O fedor aqui se empilha, camada por camada, e já consigo separá-las do jeito que Axion me força a separar os mortos: por função, por forma, por falha. 

    Primeiro a ferrugem oxidada que se acumula nas junções dos membros artificiais quando o lubrificante neural se degrada, depois o mofo cerebral dos tecidos que insistem em ecoar mesmo depois que a morte deveria ter apagado toda atividade elétrica.

    E por último aquele cheiro enjoativo de promessas quebradas que se arrasta pela garganta feito piche quente derramado em silêncio, e nunca sai, não importa quantas vezes eu cuspa ou tente respirar pela boca. 

    Meus dedos não tremem mais quando forço a lâmina entre os dentes da criança. Pararam de tremer há três anos, quando percebi que as tremidas me faziam derramar sangue desnecessário e Axion sempre, sempre anotava quando eu desperdiçava material biológico.

    Ele anota tudo: cada gota que vaza pelos meus dedos inexperientes, cada segundo de atraso para identificar um órgão modificado, cada hesitação antes de quebrar um osso ainda pulsando com reflexos neurológicos, cada vez que minha respiração se acelera diante de algo particularmente grotesco.

    O caderninho vive escondido no bolso da túnica dele, mas sei que está lá. Esperando o próximo erro meu para virar informação. Virar dado. Virar matéria-prima para propósitos que nunca me são explicados por completo.

    Às vezes finjo não ver quando rabisca suas observações. Mas a tinta que usa é feita de sangue e fluido cerebrospinal. Receita que me ensinou para emergências. E reconheço o cheiro metálico sempre que escreve algo sobre mim

    Por que ele precisa anotar tudo sobre mim com tinta feita de partes humanas?

    Antes que eu possa aprofundar mais essa pergunta, o som úmido de um novo corpo despenca pelo tubo e ecoa pela sala. Ignoro. Ainda há muito a entender no anterior.

    O primeiro corpo chegou há duas horas pelo tubo de descarte, ainda morno, ainda contraindo músculos em um último espasmo descoordenado, sugerindo que a morte neural não está completa. 

    Dois umbigos perfeitamente simétricos, braços finos demais para o tronco, mas com densidade muscular artificial que indica modificação para força ampliada, pele translúcida onde posso ver os circuitos correndo na forma de veias azuis pulsantes que formam padrões geométricos específicos. Mas o que me incomoda não são as modificações óbvias, é o padrão que vejo se repetir com precisão obsessiva. 

    Há três semanas que recebo crianças com exatamente duas modificações neurológicas específicas: amplificação sensorial auditiva classe militar e reflexos de combate aprimorados modelo KX-7, o tipo que custa mais créditos que esta oficina inteira vale.

    Modificações caras. Modificações que servem para guerra. Modificações que transformam crianças em armas biológicas eficientes. Por que Nova Esperança descarta soldados infantis perfeitos? E por que, quando toco essas modificações, sinto uma familiaridade estranha na ponta dos dedos, um reflexo antigo, gravado no corpo, mas não na memória.

    A oficina pulsa ao meu redor com vida própria que às vezes parece mais consciente que a minha. As máquinas conversam entre si em dialetos eletrônicos que Axion me ensinou a traduzir: primeiro para trabalhar melhor, depois porque ele sempre diz que “conhecimento é propriedade valiosa” e sorri daquele jeito que faz minha nuca latejar com dor aguda acompanhada de náusea. 

    Os braços biomecânicos pendurados no teto me observam com interesse calculado que vai além da programação básica, sempre prontos a ajustar minha postura quando desmonto algo delicado demais, sempre antecipando meus movimentos com precisão que deveria ser impossível para máquinas que não são programadas especificamente para trabalhar comigo. 

    Eles nunca erram minhas intenções. Eu às vezes erro as deles. A diferença me assombra durante as noites quando durmo entre os equipamentos e ouço sussurros eletrônicos que parecem evocar meu nome: mas não o pronunciam.

    Rilks corre pelos cantos coletando fragmentos de metal que brilham à semelhança de lágrimas cristalizadas, mas hoje ele para constantemente para farejar o ar com um nervosismo que nunca vi antes em sete anos de convivência. 

    As orelhas cibernéticas dele captam frequências que não consigo ouvir, mas a cada parada do ratinho sinto uma coceira estranha na base do pescoço, exatamente onde carrego uma cicatriz em forma de losango que não lembro de ter feito. 

    É como se algo estivesse tentando sintonizar comigo através de uma frequência que deveria estar morta, mas ainda pulsa debaixo da pele.

    Quando foi que ganhei essa cicatriz? Por que não lembro? E por que ela coça sempre que Axion me observa trabalhando?

    Forço a lâmina entre os dentes da criança e o titânio range, cede, se parte com estalo satisfatório que envia vibrações pelo metal até meus ossos. Puro titânio classe A, ainda com raízes neuronais intactas pulsando impulsos elétricos fantasmas que fazem os músculos faciais da criança contraírem-se numa expressão que quase parece de dor. 

    Isso vale pelo menos dois núcleos sintéticos no mercado certo. Material de primeira qualidade que indica investimento sério em cada uma dessas crianças descartadas. 

    Mas quando abro o peito da criança para verificar as modificações internas, minhas mãos se movem com eficiência que não deveria ter, encontrando pontos de acesso que não lembro de ter aprendido, guiadas por uma familiaridade inexplicável com aquele corpo modificado.

    Quando aprendi a fazer isso com tanta precisão?

    Minha mão encontra algo escondido entre as costelas artificiais que não deveria estar lá: papel real, não sintético, dobrado e escondido com cuidado obsessivo de alguém que sabia que ia morrer mas precisava deixar uma mensagem. 

    O papel está morno, tendo absorvido o calor corporal que ainda emana do cadáver, e quando o desenrolo, reconheço imediatamente a composição da tinta: sangue misturado com fluido cerebrospinal numa proporção específica que cria durabilidade superior. A mesma receita que meu mentor me ensinou. A mesma receita que ele usa para anotar informações sobre mim.

    A caligrafia é apressada, desesperada, mas tem a precisão de alguém treinado a deixar informações úteis mesmo sob pressão extrema:

    “NOVA ESPERANÇA É O PRÓPRIO INFERNO. NÃO É TARDIO PARA FUGIR. USE A FRESTA. ELES ESTÃO FAZENDO MAIS COMO NÓS. AXION SABE.”

    Meu estômago se contorce não pela mensagem, mas pela caligrafia. Reconheço o padrão das letras, a forma específica em que o “A” é formado, a pressão da mão que escreveu isso. É quase… é quase idêntica à minha própria caligrafia, mas distorcida pela urgência e pelo medo. 

    Tudo ali indica que alguém com exatamente minha educação, meu treinamento, minha forma de formar letras escreveu aquilo nos instantes finais.

    Como se eu tivesse escrito isso.

    Minha respiração acelera enquanto seguro o papel com mãos que começam a tremer novamente. 

    AXION SABE!

    Claro que sabe. Axion sempre soube de tudo, anotou tudo, planejou tudo. 

    E agora entendo que todos esses anos ele não estava me ensina. Me prepara. Para quê, ainda não sei. 

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