Capítulo 12 - Você é aquilo que escolhe não ser
Ele se aproxima, o contorno de seu corpo se torna mais claro a cada passo, de modo que parecia estar sendo desenhado pela própria luz. O homem diante de mim é uma blasfêmia ambulante contra qualquer conceito de forma humana que eu conheço.
Baixo, gordo, careca e com a pele pálida, ele se move com a confiança de alguém que transforma cada imperfeição física em vantagem tecnológica. O casaco que o envolve é feito de retalhos de placas lógicas, cujas luzes próprias pulsam com uma força que distorce o espaço ao redor, forçando meus olhos a se desviarem.
Implantes cibernéticos brotam de seu corpo feito tumores metálicos organizados: cabos neurais que se projetam da base do crânio calvo formando uma coroa de fios que se movem com vida própria, interfaces que substituem completamente o braço esquerdo por uma extensão mecânica que parece mais eficiente que qualquer membro orgânico, mais precisa que qualquer mão humana, mais mortal que qualquer arma que vi Axion usar.
E quando ele flexiona os dedos metálicos, ouço o som de servos se ajustando com a precisão de quem já matou antes, e lentes oculares que ocasionalmente emitem faíscas quando ele pisca, como se seus olhos fossem pequenos fornos processando informações que nenhum cérebro humano deveria conseguir processar.
Ele é o oposto de Axion. Funcional. Uma máquina grotesca de metal e circuitos enfiados na carne, com a brutalidade de um machado atravessando ossos. Mas por que, olhando para ele, sinto que estou vendo meu próprio futuro possível? Por que reconheço a lógica por trás de cada modificação, à semelhança de um idioma que aprendi, porém, me esqueci de ter aprendido?
Quando foi que aprendi a reconhecer esse tipo de implante? Por que meu corpo vibra na frequência exata que ele emite? Contudo é quando ele se aproxima que o zumbido baixo que emana das estruturas enxertadas em seus braços faz meu sangue modificado vibrar em frequências que meus ouvidos não captam, no entanto, meus ossos reconhecem tal qual um chamado de guerra.
E por que tenho a sensação de que ele está me testando da mesma forma que Axion sempre testou, anotando cada reação minha em algum lugar que não posso ver?
Não são apenas implantes grudados na carne como cicatrizes de má cirurgia. São extensões da consciência dele, interfaces que permitem controle direto sobre uma tecnologia que minha mente ainda não consegue processar por completo, mas à qual meu corpo modificado responde com uma familiaridade assombrosa. E essa familiaridade deveria me assustar mais do que assusta.
O cheiro metálico que emana dele se mistura com o fedor familiar da oficina de Axion, e por um momento absurdo sinto nostalgia de um lugar que sempre odiei. Será que é isso que vou me tornar? Uma coleção de cicatrizes e circuitos que ainda se lembra vagamente de ter sido humano?
Meu olhar se desvia para o que acontece nas mesas de análise ao redor do laboratório. Corpos adultos, não as crianças que eu estava acostumado a desmontar na oficina de Axion, mas homens e mulheres que um dia foram pessoas com nomes, sonhos, medos. Agora são apenas material de pesquisa sendo processado por robôs que trabalham com eficiência que nunca vi antes.
O que me faz parar de respirar não é a morte. Já vi morte suficiente para várias vidas. É a textura da pele deles. Queimada, todavia, não pelo fogo comum. A aparência é de corpos cozidos de dentro para fora, com a carne exibindo padrões de cristalização e reflexos incompatíveis com tecido vivo.
Será que isso é o que acontece quando as modificações falham? Quando o corpo rejeita o que foi forçado a aceitar? Quantos desses corpos passaram pelas mãos de alguém igual a mim antes de chegarem aqui?
Marcas geométricas percorrem os corpos tal qual cicatrizes rituais. Porém sei que não são rituais. São feridas causadas por algo que transformou a própria estrutura molecular da carne. Há um saber estranho nessas feridas, algo que meus dedos reconhecem, como se carregassem o gesto exato que as criou.
