Design-sem-nome-17

    A luz.

    É a primeira coisa que me atinge quando as portas da cápsula se abrem completamente. Não a luz artificial e controlada dos tubos fluorescentes de Axion, mas algo selvagem, imprevisível, com o ritmo pulsante e mutável de um coração luminoso. 

    Meus olhos, acostumados às sombras constantes do subsolo, lacrimejam instantaneamente. A dor explode atrás dos olhos, não por impacto, mas algo que se assemelha à visão sendo costurada com arame incandescente. 

    Aperto as pálpebras até que sejam apenas fendas, porém, mesmo assim a luminosidade vaza através das lágrimas, criando prismas dolorosos que dançam na minha visão.

    O espaço. Axion nunca me preparou pra isso.

    Dezessete anos vivendo em corredores estreitos, salas pequenas, tetos baixos que eu podia tocar com a ponta dos dedos. Agora me encontro em uma vastidão que minha mente se recusa a processar completamente. 

    Não há paredes próximas para me orientar, não há cantos familiares onde posso me esconder. A sensação é de que alguém arrancou o teto do mundo e me lançou no vazio infinito. Meu estômago se contorce, não de fome, mas da vertigem existencial de estar exposto em todas as direções.

    E os cheiros.

    Odores se atropelam: ozônio metálico, talvez vegetação longínqua, fumaça industrial que não sei nomear, e sob tudo isso, o cheiro acre de decomposição química.

    No laboratório de Axion, eu conhecia cada odor: formol, sangue coagulado, o mofo particular dos cadáveres antigos, meu próprio suor. Aqui, cada respiração é uma invasão sensorial que meu cérebro luta para catalogar, tal qual se alguém tivesse aberto todas as gavetas de um arquivo olfativo e misturado tudo em um caos aromático.

    Os sons são ainda piores.

    Um zumbido constante que pode ser maquinário distante ou criaturas que não consigo ver. Cliques metálicos que ecoam de direções imprecisas. O som do vento. Vento real, não o ar artificial de seu antigo laboratório. Ecoa através de estruturas que reverberam por quilômetros, evocando a sensação de a Terra sussurrando em murmúrios prolongados, apenas para quem veio do silêncio.

    No subsolo, eu podia identificar cada ruído: os passos de Axion se aproximando, o gorgolejar das soluções nos frascos, o zumbido específico de cada equipamento. Aqui, sou surdo e cego ao mesmo tempo, perdido em uma sinfonia sensorial que não sei interpretar.

    Em dezessete anos, vi menos de cinco pessoas vivas. Cada rosto era uma exceção, uma aberração rara entre paredes frias. Aqui, cada passo abrange dezenas. Cada respiração toca centenas. Cada segundo é um ataque de rostos, cheiros, vozes. Eu me escondia entre mortos. 

    Agora sou obrigado a encarar os vivos. E eles são muitos. Muitos demais. Cada rosto me atravessa trazendo em si uma pergunta sem resposta, algo que nunca aprendi a decifrar. Eu, que fui criado para escutar corações que não batem mais, agora sou esmagado por um milhão de batidas simultâneas. É insuportável. Vivo demais.

    E acima de tudo, dominando a paisagem feito um deus digital, há o Contador.

    É uma estrutura impossível de ignorar. Números vermelhos do tamanho de prédios flutuam no ar, pulsando com uma regularidade hipnótica. 47:23:11… 47:23:10… 47:23:09… 

    Não preciso perguntar o que significa. Algo no fundo da minha mente modificada sussurra a resposta: tempo de exposição segura. Quarenta e sete horas, vinte e três minutos para que algo terrível aconteça se permanecermos na superfície. As máscaras nos protegem, contudo, não indefinidamente. Somos visitantes temporários em um mundo que nos tolera apenas por um tempo limitado.

    Os homens que me retiram da cápsula não dizem uma palavra.

    Nem uma explicação. Nem uma instrução. Nem sequer um cumprimento básico. Simplesmente fazem gestos econômicos. Mão apontando para frente. Movimento de cabeça indicando direção. E esperam que eu os siga feito um animal doméstico bem treinado. O silêncio me incomoda mais do que qualquer grito poderia.

    Com os cadáveres de Axion, eu sempre soube o que esperar. Podia ler a causa da morte na posição do corpo, prever o estado dos órgãos pela cor da pele, antecipar a textura dos tecidos pela rigidez dos músculos. Cada corpo contava uma história completa antes mesmo que eu o tocasse. 

    Aqui, caminho atrás desses homens silenciosos, sou completamente cego ao futuro. Não posso ler seus corpos porque estão vestidos e equipados de forma que oculta qualquer pista. Não posso antecipar seus movimentos porque não compartilhamos linguagem gestual comum. Não posso formar expectativas porque não tenho referencial para interpretar este ambiente.

    É pior que medo. É a paralisia completa da ignorância.

    Cada passo que dou me afasta mais da familiaridade claustrofóbica do subsolo e me empurra para uma realidade que se recusa a ser decodificada. O chão sob meus pés muda de textura constantemente. 

    Metal. Depois algo que pode ser pedra processada. Depois uma substância macia que cede ligeiramente ao peso. Não há consistência. Não há padrão que eu possa aprender e usar para navegar. É como rastejar dentro de um organismo alucinado, que muda de pele sempre que ouso me acostumar.

    Então vejo o elevador.

    É uma estrutura que desafia todas as minhas expectativas sobre o que um elevador deveria ser. Não é uma caixa pequena e fechada. É uma plataforma panorâmica do tamanho de uma sala inteira, com paredes transparentes que prometem uma visão completa da descida. 

    Um dos homens faz um gesto para que eu me aproxime. Pela primeira vez, posso ver através de sua máscara protetora. Seus olhos são modificados. Íris douradas com pupilas que se contraem e dilatam independentemente uma da outra. Não são completamente humanos. Porém também não são completamente artificiais. São algo intermediário. Como eu.

    A descida começa sem aviso.

    A plataforma se move com uma suavidade perturbadora, dando a impressão de que flutuamos em vez de descermos. Através das paredes transparentes, vejo as camadas que a máquina-toupeira perfurou no caminho até aqui. 

    Cada estrato conta uma história distinta: rocha sedimentar compactada, veios metálicos que emitem brilho próprio, cavidades marcadas por rastros cristalinos. Talvez deixados por água. Talvez por algo mais antigo.

    As texturas mudam com frequência cruel. O vidro dá lugar ao caos: formas irregulares, rugosas, com marcas de algo que só uma criatura cega e colossal poderia deixar. A densidade também oscila. Há partes tão sólidas quanto armaduras. Outras, esponjosas, instáveis, podres por dentro.

    É como ser engolido por algo que nunca deveria ter acordado. E a cada metro, o estômago dele se fecha mais em torno de mim. Feito se este breve respiro fosse só um intervalo entre buracos, e o próximo já esperasse por mim, escuro feito aquele onde fui criado.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 93.33% (3 votos)

    Nota