as árvores com a naturalidade de uma fera voltando ao covil.
Shivana aproximou-se, voz baixa, quase um sussurro. — Este lugar… é mais selvagem. Mais fechado. Difícil de ser encontrado. Pode servir.
Glartak manteve os olhos no entorno, calculando. O ar pesado, a umidade, o silêncio absoluto… tudo parecia conspirar para que aquele território fosse deles. Ainda assim, não se apressava.
O tempo passou. Primal retornou por fim. A respiração era pesada, mas não havia marcas de combate.
— Nada. — disse simplesmente. — Nenhum monstro. Nenhum rastro. Silêncio absoluto.
Glartak permaneceu imóvel por alguns instantes. Seus punhos se cerraram atrás das costas, o olhar dourado perdido entre as copas altas. Então, por fim, falou:
— Aqui. — Sua voz soou como uma sentença. — Aqui vamos recomeçar.
As palavras pareceram pesar no ar. Shivana ergueu os olhos, e um brilho selvagem dançou em seu olhar — não de dúvida, mas de algo instintivo, faminto. Primal apenas assentiu, como se tivesse esperado aquela decisão desde o início.
Glartak inspirou fundo, absorvendo o cheiro da terra molhada, da madeira podre, da vida oculta sob a floresta. Aquilo não seria apenas um esconderijo. Seria o alicerce para o que ele almejava.
Enquanto Glartak começava a organizar seu novo lar, cortando galhos, empilhando pedras e demarcando o espaço em que ergueriam a base de um refúgio, a algumas léguas dali, na entrada de uma caverna, um grupo de homens permanecia em silêncio.
O ar ali era mais seco, mas carregava consigo o cheiro metálico de sangue velho. As marcas no solo contavam uma história que nenhum deles compreendia por completo.
O primeiro a romper o silêncio foi um homem magro, vestido como aventureiro. Seus olhos se moviam de um lado para o outro, inquietos. Se Primal estivesse presente, reconheceria de imediato aquele rosto: o batedor que escapara vivo do massacre.
À frente do grupo, destacava-se um homem de cabelos grisalhos. Ele permanecia imóvel como uma estátua, seus olhos—de um cinza tão frio que parecia perfurar a sombra—fixos em um ponto: um machado cravado no chão.
Ninguém ousava interromper seus pensamentos. A quietude dele parecia mais pesada que o aço.
Atrás, alinhavam-se cinco guerreiros. Diferentes entre si, mas unidos por uma mesma aura de disciplina e seriedade. Todos encaravam o machado como se diante de uma sentença ainda não escrita.
Foi o mais jovem entre eles quem rompeu a tensão:
— Esse machado poderia ser um aviso?! — A voz carregava um misto de curiosidade.
O batedor, aproveitando-se do silêncio quebrado, ergueu novamente a voz, chamando a atenção de todos:
— Eu disse que havia algo estranho! Não foram simples goblins… eles não lutaram como goblins e o mais absurdo de tudo é que falavam como nós.
Um dos homens, alto, de porte firme, com uma espada larga presa às costas, falou em tom baixo, mas seguro. Seu rosto sério, marcado pela vida militar, percorria cada detalhe do cenário.
— Se não foram goblins, o que foi então?
O olhar de todos se voltou, como que instintivamente, para o homem grisalho. Foi então que ele ergueu o olhar, fitando a escuridão absoluta da caverna. Sua voz, quando veio, não quebrou o silêncio—ela o cortou, com a frieza de uma lâmina afiada.
— Vamos entrar.
— Sim, senhor! — responderam todos em uníssono.
Um a um, avançaram, até serem tragados pela escuridão da caverna.
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