Capítulo 04 - Cumulonimbus
1.
Sua cabeça bateu tanto que Helena se perdeu despencando pelo encanamento, o corpo rodopiando enquanto tentava se agarrar a qualquer coisa, sua própria respiração se misturava ao eco das paredes.
O impacto veio seco, o mundo demorou a se estabilizar. Ela piscou várias vezes até acreditar que estava inteira.
— Eu caí…? Não… Caio me empurrou… — se perguntou segurando a sua própria cabeça.
Ela se apoiou, ofegante. Os cabelos haviam se espalhado pelo rosto e até dentro da boca. Tossiu, prendeu uma mecha atrás da orelha e, enfim, olhou ao redor.
O que viu era estrutura suspensa — em meio a uma galeria — que se estendia diante dela, um pequeno labirinto de vigas de ferro e tábuas de madeira, lanternas a óleo balançando, iluminando aquela estrutura. Tudo parecia ter sido montado às pressas, com restos de materiais.
— Que lugar é esse…? Como conseguiram construir isso aqui embaixo? — pensou, fascinada.
Um baque atrás fez o chão tremer. Caio havia chegado.
Helena se virou de imediato, irritada — Você ficou louco?! Podia ter me matado! Por que me empurrou?
— Tava demorando pra descer — respondeu ele, com um meio sorriso.
— Demorando para descer? Eu podia ter quebrado o pescoço!
— Mas não quebrou. — Ele deu de ombros, estendendo a mão — Tá tudo bem?
— Não! Não está! Eu estou coberta de poeira e provavelmente musgos ancestrais.
Antes que ela pudesse continuar, ouviu vozes à distância. Duas silhuetas se destacavam entre as luzes vacilantes: um homem alto e uma mulher de feições firmes, ambos observando-a. Havia espanto em seus rostos.
Helena estranhou o olhar deles, demorando um instante até entender o motivo, o capuz havia caído durante a queda. Os fios avermelhados se espalhavam pelos ombros, expostos à luz.
“Eles… Meu rosto!”, exacerbou Helena em seus pensamentos, com o coração acelerado, levando sua mão ao seu ombro e puxando o capuz de volta. O gesto foi rápido, quase instintivo.
Caio notou o movimento, mas ignorou. Jogou sua mochila em um canto e acenou para os dois como se nada tivesse acontecido.
— Olá, Melissa. Tudo bem, Bravo? — cumprimentou seus dois colegas.
Bravo apenas assentiu, surpreso.
Melissa, porém, deu um passo à frente e questionou, descrente: — Caio… quem é essa?
— Ela? Uma amiga. Salvou minha pele mais cedo.
— Você tá brincando comigo? Uma rys? Logo aqui? Você ficou maluco?
— Calma. Ela é tranquila.
— Tranquila?! Você tem ideia do que está fazendo? Não existem rys por aqui, idiota! E logo depois do que aconteceu com o Soldado do Sol, você traz uma até nós?
— Melissa, ela é tranquila. E sobre a Lizzand—
— Não fale esse nome! — ela explodiu, acertando-lhe um soco no ombro.
— Ai! Melissa! Ela morreu! Não existe mais Sol nenhum, por que ainda tem medo do nome dela?
— Você acredita mesmo nisso? Não houve funeral algum, seu imbecil!
— Bravo, você se importa? — Caio tentou jogar para o outro lado.
O homem fez uma cara indecifrável — Acho que podemos pelo menos escutar o que ele tem a dizer, Melissa.
Melissa bufou, espalhando os papéis sobre a mesa — INFERNO!
Melissa suspirou, exasperada, e lançou um olhar duro para a garota: — Tragam ela aqui então. Incluam-na, façam o que quiser. Essa reunião já está me estressando antes de começar.
Caio fez um gesto exagerado para Helena — Raposinha, você vem?
Helena continuava um pouco perdida, absorvendo aquele local, mas se voltou para os três quando a chamaram, ainda confusa — Para onde? — questionou, dando dois passos cambaleantes na direção e Caio.
O chão pareceu desaparecer sob seus pés, “O quê…? Minhas pernas…”
O corpo falhou. Bravo avançou rápido o bastante para impedi-la de cair, segurando-a antes que seu rosto tocasse o chão.
A dor explodiu dentro do crânio, uma pressão crescente, insuportável, como se o osso se comprimisse por dentro.
Ela levou as mãos às têmporas, sufocada, “De novo não…”
E, tão rápido quanto veio, passou. O ar voltou a entrar nos pulmões.
Bravo ainda a sustentava, o olhar firme — Está tudo bem? — perguntou.
