1.

    Eles continuaram subindo, degrau após degrau, a escuridão era densa como fumaça sólida, o som de suas próprias respirações era a única coisa viva naquele lugar.

    O tempo ali não existia. Poderiam ter passado minutos ou horas até que pequenas luzes brotassem nas laterais, tímidas como vaga-lumes, sufocados pela poeira. Em muitos ticks a escada se alargou, as passarelas ganharam amplitude, e o espaço se revelou.

    Diante deles, uma urbe se revelava parcialmente, pendurada nas paredes da fenda, sustentada por ferro corroído e madeira em um tipo de estrutura que lembravam teias de aranha. As construções se inclinavam em ângulos impossíveis, algumas fundidas à rocha, outras emergiram do paredão. Luzes trêmulas pendiam de fios improvisados, piscando em intervalos doentes, revelando rostos em ruínas.

    Pessoas vagavam por ali, mas não como Helena esperava: corpos mutilados, membros ausentes, peles tomadas pela umidade, tosses que ecoavam como orações quebradas. Alguns imploravam ao nada; outros apenas fitavam o vazio, rendidos à própria existência. Helena parou. O ar cheirava a ferrugem e sangue seco, seu estômago se contorceu. — Como podem continuar vivos assim? — murmurou olhando para aqueles que estavam juntos a si.

    — Eles não podem, quanto mais se desce na fenda, pior é sua situação. Tá aí sua resposta, e não tem nada que possamos fazer por eles — respondeu Melissa.

    Helena tentou seguir em frente, mas a dor dos outros parecia infiltrar-se nela. A cada passo, o sentimento piorava.

    Quanto mais adentraram, menos Helena desejava estar ali. Não só isso, sempre que ela olhava para o abismo, sentia algo pulsar lá embaixo, a escuridão a convidava. Suave, quase maternal e terrível.

    [“Sua antiga casa… se lembra?”, questionou sentada em um corrimão. ]

    — Fica quieta — sussurrou Helena entre os dentes. O ar pareceu rir.

    Seguiram, guiados pelas luzes que piscavam como um coração enfermo. Até avistarem um galpão colossal, uma fábrica morta, mergulhada na penumbra. O portão entreaberto rangia, protestando contra o tempo.

    — Bravo, leva ela. Eu preparo uma rota de fuga caso dê errado — ordenou antes de sumir.

    Ele assentiu.

    Dentro, os passos ecoavam por todas as direções. Bravo encontrou um interruptor antigo — ou algo que lembrava um — e o acionou. Num estalo, dezenas de velas se acenderam, espalhadas pelo salão. A luz amarelada revelou um lugar devastado: caixas empilhadas no meio, ferramentas partidas, engrenagens cobertas de poeira. Tudo ali parecia morto há séculos.

    Quando Helena deu seu primeiro passo para dentro daquele local, as caixas do centro começaram a brilhar levemente, Helena curiosa se aproximou aos poucos, então, aquela luz azul tímida se transformou em um clarão estrondoso. A escuridão recuou como se estivesse viva e aquilo a machucasse.

    Helena tropeçou, os olhos arregalados — O que… o que é isso? Por que estão brilhando assim?

    Bravo se virou, tenso — Não faço ideia. Tocou em alguma coisa?

    — Não! Eu só… cheguei perto!

    Melissa surgiu pela porta, dessa vez sem sua arma, ofegante — O que aconteceu?!? Por que tá tudo brilhando?

    E- Eu não sei, eu não fiz nada! — respondeu Helena, tentando se justificar.

    Melissa se aproximou, agarrou-a pelo colarinho, a respiração quente e descompassada — Eu devia saber… Desde o começo achei estranho o jeito que Caio olhava pra você. O que você é, afinal?

    Helena segurou os pulsos dela — Eu já disse! Eu não fiz nada!

    [“Por que não mata ela também?”, sussurrou a voz, surgindo atrás de Melissa, com o mesmo sorriso torto de sempre.]

    Um estalo metálico soou lá fora. Depois, mais. Vários.

    Melissa largou Helena e correu até uma janela.

    — Chegaram antes do previsto… ótimo — murmurou, com ironia. — Ao menos agora sabemos que a plutonita é verdadeira.

    Bravo correu, pegando uma lona para cobrir as caixas ofuscando aquela luz. Melissa arrastou três cadeiras, alinhando-as diante do material.

    — Senta aqui — ordenou.

    Helena obedeceu, contrariada — Eu não fiz nada — repetiu, tom afinado, quase infantil.

    — Eu não acredito em você.

    — Não ligo.

    Melissa se sentou ao lado de Helena. Bravo permaneceu em pé, observando o portão de entrada. E Helena apenas virou seu rosto para o lado.

