Quando seus olhos se abriram, não encontrou luz, conforto ou qualquer traço de familiaridade. Apenas escuridão — densa, sufocante — que parecia engolir até os próprios pensamentos. Mas aquilo não era o pior. Havia algo mais feroz, mais urgente: uma fome crua, selvagem, que corroía suas entranhas como lâminas afiadas. A ideia de devorar o próprio braço surgiu em sua mente, grotesca… mas, por um instante, estranhamente plausível.

    Com esforço, ergueu-se. O corpo tremia, pesado, como se cada músculo estivesse aprendendo a existir. Ao redor, a floresta se estendia imensa e estranha, árvores colossais projetando sombras vivas, flores de cores impossíveis e plantas que pareciam pertencer a outro mundo. Nada lhe era familiar, e, ainda assim, tudo pulsava com uma vitalidade ameaçadora.

    Não teve tempo de ficar deslumbrado, pois seus pensamentos se desfaziam como teias de aranha queimadas. A única coisa que restava, pulsante e primordial, era a dor cavernosa em seu estômago, um buraco negro que sugava toda a sua consciência. Estava perdendo a sanidade. Sentia que, se não comesse algo rápido, deixaria de ser o que quer que ele fosse e se tornaria só um bicho faminto. Começou a andar pela floresta, desconsiderando qualquer perigo em busca de algo que o saciasse. Era como se cada batida do coração ecoasse apenas uma palavra: devorar.

    Era um sentimento insuportável, quase palpável. Arrastava-se por quase dez minutos, cada passo custando um esforço quase sobre-humano. Pensamentos intrusivos e perturbadores invadiam sua mente: qualquer coisa ao alcance — folhas, raízes, até a própria pele — parecia, por um instante, uma possível fonte de sustento.

    Então, um cheiro pútrido atravessou o ar, penetrante e impossível de ignorar. Seguiu o rastro com a respiração pesada, e logo avistou a carcaça de um animal desconhecido. O fedor era horrendo, quase insuportável, mas, estranhamente, diante de seus olhos famintos, a visão parecia transformá-la em um banquete — uma chance de finalmente saciar aquela fome insana.

    Seu corpo reagiu por instinto e ele correu até os restos, começando a devorar como se tivesse perdido o controle do próprio corpo. A textura viscosa da carne em decomposição era um horror, mas seu paladar a recebeu como o mais doce néctar. O sabor de podridão era ofuscado pela pura onda de alívio que o inundava. Ele não mastigava, engolia pedaços inteiros, sentindo as larvas estourarem entre seus dentes serrilhados com um pequeno pop que sua mente faminta ignorava. Após alguns minutos comendo sem parar, sua fome foi saciada, sua mente pareceu clarear e voltou ao controle de si mesmo.

    Então o cheiro repugnante lhe deu as boas-vindas. Olhou para o que restava da carcaça no chão e para seu próprio corpo coberto de sangue e algumas larvas. Sentiu ânsia de vômito. Naquele momento, segurou com toda a força de vontade e se forçou a engolir o que subiu até sua boca.

    O pensamento de novamente passar por aquele sentimento de fome terrível e perder a sanidade lhe causou arrepios.

    Foi então que notou suas mãos: eram verdes e pequenas, e tinha apenas quatro dedos. Notou também que o que restava da carcaça era apenas a pele e alguns ossos maiores — o resto havia sido triturado. Passou a mão pelos dentes, que eram afiados como serras. Suas pernas eram pequenas, e ele estava descalço.

    Um pavor tomou conta dele naquele momento: era um monstro. Tentava se lembrar do que era antes, mas sua mente estava nublada. Viam-lhe algumas imagens desconexas, mas nada concreto. Ainda assim, sabia que não era um monstro.

    Saiu rapidamente dali, certo de que, se permanecesse por mais um instante, acabaria vomitando. Ju

    Andou por mais alguns minutos, agora com a mente um pouco mais clara, mas no fundo, bem no fundo, como uma pequena luz no fim do túnel, sabia que, se vacilasse, cederia aos instintos monstruosos e perderia sua sanidade para sempre.

    Continuou andando até chegar perto de um riacho. Cautelosamente, aproximou-se, pegou uma pedra e a jogou para ver se não havia algum predador à espreita. Esperou, andou ao redor e não viu nada.