Um dos robôs se aproxima de uma mesa específica, e através de sua carapaça transparente posso ver os órgãos internos do cadáver. Estão todos cristalizados, transformados em algo que parece vidro orgânico que ainda pulsa com luz própria. É diferente, à maneira de uma decomposição que tivesse aprendido a reorganizar os tecidos com crueldade deliberada.
E quando vejo isso, minha mão automaticamente vai para a cicatriz em formato de losango no meu pescoço, que coça como sempre coça quando estou prestes a descobrir algo que deveria saber, contudo não lembro de ter aprendido.
O zumbido dos implantes do homem se intensifica, puxando minha atenção de volta para ele feito um ímã forçando metal a se mover. Ainda não sei seu nome, porém, há algo na maneira pela qual ele me observa que me faz pensar nos cadernos de Axion, nas anotações feitas com tinta de sangue e fluido cerebrospinal, nos dados que ele coletava sobre mim sem nunca explicar por quê.
Meus nervos começam a doer suavemente, a dor familiar das frequências invisíveis que ele emite, tal qual se cada fibra nervosa fosse esticada até o ponto de rasgo, por mãos que não posso ver. É como se meu corpo modificado fosse um instrumento sendo calibrado por uma frequência específica, e ele fosse o maestro segurando o diapasão que vai decidir se eu toco música ou apenas grito.
Um som metálico atravessa o silêncio. É o robô que flutua junto às mesas de análise. Ele se vira, os sensores ópticos travam em mim com a precisão de quem mede cada gesto que faço. Há algo familiar na forma pela qual ele inclina a cabeça, um padrão de análise que me lembra dos braços biomecânicos da oficina de Axion, todavia, com uma consciência que vai além da programação básica.
Diferente dos braços biomecânicos da oficina de Axion, este robô não se move feito uma ferramenta. Há hesitação, nuance. Quando inclina a cabeça para me mirar, sinto que não responde a ordens externas.
Como se alguma centelha estranha o guiasse. Como se ele me avaliasse com critérios próprios. Como se ele reconhecesse algo em mim que eu mesmo não consigo identificar, da mesma forma que reconheço padrões nos corpos cristalizados sem saber de onde vem esse conhecimento.
O robô para, porém, o desconforto não. Um tipo de observação sem olhos, que parece continuar me dissecando. Contudo, é a presença do homem, ainda calado, que se torna mais insuportável que o som do próprio silêncio.
Ele sabe que estou esperando. Ele escolhe quando acabar com isso. E essa paciência calculada, essa forma de deixar o silêncio fazer o trabalho por ele, me lembra tanto de Axion que por um momento tenho certeza de que ainda estou na oficina, ainda estou sendo testado, ainda estou sendo preparado para algo que ninguém me explica completamente.
O artífice volta a falar, finalmente me respondendo. Sua voz corta o ar denso com a frieza exausta de quem apenas cumpre o dever de repetir o óbvio. Contudo, há algo na maneira pela qual ele forma as palavras que me lembra de alguém, uma cadência familiar que coça na base do meu pescoço, exatamente onde a cicatriz em formato de losango sempre coça quando estou prestes a descobrir algo que deveria saber, todavia, não lembro de ter aprendido.
Por que sua voz me faz pensar em Axion anotando coisas sobre mim que nunca me contou? No fim, sempre dá em sangue ou contratos. Mas sempre terminando com posse:
— Agora você tem uma escolha real. Três opções de escambo, todas imperfeitas. Porém ainda assim… escolhas. Mais do que Axion te deu, mais do que Nova Esperança oferece, mais do que você merece, considerando o que custou para te manter vivo.
Uma dúvida surge em forma de balbucio que não consigo represar, que sai da minha garganta feito vômito de palavras que deveria ter engolido:
— Escambo?
Ele sorri, e é o mesmo sorriso que Axion usava quando eu fazia a pergunta certa na hora errada. Dentes perfeitos demais, brancos demais, que parecem ter sido arrancados de outra pessoa e implantados com cuidado obsessivo. Quantos mortos ele dissecou para conseguir esse sorriso?
Sem ligar para minha pergunta, ele ergue um dedo, e um de seus dispositivos projeta uma imagem holográfica que faz minha retina arder levemente. Aqui, a luz pesa na visão: densa, escorregadia, uma película luminosa que nem o piscar consegue desfazer.
