Capítulo 14 - A última identidade será pós-humana
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A projeção se dissolve, contudo, as imagens ficam. Fogo que não é fogo. Morte que não é morte. E do outro lado, algo que ninguém consegue nomear. O silêncio se estende entre nós feito uma corda esticada, pronta para se romper ao menor movimento. Posso sentir o Artífice me observar, aguardando novamente uma reação, uma pergunta, qualquer sinal de que compreendo a magnitude do que me foi mostrado.
O que pode haver além do fogo? Como alguém consegue atravessar uma barreira que mata de formas, que desafiam não só a morte, mas a própria natureza da vida?
É obviamente perigoso. Contudo, em toda pesquisa, invenção ou luta, os ganhos não vêm com risco? Sinto o peso do perigo, porém, também vejo algo mais. Uma oportunidade, talvez: a liberdade real no final do túnel. A chance de descobrir meus próprios limites, sem alguém anotando cada tentativa em um caderninho escondido, esperando mais um fracasso.
O pensamento se cristaliza em forma de pergunta. Se há liberdade, ela nunca é de graça. E antes que me deixem com cicatrizes novas, prefiro saber o custo.
— E qual seria minha parte neste escambo específico? — pergunto, porque já comprei promessas demais sem ver a etiqueta, e estou farto de dívidas que cobram em cicatrizes.
O Artífice ignora minha ironia, com a indiferença de quem já ouviu o mesmo protesto centenas de vezes. Sua voz retorna, limpa, tal qual um contrato sendo recitado em voz alta.
— Oferecemos treinamento técnico, armamento adequado, novas modificações: desta vez cibernéticas, não biológicas, que o tornarão operacional em zonas hostis, e um espaço seguro quando não estiver em campo. Ao final de cinco anos, caso permaneça vivo e mentalmente estável, terá certificação plena, liberdade para operar com qualquer facção, e cidadania permanente em Nova Esperança.
Ouço tudo com a calma forçada de quem já sabe que está encurralado. A proposta tem a lógica de um contrato e o cheiro de uma cela disfarçada. Todavia, agora há algo a mais: a sensação de que meu corpo já foi negociado por mim, que os limites entre escolha e programação estão se dissolvendo. Não sei se estou decidindo ou apenas executando o papel que projetaram para mim.
— Isso não é escolha!? — falo, e as palavras saem feito um corte mal fechado, abrindo mais do que devem — É só três modos de me prender com aparência de liberdade.
Sua risada tem a secura do papel queimado, o estalo dos ossos, a fratura silenciosa de uma promessa traída:
— Que adorável ingenuidade terminal. Você ainda acredita que ‘justo’ é uma palavra que adultos usam em negociações sérias que envolvem quantias reais de recursos e sangue. Ninguém prometeu que seria justo, apenas que seria honesto sobre as formas como você vai ser usado. A diferença é que a maioria das mercadorias não sabem que são mercadorias. Você tem essa… vantagem educacional.
Penso em Iara, capturada à força, sem opções reais além da resistência mal-sucedida que terminou com ela sendo arrastada para algum lugar que provavelmente é pior que aqui. Pelo menos minhas correntes vêm com contratos escritos e promessas de liberdade futura que podem até ser verdadeiras.
Talvez o disfarce das correntes torne tudo mais aceitável. Talvez não. No entanto, estou cansado de imaginar o que é pior, e começo a perguntar o que, exatamente, vai sobrar de mim.
— O que exatamente seria esse trabalho de exploração? — pergunto, porque nem toda sobrevivência vale o preço de me perder inteiro.
O Artífice não demora a responder. Sua voz volta sem hesitação, resposta de quem lida com perguntas já previstas pelo protocolo.
— Precisamos de recursos que só existem além das barreiras. Alguém precisa morrer tentando recuperar esses recursos. A questão é se você será útil tempo suficiente antes disso acontecer, ou se vai morrer desperdiçando nosso investimento como um idiota inexperiente.
Ele gesticula, e desta vez projeta as imagens diretamente dos implantes, não delegando aos robôs. Posso sentir que estas são informações privadas, dados que só ele possui, segredos que custaram vidas para serem obtidos.
As imagens mostram a barreira de fogo mais de perto, revelando detalhes que fazem minha pele se arrepiar. Vejo braços mecânicos cortando o calor com ferramentas que vibram na ânsia de rasgar o mundo.
Veículos blindados avançam com brocas que giram em velocidade absurda, e escudos translúcidos, semelhantes ao material cristalizado que vi nos corpos, cintilam contra o calor. Alguns parecem cápsulas seladas, projetadas não para atravessar, mas para suportar o impossível.
Algumas brocas explodem no contato, outras derretem. Contudo, há aquelas que atravessam, desaparecendo do outro lado em flashes tão intensos que minha retina arde, mesmo por trás da projeção.
A projeção se dissolve aos poucos, no entanto, o silêncio não dura. O Artífice fala:
— Não vou mentir sobre os perigos. Você vai querer morrer pelo menos uma vez por semana. Mas os que sobrevivem viram artífices respeitados. Ganham correntes longas o bastante para que a ilusão de liberdade quase pareça real.
Meu corpo reage às imagens de forma inesperada. Não com medo, porém, com uma antecipação quase instintiva, como se minhas modificações tivessem sido feitas para esses ambientes hostis
Meu olhar volta mais uma vez para os corpos cristalizados. Será que eles sentiram essa mesma antecipação antes de partirem? Será que tinham modificações? Que algo dentro deles também os chamou para atravessar o fogo, prometendo que sobreviveriam, que eram diferentes, que conseguiriam onde outros falharam?
E agora eles são arte macabra sendo analisada por robôs que catalogam cada detalhe da sua transformação pós-morte.
As imagens continuam ali, imóveis, contudo, dentro de mim tudo se move. A dúvida, antes sussurrante, agora grita. E é a minha voz que corta o silêncio.
— Preciso saber uma coisa!? — forço as palavras através da ansiedade crescente, sabendo que além de Axion, talvez só esse homem possa responder, e assim, saberei exatamente quanto ele sabe sobre o que sou — Se eu escolher o acordo de exploração, ainda serei eu no final?
Faço uma pausa, sentindo o peso da pergunta real se formar na minha garganta tal qual um tumor de palavras:
— Ou essas modificações vão me transformar em algo completamente diferente? Algo que nem se lembra mais de ter sido humano? E no fim, talvez nem essa promessa de liberdade após os cinco anos seja real.
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