    Após isso, aproximou-se até finalmente ver. Seu reflexo o encarava. Não era um pesadelo. Era sólido, real. Um gemido baixo, mais animal do que humano, escapou de seus lábios retorcidos. Ele tocou o rosto verde, puxou a orelha pontuda, ranhou o dedo em uma presa. A negação deu lugar a um vazio gelado, e então, por fim, a uma resignação absoluta. Não havia escolha. Aquele era ele agora.

    Levantou as mãos e começou a se lavar na água, tentando se limpar. Em seguida, bebeu um pouco de água; estava fria e fresca, descendo pela garganta e misturando-se ao gosto amargo da carne podre que ainda impregnava seu paladar.

    Afastou-se do riacho e encostou-se em uma árvore grossa e retorcida. Precisava pensar, precisava entender o que fazer a seguir. Olhou para suas pernas curtas, suas mãos deformadas… era claramente algo pequeno e fraco naquele mundo que lhe era completamente estranho. Se qualquer predador aparecesse agora, seria apenas mais uma refeição fácil. “Sobreviver.” Esse pensamento tomou conta de sua mente como uma chama tímida no meio da escuridão. Era tudo que importava agora.

    Olhou para o céu e notou que o sol ainda estava se pondo. Precisava se esconder, pois sabia que a noite seria perigosa — muitos predadores sairiam para caçar.

    A árvore na qual se encostou era velha, com raízes expostas como serpentes enroladas no chão e um tronco oco em sua base, grande o bastante para que ele pudesse se espremer dentro.

    Rastejando, encolheu-se o máximo que pôde, abraçando os próprios joelhos contra o peito. Ficou ali quieto, sem conseguir pensar em nada. Por instinto e medo, permaneceu em silêncio enquanto a noite passava, ouvindo rugidos, passos de outros animais e sons de luta ocasionalmente, enquanto ficava o mais imóvel possível esperando a noite passar.

    Não sabia quando pegara no sono, mas quando abriu os olhos já era dia, e novamente a fome começou a atormentá-lo.

    Rastejando, saiu debaixo das raízes da árvore e olhou ao redor, procurando algo que pudesse comer. Andou em uma direção aleatória e, pouco tempo depois, ouviu sons de luta. Aproximou-se com cautela, tentando se camuflar entre as folhas, e viu, de repente, um animal quadrúpede maior que ele, com duas presas saindo da boca e várias cicatrizes antigas pelo corpo. O outro era menor e mais ágil, também quadrúpede, com pelagem cinza.

    Eles se atacavam com ferocidade: mordidas, garras, investidas. O som deles se chocando e a carne sendo rasgada era audível, como se ele estivesse bem ao lado.

    Assistiu, hipnotizado, enquanto o quadrúpede com presas correu em direção ao menor com pelagem cinza, investindo contra ele sem dar tempo para que se esquivasse. Ouviu um estalo abafado e o som de ossos se partindo.

    O menor caiu no chão, inerte. O vencedor ficou em pé, arfando pesadamente, com o corpo coberto de feridas abertas e sangue escorrendo delas. Suas pernas tremiam, e seu peito subia e descia com dificuldade.

    Apesar da vitória, estava terrivelmente ferido. Tentou se aproximar do cadáver para reivindicar seu prêmio, mas suas pernas falharam. Cambaleou, caiu de lado e ficou lá, ofegando pesadamente, seus olhos meio fechados.

    Observando a luta, com o coração martelando no peito, ele viu uma oportunidade. A fome já o atormentava novamente; saliva encheu sua boca, e seus músculos tensos vibravam com uma mistura de medo e excitação.

    Com seu corpo pequeno, aproximou-se cautelosamente da criatura meio morta. Agachou-se, apanhou a maior pedra que podia carregar com seu pequeno corpo e então começou a bater a pedra contra a cabeça da criatura.

    Não sabia se era pelo tamanho e pelas escamas que a protegiam ou por sua falta de força, mas demorou vários minutos até que a criatura enfim desse seu último suspiro.

    Sentou-se ofegante pelo esforço, com o corpo todo sujo de sangue.

    Levantou-se animado em direção ao corpo, quando seus dentes tocaram a carne morna, uma voz fria, artificial, ecoou dentro de sua cabeça:

    < você alcançou os requisitos para evolução >

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