— Primeira opção: fim imediato! Eu documento suas modificações através de exame post-mortem, preservo o conhecimento que Axion investiu em você para pesquisas futuras. Voce não precisa fazer nada, e eu ganho dados suficientes para replicar o processo em outras cobaias que talvez sejam mais gratas.
A projeção mostra meu corpo sendo cuidadosamente dissecado, cada órgão modificado catalogado e preservado com a mesma precisão clínica que eu usava na oficina para desmontar os cadáveres que chegavam pelo tubo, a mesma sequência metódica que Axion me forçou a aprender através da repetição obsessiva até que meus dedos encontrassem pontos de acesso sem hesitação, até que eu pudesse separar tecido sintético de orgânico com a ponta da lâmina apenas pelo som que faziam quando se partiam.
É eficiente, racional, e aterrorizantemente familiar na forma em que as mãos mecânicas seguram meu fígado modificado contra a luz artificial, examinando os circuitos neurais que pulsam mesmo depois que meu coração parou.
Parecia cena repetida. Contudo, desta vez, do lado oposto da mesa de dissecação. Meu corpo sabia o ritual, mesmo quando minha mente se recusava a lembrar o momento exato em que aprendi a distinguir entre morte neural completa e aquela apenas simulada, revelada nos primeiros quinze minutos pelas contrações sutis dos músculos faciais após a cessação da atividade elétrica
Quando foi que aprendi a calcular o tempo de morte pela contração muscular? Por que essa informação pulsa nas minhas mãos com a naturalidade de um instinto?
Minha mente grita contra o absurdo, porém, o que vejo me exige atenção.
Robôs que não se comportam feito ferramentas inanimadas, movendo-se com interesse calculado que vai além da programação básica, sempre antecipando movimentos com precisão que deveria ser impossível para ferramentas inanimadas.
O ar pesado com o gosto metálico do sangue velho, o chão pulsando sob o trabalho das máquinas mais profundas que conversam entre si em dialetos eletrônicos que Axion me ensinou a traduzir, primeiro para trabalhar melhor, depois porque ele disse que “conhecimento é propriedade valiosa”.
Cada detalhe, por mais grotesco, é vital, porque é esse grotesco que define o valor aqui.
Olho ao redor, tentando entender o que me é oferecido. O custo das escolhas está claro, todavia, sinto que existem mais coisas desconhecidas aí, escondido nas camadas dessa conversa. Cada palavra proferida, cada gesto, me aproxima mais dessa verdade, e eu não posso seguir sem saber até onde isso vai me levar.
— Em troca? — pergunto, porque, até agora, as palavras não me deram toda a verdade, e eu preciso de mais para entender o preço real de minha participação.
Ele se inclina para frente, e sento o calor artificial que emana de seus implantes misturado com o cheiro de carne queimada que sempre acompanha tecnologia forçada através da barreira da pele:
— Você custou mais do que várias facções independentes poderiam gerar em uma década de trabalho combinado. Pode parecer injusto, mas é a forma mais rápida de resolvermos esse impasse sem precisar quebrar mais ossos do que o necessário.
Meus punhos se fecham involuntariamente, a nuca ardendo com a sensação de um calor que pressiona, forjando os ossos por dentro. O sangue ferve nas veias que não são mais inteiramente minhas, e por um momento posso jurar que ouço Axion rindo em algum lugar no fundo da minha mente.
— Axion poderia ter negociado algo de valor equivalente conosco antes de desaparecer feito um covarde. Já que ele preferiu fugir deixando você na posição de garantia, você deve assumir a dívida. É simples matemática comercial.
A palavra ‘dívida’ ressoa tal qual uma corrente que se fecha, selando-me em um destino que nunca escolhi. Como uma porta de cela se fechando com eco que nunca para de reverberar.
Não escolhi essas modificações. Não roguei para permanecer vivo. Não pedi para ser transformado em uma mercadoria valiosa que respira e sangra e sonha com liberdade que nunca vai poder pagar. Porém aqui estou, sendo cobrado por investimentos que jamais autorizei, minha assinatura forjada em contratos escritos com meu próprio sangue.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.