— Sim… eu acho… às vezes acontece — respondeu ela, ainda sem fôlego.
— Precisa se cuidar — completou ele, antes de soltar um olhar apertado para Caio.
— Vou tentar, obrigada por me segurar.
Caio se aproximou — Por um momento achei que tivesse batido forte nos canos.
Helena ensaiou um sorriso — Não que isso não tenha acontecido, bobão.
— A garota parece inteira. Foco aqui — interrompeu a cena resmungando.
— Sim, capitã! — respondeu Caio, formando uma posição de sentido exagerada para Melissa.
— Para com isso Caio… Enfim, como vocês sabem, menos a rys, por falar nisso, por que ela está aqui mesmo? — ela questionou uma vez mais, dessa vez diretamente.
— Melissa… — suspirou Bravo se virando para sua colega, com o rosto cansado como se esse tipo de discussão acontecesse com frequência.
— Não Bravo, não faz sentido isso, ele vai fazer os luxos dele toda hora?
— Você sabe como ele é Melissa, apenas continua isso logo. E deixa ele falar. Não sabemos oque ele quer com isso.
Caio apenas a encarou com um pequeno sorriso, ela bufou, continuando seu pronunciamento: — Enfim, temos meia tonelada de plutonita e precisamos decidir o que fazer com ela, para nosso azar, não sabemos se é pura, se a gente vender e for falsa, vão caçar a gente com certeza, eu ainda voto em jogar fora.
Bravo interveio: — Achei que já tínhamos decidido jogar na fenda.
— Não, não decidimos. Caio disse que tinha uma ideia brilhante e… enfim, não sei de mais nada — respondeu enquanto revirava os olhos.
Os dois se voltaram para ele.
Caio deixou escapar um ar zombeteiro e começou a andar de um lado para o outro, suas mãos tremiam, mas era quase imperceptível.
— Passei o dia inteiro matutando sobre a plutonita. — Fez uma pausa curta — E no meio da minha pequena aventura… Eu encontrei ela! — completou abrindo os braços na direção da Helena.
Melissa ergueu os olhos — Uma rys? Essa é a sua grande revelação?
Ele não se abalou. — Vocês sabem por que esse minério vale tanto? — soltou a pergunta para o silêncio. — Porque responde de forma violenta quando está nas mãos de alguém com lumem demais no corpo.
Melissa grunhiu. Helena, por outro lado, parecia cada vez mais perdida no assunto.
— Então digam: o que poderia ser mais perfeito para o teste do que alguém que já nasceu transbordando lumem?
O silêncio foi pesado.
— Espera, você quer levar ela até a fenda?!
— Fenda? — replicou Helena.
— Sim, isso mesmo — Caio afirmou.
— E a rys, aceitou isso?
— Na verdade, eu não sei nada disso — respondeu Helena rapidamente.
Caio colocou as mãos nos ombros dela — Convidei ela para conhecer a cidade. A fenda faz parte da cidade, vamos lá, vai gostar.
[“O bom filho a casa torna, ou era retorna…”, murmurou a criatura que apenas Helena via, sentada em uma cadeira no limite de sua visão.]
Helena, apenas ignorou a voz de seu devaneio, ela apertou as próprias mãos, as unhas quase cravando na pele. Havia algo na postura do Caio, alguém que ela não conseguia recordar. Um rosto querido, perdido no tempo. Respirou fundo, e deixou escapar enquanto retirava as mãos de caio de seu ombro: — Não! N- não sei, você quer me usar como um objeto?
— Sim, ele quer. Já contou para ela que a fenda é um lugar horrível Caio? — Melissa cruzou os braços.
— Não. Eu não quero, não vou te colocar em peri—.. Vai ser uma visão legal no final, eu te levo para o lugar que estava antes, antes do amanhecer. Podemos combinar assim?
— Tu és literalmente lesado, me lançou por um tubo de esgoto que me sujou toda e agora me pedindo para ir… — um suspiro, um pensamento — Esquece, tudo bem, vamos.
— Aceitou rápido — Caio se voltou para frente, o sermão que estava esperando não apareceu.
— Você é um completo tapado como disse anteriormente, entretanto… Não tem entretanto, só aceite sua vitória temporária sem explicações.
Caio riu — Vocês ouviram gente, se preparem! — suas mãos tremiam ainda mais, como se estivesse escondendo algo, medo, ou algo maior.
— Se eu morrer no processo por causa de uma rys inexperiente, quero deixar registrado que eu vou voltar para te assombrar Caio — disse Melissa, enquanto pegava uma metralhadora antiga e pesada, apoiando-a no ombro como se fosse um saco de arroz e ia em direção ao monotrilho.