    Quando o último dos passos cessou, os grandes portões da fábrica se abriram. Um grande grupo de pessoas entrou — figuras vestidas com mantos brancos com detalhes em vermelho, armas quase à mostra e um andar sincronizado.

    Melissa levantou-se e curvou-se em reverência — Bem-vindos — cumprimentou-os.

    O homem mais adiante — o líder, ao que aparentava — possuía um tapa-olho gasto, seguiu dizendo: — Agradeço a hospitalidade, mas estamos com pressa.

    Um gesto sutil com o pescoço bastou. Um dos homens atrás dele avançou e jogou ao chão um enorme saco. As moedas se espalharam com um som seco e metálico. Ouro.

    Melissa fitou o amontoado e conteve o sorriso que ameaçava nascer — Vejo que vieram preparados — disse.

    — Apenas não queremos passar mais um segundo nesse lugar.

    — Entendemos, senhor. Mas seria bom esperar a pessoa que te chamou. Ele é nosso avaliador — prosseguiu Melissa informando.

    O caolho soltou um riso breve, sem humor — Claro… — respondeu, dando passos à frente, o ar ao redor dele pesou — Até lá poderíamos conversar um pouco.

    — Oque desejar senhor — reverenciou novamente.

    — Hmph, sabe, é curioso, como um bando de arruaceiros conseguiu algo tão valioso.

    — Temos nossos contatos, talvez sejamos mais do que o senhor imagina — respondeu Melissa, seguindo-o com o olhar, sem se mover.

    Ele se aproximou mais, lento. Cada palavra pesava mais que a anterior — Hmph. Claro, sim! Todavia, é curioso.

    Atrás, os soldados mantinham-se imóveis, como se houvesse um campo de força que ninguém ousava romper.

    — Eu fiquei surpreso ao ser mandado para cá — continuou ele — uma cidade esquecida pela deusa, logo depois do decreto de trégua vindo diretamente de Polis.

    — A vida nos leva a lugares inesperados — replicou Melissa logo após uma pausa.

    — Sim. Mas… — Ele caminhou, se aproximando ainda mais, o som das botas ressoando pelo salão — Há algo ainda mais surpreendente. Uma informação.

    Melissa enrijeceu. 

    — Uma informação?

    — Sim.

    — Vejo que o senhor é um homem bem informado.

    — Surpreendentemente informado.

    O silêncio torrou, dando tempo do ponteiro médio se movimentar uma vez.

    Helena sentiu o sangue gelar, a cena a prendeu por completo. Bravo, por outro lado, se fixou completamente, movendo-se discretamente suas mãos para seu escudo.

    — E que informação seria essa? Se o senhor não se importa em dizer — questionou Melissa.

    Ele inclinou o rosto para o dela — Velmora anunciou para os reinos vizinhos que algo muito valioso foi roubado de si — o tom ficou grave — E não revelou o quê. Eu me pergunto… oque seria essa coisa?

    O rosto dele agora quase tocava o dela. As respirações se misturavam.

    O rosto de Melissa se tornou estático, sua boca fazia pequenos movimentos, mas falhava. Respirou fundo e enfim conseguiu: — Se você—

    Antes de terminar sua frase, um baque se alastrou pela fábrica.

    *BLAM!*

    Em um instante a atenção de todos se voltou para a direção do barulho. 

    Uma porta lateral da fábrica. Protegida pela escuridão.

    2.

    Quem saiu de lá foi Caio, aparecendo aos poucos abaixo da luz de uma lamparina.

    O homem caolho se refez e avançou na direção — Olha quem chegou, se não é contato favorito dos últimos dias.

    — Você chegou cedo — disse Caio com o rosto um pouco assustado.

    — Desejamos uma estadia curta em Lizume, esse lugar não nos agrada — expressou o caolho.

    — Ehhmm, eu entendo.

    — Pois então, onde está o que prometeu? E sobre o dinheiro, acredito que tenhamos dado uma boa bonificação — concluiu olhando para o saco de dinheiro.

    Caio se preparou para falar, entretanto, passos foram ouvidos antes de qualquer ar sair de seus pulmões, e então o portão principal da fábrica se abriu. Um outro grupo de soldados apareceu, soldados que Helena já conhecia, um deles permanecia morto em seu subconsciente. Soldados vestidos com roupas escuras.

    No mesmo instante, todos sacaram suas armas, prontos para atirar. A face de Caio se ergueu em desespero, Helena se levantou, Melissa se afastou rapidamente, quase tropeçando, Bravo tirou o escudo de suas costas em um movimento.

