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    Descemos.

    A profundidade começa a doer no crânio, no peito, nas partes que ainda acreditam que há retorno possível. Não é só a queda mecânica da plataforma, mas a sensação constante de que algo espera lá embaixo, paciente e faminto. 

    Ou talvez, esteja nos observando agora, através das camadas de rocha que passam diante das paredes translúcidas, frágeis iguais a pele sem vida arrancada camada a camada, revelando o mundo em carne viva.

    Um dos homens vira o rosto em minha direção. Me encara com aqueles olhos modificados, íris douradas pulsando com uma intensidade que não consigo decodificar. Por um instante, penso que ele vai dizer algo. Um gesto. Um comando. Uma explicação que finalmente me situe nesta realidade incompreensível.

    Nada.

    A máscara oculta quase tudo, contudo, vejo a intenção morrer nos olhos dele, feito um impulso que apodrece no ato, antes mesmo de se tornar ação. E o silêncio que sobra é o tipo que só existe quando alguém sabe exatamente o que omite, quando o não-dito carrega mais peso que qualquer palavra poderia suportar. 

    Eles não falam porque falam com o silêncio. Com o peso da máquina funcionando em frequências que sinto nos ossos. Com os protocolos que nem sei que estou seguindo, no entanto, meu corpo modificado age sob sinais que parecem sussurros invisíveis penetrando o sistema nervoso.

    E eu continuo esperando. Por algo que talvez nem exista: uma verdade, uma origem, uma explicação que rompa com tudo que me foi imposto desde o momento em que Axion me abandonou.

    Minha respiração para.

    Os andares emergem da rocha, tal qual tumores luminosos, cada um pulsando com vida própria. O primeiro que vejo me golpeia com uma familiaridade visceral que me faz querer vomitar. Não foi construído por engenheiros. Foi cultivado por algo que entende de carne melhor do que de concreto.

    As estruturas crescem e se entrelaçam feito vasos sanguíneos gigantes, formando uma arquitetura que respira, que se contrai, que sussurra em frequências que sinto nos ossos. É o laboratório de Axion multiplicado e expandido até se tornar uma cidade inteira, um organismo urbano que me reconhece enquanto parte de si.

    A arquitetura se torna biologia pura. Veias espessas feito troncos de árvore pendem das paredes, bombeando fluidos que emitem luz própria. Superfícies inteiras se contraem e expandem, simulando diafragmas gigantes, e entre elas, seres que mantêm apenas uma lembrança distante da forma humana executam suas funções.

    Múltiplos braços se coordenam em balés mecânicos, torsos divididos processam informações em paralelo, colunas vertebrais segmentadas deslizam com consciência própria, ondulando em sequência precisa. Suas articulações se movem com a precisão de instrumentos cirúrgicos feitos de carne. 

    Nada é acidental. Cada modificação responde a uma necessidade específica, cada deformidade é uma solução elegante para problemas que nem sei que existem.

    Observar aquilo me confronta com o futuro, refletido num espelho de carne viva, onde cada imagem revela uma possibilidade diferente de quem posso me tornar.

    As palavras escapam num sussurro rouco: 

    — Impossível.

    O segundo andar explode diante dos meus olhos, espalhando corpos e destroços tal qual faria um formigueiro pisoteado por fúria cega. Não há organização. Não há lógica. Não há um único centímetro quadrado que não esteja ocupado por algo quebrado, oxidado ou em processo de decomposição tecnológica. 

    Pilhas de componentes eletrônicos se erguem, feito montanhas metálicas, criando vales estreitos onde figuras humanas se movem com pressa desesperada. É como se todo o lixo tecnológico do mundo tivesse sido despejado aqui e deixado para fermentar em sua própria entropia.

    Máquinas do tamanho de besouros gigantes rastejam entre os detritos, carregando peças que brilham com óleos iridescentes. Suas pernas articuladas se adaptam ao terreno irregular, escalando montanhas de circuitos queimados com a eficiência de insetos programados. 

    Entre elas, pessoas se movem em padrões aparentemente caóticos, porém, há método na loucura. Cada movimento tem propósito. Cada parada é calculada. Carregam caixas, arrastam cabos, desmontam estruturas com a precisão de cirurgiões operando em um campo de batalha.

    Da paisagem de lixo brotam barracões improvisados, lembrando fungos parasitas que se alimentam da morte. Entradas e saídas se abrem e fecham constantemente, engolindo e cuspindo pessoas em ritmos que meus olhos não conseguem acompanhar. 

    É vida. Vida frenética, desesperada, que se alimenta da morte de máquinas antigas. Os fungos que eu observava no laboratório faziam o mesmo: devoravam cadáveres com eficiência implacável, transformando decomposição em energia pura.

    O caos tem sua própria música. Zumbidos elétricos, rangidos metálicos, vozes gritando coordenadas em linguagens que não reconheço. É o som da sobrevivência organizada disfarçada de anarquia total.

    — É Nova Esperança?