Bravo, pendurou um escudo enorme nas costas e acompanhou a mesma direção de Melissa.
Helena estreitou suas sobrancelhas para Caio — E como funciona esse teste da plutonita?
— Só precisa tocar nela, se for verdadeira ela vai tomar um pouco do seu lumem e vai começar a brilhar, não vai te machucar.
— Ok, mas… Eu não sei o que seria esse tal ‘lumem’…
— Ah, você deve ter de sobra, é uma rys afinal.
— Posso ser isso que diz. Uma rys que poderia ter sido solicitada para ajudar em vez de ser enganada e maltratada — ela cruzou os braços ao terminar a fala.
Caio deu um meio passo de dança, rápido — Foi um vacilo meu. Mas em minha defesa, você que foi a maluca de ter aceitado meu convite.
Helena deixou escapar um trejeito divertido — É… acho que tinha alguma coisa naquelas frutas, também não sei porque fiz isso…
De longe, Melissa gritou já sentada no monotrilho:
— Os dois podem vir logo? Já passou do meio-dia!
Helena lançou um último olhar desconfiado para Caio. E os dois prosseguiram até o transporte improvisado.
O monotrilho mais parecia um cadáver de ferro remendado às pressas: trilhos tortos, soldas malfeitas, assentos improvisados com tábuas desiguais. Quando Melissa acionou o motor, o som foi de um animal moribundo, rangendo e cuspindo faíscas. Helena segurou firme nas bordas, com a sensação de que a qualquer curva seria arremessada no vazio. O mais assustador era que, apesar de tudo, o veículo começou realmente a andar.
2.
Em toda curva, Helena se assustava com cada pilar que aparecia, pensava que o veículo iria bater, às vezes deixava escapar um grito entre um suspiro e outro. Aquela galeria pluvial era imprevisível, mas empolgante — realmente impressionante pensar que a cidade inteira repousava sobre aquele espaço imenso e oco logo abaixo, como se os pilares que a sustentavam estivessem imbuídos de algo sobrenatural para aguentar todo o peso acima.
A parada final veio na parte mais baixa da galeria, o ponto de descarga. Ali havia outra estrutura, erguida às pressas, toda torta e mal projetada, arquitetura e engenharia não parecia o forte daqueles três.
Rapidamente, todos desceram. A cada salto, a estrutura tremia, rangendo como se prestes a desabar. O mundo da garota de cabelos semi-rubros ainda girava, como alguém na primeira vez após saltar de paraquedas.
— Caio, você revisou o lugar? — questionou Melissa, olhando ao redor com visível desconfiança, aquilo parecia inseguro até para os padrões dela.
— Relaxa, tá tranquilo. — Ele catou umas bugigangas em umas caixas e se apressou até um pequeno elevador cravado na parede da galeria — Vou lá contatar os compradores. Cuida da raposinha! — gritou, enquanto o elevador subia pelas paredes da galeria.
Melissa o seguiu com um olhar cheio de reprovação e, em seguida, virou-se para Bravo, que ajudava Helena a se manter de pé — Um dia ele vai matar a gente, você sabe disso, né, Bravo?
— Acho que você só tá implicando, Melissa.
— Ah, claro. E a vez do banco do barão rubro?
— Ninguém sabia do alarme.
— Certo, e a vez em que quase despencamos na fenda também foi porque ‘ninguém sabia’, né?
— Melissa…
Enquanto eles discutiam, Helena se afastava de Bravo e observava o ponto onde a água descia, a fenda que tanto mencionavam. Era uma escuridão absoluta, um vazio que parecia engolir a própria luz. As lamparinas tremeluziam próximas dali, mas o brilho era fraco, nem o céu podia ser visto.
— Seria tão ruim descer essa fenda? — perguntou, para quem quisesse ouvir, com o olhar fixo no abismo.
Os dois se viraram. Melissa, de repente, começou a rir, um riso curto, debochado, como se Helena tivesse contado uma grande piada.
Bravo soltou um suspiro, impaciente — Vamos logo para o armazém — disse ele, tomando a frente e começando a subir por uma escada de ferro presa à parede da fenda.
Melissa ainda ria baixinho enquanto o seguia, o som das botas se misturando ao barulho da água abaixo.
Helena ficou em silêncio, depois suspirou e os acompanhou escada acima.
O lugar era abafado e úmido, e a escuridão quase total. As lamparinas projetavam uma luz fraca, o suficiente para mostrar o caminho, nada mais, provocando um sentimento de infinitude para os degraus que subiam.

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