    Quando eles colocaram o dedo no gatilho, Caio correu e se pôs no meio deles gritando: — A VELMORA!

    O som reverberou pela fábrica.

    Os gatilhos hesitaram. O silêncio caiu de repente, pesado, absoluto.

    Só se ouvia o ranger dos dedos hesitantes e o andar tímido de insetos.

    Caio engoliu seco — A Velmora não vai gostar de saber que dois reinos diferentes estão lutando em seu território — concluiu, na tentativa de acalmar os ânimos.

    Ambos os grupos continuaram estáticos por um tempo.

    — Tem razão, estamos em trégua, afinal — disse o homem de tapa olho quebrando o silêncio, ele abaixou a arma e logo em seguida todos os outros repetiram.

    O líder do outro grupo — tinha uma enorme cicatriz que iniciava em sua têmpora e perseguia a sua bochecha — grunhiu em um mínimo riso, e fez um movimento com a cabeça, todos abaixaram as armas.

    Os dois grupos continuavam a se encarar.

    Mesmo assim, Caio prosseguiu: — Bom. Agora que todos se acalmaram, podemos falar de negócios?

    — Prossiga jovem — disse o líder do grupo que acabara de chegar.

    — A plutonita que nós temos… — Caio olhou rapidamente para Melissa que se encontrava se segurando na cadeira, ela assentiu mesmo sem uma pergunta. — É totalmente pura — concluiu sua frase.

    — Era de se esperar. E está carregada?

    O caolho riu sem exageros — Perderam a capacidade de carregá-las? Parece que sem o Soldado do Sol vocês estão realmente acabados. Deveríamos ter continuado e dado um fim em seu rei — disse debochando.

    O outro líder cedeu à provocação — Ha! Engraçado, seu povo ama espalhar esterco pelos campos com suas palavras. Aurora continua viva, mesmo sem o Sol, por que não tentam a sorte?

    Antes que a discussão escalasse, Caio interveio mais uma vez — As plutonitas! Sim, sobre elas, elas… — Interrompeu-se novamente, olhando discretamente para Melissa. Ele formou um círculo com os dedos e escondeu perto de sua perna para apenas Melissa ver.

    Ela negou.

    Ele então levantou um dedo.

    Negou novamente.

    Dois dedos. Negou de novo.

    Três. Ainda não.

    Quatro. O mesmo.

    Quando abriu a mão por completo, ela assentiu.

    O coração de Caio deu um salto.

    Um suspiro. 

    Uma pausa sem jeito.

    Olhou brevemente para sua mão, seus olhos seguiram até Helena — um olhar que ela não entendeu — e voltaram para os seus dois compradores, concluindo sua frase: — Elas estão… em vibrância.

    Os líderes estreitaram seus olhares para a informação.

    — Algum problema jovem? Parece tenso — perguntou o caolho visando Caio.

    — Não, não, lembrei que esqueci de trancar a minha casa, enfim, o representante da teocracia já deu o valor em ouro, oque oferecem para superar esse valor senhores? — perguntou disfarçando sua face anterior para o líder dos homens de preto.

    — Hmph, em estado de vibrância, valerá o preço. Nosso rei oferece: A coroa de sua terceira filha — respondeu a Caio. Enquanto descrevia sua proposta, um dos soldados avançava entre eles, segurando o tesouro com delicadeza em mãos.

    Caio se surpreendeu, juntamente com quase todos naquela sala.

    — O rei louco parece estar disposto a dar até a barriga de sua filha — comentou o caolho.

    O homem com a cicatriz abriu um sorriso debochado — As negociações sairiam melhores se não tivessem amantes de uma puta morta falando toda hora e se intrometendo — comentou.

    — Acho melhor retirar o que disse, antes que eu te condene em nome dela — retrucou o caolho enfurecendo-se.

    — Retirar oque? Que Simetra é uma meretriz de terceira categoria?

    Um nome que reverberou em Helena.

    A face do caolho tremeu, como se sentisse dor — Tens muita coragem — disse em tom de ameaça.

    — Cuspiram estrume até o momento, eu pelo menos estou lhe dizendo a verdade. Como se sentem revisitando o lugar que uma deusa virou uma puta? — sua frase acabou e todos de seu grupo começaram a rir.

    Não do outro lado, as pessoas de branco estavam com um ódio genuíno, transparecendo pelas suas faces. Seus olhares queimando. Seguravam suas armas como se fossem quebrá-las.

    — Três vezes… três… não haverá uma próxima… — disse o caolho murmurando para si em tom grave e ríspido. Um suspiro pesado. Determinado em acabar com a concorrência ali mesmo.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (1 votos)

    Nota