    A pergunta morre no ar sem resposta, seguindo o mesmo destino de todas as anteriores. O elevador para com uma suavidade que contradiz o peso da máquina. As portas se abrem. Sigo os dois homens. Sem hesitar, sem pensar. Meu corpo reconhece a ordem no gesto deles, mesmo sem som.

    Eletricidade selvagem salta entre torres metálicas em arcos que iluminam o espaço com luz estroboscópica. Não é apenas energia. É comunicação. Cada faísca carrega dados. 

    Cada descarga elétrica transmite informações em uma linguagem que minha mente modificada consegue quase traduzir. É feito estar dentro do sistema nervoso de uma criatura gigante feita de metal e circuitos.

    Robôs se movem pelo espaço com uma graça que desafia sua natureza mecânica. Seus corpos se articulam em movimentos fluidos, quase orgânicos, em sintonia com a dança sutil da eletricidade que os move.

    Não são máquinas executando programas. São seres artificiais que desenvolveram personalidade própria, individualidade que emerge da complexidade de seus sistemas.

    E caminhando entre eles, figuras humanoides tão modificadas com implantes que a palavra “humano” se torna inadequada. Não são ciborgues. São uma nova espécie que seguiu pela trilha da evolução tecnológica. 

    Cada implante brilha tal qual uma estrela sob sua pele, cada prótese se move com precisão que supera qualquer membro biológico.

    É quando meu guia silencioso me entrega a um homem que parece ter sido moldado da própria energia que flui pelas torres metálicas.

    O homem é compacto, menor que Axion, contudo, há algo nele que sugere poder contido. Seus dedos são longos e manchados por ácidos e óleos, sinais evidentes de um técnico habituado a lidar com circuitos delicados. Ao longo de seus antebraços, estruturas brilham suavemente. Não cicatrizes. Não feridas. Algo integrado à pele de forma orgânica. 

    Dispositivos flutuam ao seu redor, feito animais de estimação bem treinados, respondendo a gestos quase imperceptíveis.

    — Então você é o famoso Zéric-7. — sua voz corta através da densidade do ar com precisão cirúrgica. Não há malícia, apenas a avaliação clínica de alguém acostumado a medir o valor das coisas. 

    — Axion me procurou porque suas modificações são investimento considerável demais para ser desperdiçado.

    A palavra ‘investimento’ ressoa em minha mente, um eco perturbador que não se apaga. Para este homem, não sou uma pessoa, sou uma produto incompleto avaliada em recursos gastos e retorno esperado. 

    Quero protestar, negar, no entanto, uma parte traiçoeiramente racional do meu cérebro sussurra que ele está certo. Axion gastou anos me mantendo vivo, me modificando, me treinando. Claro que esperava algo em troca.

    — O que isso significa? — minha voz sai mais controlada do que me sinto, uma descoberta que me surpreende.

    Ele sorri, todavia, não há calor no gesto. É a expressão de alguém que está prestes a explicar as regras de um jogo onde todas as cartas já foram distribuídas. 

    — Significa que você não é o primeiro experimento de Axion. Mas os outros… não chegaram tão longe. Não passaram das camadas internas.

    Sete tentativas. Eu sabia, no entanto, ouvir a confirmação ainda me atinge tal qual uma lembrança enterrada que decide gritar. Seis iguais a mim, seis que morreram antes mesmo de tentar escapar. Por que eu sou diferente? O que me manteve vivo quando os outros morreram?

    — Por que me conta isso? — forço as palavras através da confusão crescente.

    — Porque você precisa entender sua situação real. — ele gesticula, e um de seus dispositivos flutuantes se aproxima. Este se move diferente dos outros.

    — Axion não o abandonou. Não da forma que você provavelmente imagina. — a voz do homem carrega um peso que não sei interpretar — Mas isso é uma história para outro momento. 

    Um robô flutua até nós, interrompendo a conversa com a naturalidade de quem sempre participou dela. Quando fala, sua voz sintetizada carrega inflexões que não espero de uma máquina:

    — FASCINANTE COMO A PSICOLOGIA ORGÂNICA PREFERE NARRATIVAS DE ABANDONO A VERDADES DE PROTEÇÃO INADEQUADA.

    Move-se com a lentidão exata de algo que já decidiu meu destino, os sensores me fixando como bisturis silenciosos, cortando antes mesmo de tocar.

    — OBSERVO QUE VOCÊS HUMANOS CONSTROEM HISTÓRIAS EMOCIONALMENTE SATISFATÓRIAS MESMO QUANDO SÃO FACTUALMENTE INCORRETAS. É LIMITAÇÃO COGNITIVA OU MECANISMO DE DEFESA?

    Ignoro a máquina. Não pela rudeza, mas porque algo no tom do homem me incomoda. Axion não me abandonou. A frase ressoa em minha mente como um eco que não consigo silenciar, questionando anos de ressentimento cuidadosamente cultivado.

    O robô continua flutuando próximo, aguardando uma resposta que não pretendo dar. Máquinas não merecem cortesia. Não importa quão inteligentes pareçam.

    — Então o que acontece agora? — pergunto ao homem, embora uma parte de mim tema qualquer resposta que ele possa oferecer.

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