Capítulo 16 - Manual de autodestruição
A esperança dura exatamente dezesseis horas. Consigo medir com precisão doentia porque minha mente não para de contar, do jeito que Axion me treinou a contar gotas de sangue desperdiçado, segundos de hesitação, batimentos cardíacos durante procedimentos que exigem sincronia perfeita entre destruição e preservação.
Dezesseis horas desde que assinei o contrato e senti, pela última vez, que poderia ter futuro, desde que me tornei Zéric-7 e imaginei cinco anos à frente sem ver apenas escuridão. Dezesseis horas de sono sem pesadelos. Acordar com um propósito definido, existir com algo que parecia controle sobre meu próprio destino.
E então o diagnóstico chega, rasga a continuidade da manhã feito uma falha sísmica invisível, abre um abismo entre quem eu era e quem acabo de me tornar.
— Degradação sináptica irreversível. — as palavras do técnico médico flutuam no ar da sala de exames, uma sentença de morte disfarçada em vocabulário clínico, pronunciadas com a mesma neutralidade que Axion reserva às falhas mecânicas, reduzindo minha morte programada à frieza de um relatório técnico.
— Seis meses, no máximo. — ele continua — Talvez menos, dependendo do stress a que for submetido.
Minha mão direita treme enquanto tento acessar a memória de onde coloquei as botas esta manhã, e é essa tentativa fracassada que me faz perceber a dimensão real do que está acontecendo comigo. A informação simplesmente não está lá, não da forma de algo esquecido, mas na condição de algo que nunca existiu, um vazio onde deveria haver memória sólida.
Por um momento, penso que talvez seja só distração, o choque da notícia reverberando através de sistemas neurais que ainda estão processando o impossível, mas quando olho para baixo e vejo os pés descalços, a realidade me quebra por dentro, tal qual estrutura podre colapsando sob o próprio silêncio.
Que diabos me trouxe até aqui sem botas? Por que não percebi o frio do metal contra a pele nua? Quando parei de registrar sensações básicas sobre meu próprio corpo, como se minha consciência estivesse se desconectando gradualmente da carne que habito?
— Impossível! — minha voz soa oca até para mim mesmo, carregando descrença que não consegue sustentar o peso da evidência diante dos meus olhos.
O técnico consulta dados holográficos que brilham azuis na sua retina artificial, projeções que parecem fantasmas digitais dançando nos seus olhos modificados, e há algo na forma pela qual ele evita meu olhar direto que me diz que já sabia disso antes de eu entrar na sala, que meu diagnóstico foi determinado antes mesmo dos exames serem realizados.
Todos sabiam. Axion sabia. O mundo inteiro conhecia minha data de expiração, menos eu.
— Axion não evitou a morte. Só adiou seus efeitos com algo que nunca foi feito para durar. — ele responde, e suas palavras carregam peso de verdade oficial que corta tal qual bisturi através das minhas ilusões — Seus registros mostram conhecimento completo da degradação programada.
— Você é… — ele hesita, procura palavras que não sejam brutais demais para o que precisa comunicar, na suposição de que gentileza na entrega possa diminuir o impacto devastador do conteúdo — Um protótipo funcional com prazo de validade estabelecido desde a fabricação inicial.
As palavras me racham por dentro, tal qual trincas num vidro sob pressão, cada uma abrindo espaço para a próxima. E posso sentir minha mente tentando categorizar o impacto de cada revelação do jeito que aprendi a catalogar os mortos na oficina: por função, por forma, por falha. Aplico o mesmo raciocínio aqui, mesmo que tudo doa de outro jeito. Prótese temporária: função. Prazo de validade: forma.
Axion sempre soube. Falha minha em não perceber os sinais que provavelmente estiveram lá desde o começo. Na impressão de que cada momento de esperança que senti ontem fosse baseado numa mentira fundamental sobre minha própria natureza, na suposição de que minha ignorância sobre minha condição temporária fosse parte do design original, programada junto com minha deterioração inevitável para me permitir funcionar normalmente durante o tempo disponível antes do colapso final.
Meu mentor sabia. Desde o momento em que salvou minha vida e adiou minha morte. Que prolongou minha estadia nesta vida me construindo com partes de outros mortos, ele sabia que eu morreria jovem, que minha existência tinha timer interno contando regressivamente. E nunca me contou, me deixou descobrir sozinho quando já era tarde demais para fazer qualquer diferença.
Tento lembrar do meu décimo quinto aniversário, Rilks correndo pelos cantos coletando fragmentos de metal com orelhas cibernéticas pulando em meu colo, e a imagem surge nebulosa, tal qual fotografia antiga desbotando sob exposição prolongada à luz, depois desaparece completamente, deixando apenas um vazio onde deveria haver memória sólida e confortante.
Quatorze anos. Ainda consigo acessar fragmentos dos treze, mas eles estão escorregando entre meus dedos mentais tal qual areia molhada, impossíveis de segurar por mais que eu tente agarrá-los com desespero crescente. Doze está começando a se desintegrar nas bordas, lembrando uma história pessoal sendo apagada com borracha sistemática, camada por camada, até que nada reste do que me fez quem sou hoje.
O brilho holográfico reflete nos olhos do técnico médico enquanto ele retoma a palavra, agora com o tom de quem apresenta um relatório final.
— A deterioração avança cronologicamente. — continua, sua voz assume o tom didático de quem explica processo inevitável e bem documentado, tal qual se estivesse me ensinando sobre cicatrização, não sobre minha própria morte programada.
— Das memórias mais distantes para as recentes. Primeiro você perde a infância, depois a adolescência, depois a juventude, até voltar ao que eram basicamente ajustes de fábrica. Configurações padrão de personalidade que persistem quando todo o conteúdo experiencial é removido do sistema.
“Configurações padrão de personalidade”. A frase me atravessa, mas foi outra que ficou martelando depois: “ajustes de fábrica”. Dita com a frieza impessoal de quem ajusta uma peça que nunca funcionou direito, reduzindo-me a um erro técnico. Talvez esse tenha sido o verdadeiro custo de ser salvo da morte: fui convertido em objeto, em máquina, em unidade reinicializável.
O eco das palavras na minha mente tem o peso e o tom sombrio de um sino funeral, marcando o fim de tudo que pensei ser autenticamente meu. Nem mesmo minha personalidade é realmente minha. É apenas programação que persistirá quando todo o resto for apagado, funcionando à semelhança de um sistema básico que segue operando mesmo depois da exclusão de tudo que era singular.
A pessoa que sou agora, que pensa e sente e escolhe e sonha com futuros impossíveis, vai ser substituída por alguma versão genérica, um robô biológico executando comandos básicos até o sistema finalmente colapsar completamente.
Tudo que aprendi, tudo que vivi, todas as conexões que formei. Tudo será apagado tal qual se nunca tivesse existido, equivalente a uma vida inteira reduzida a ruído temporário que será silenciado quando o sinal retornar ao estado original.
Minha visão escurece por quase um minuto inteiro, e dessa vez não é apenas perda de consciência, mas distorção ativa da realidade ao meu redor. Quando volta, estou no chão frio da sala de exames, e há sangue escorrendo do meu nariz, pingando no metal polido com som que ecoa feito cronômetro marcando segundos preciosos sendo desperdiçados.
O sangue tem gosto de metal oxidado, e quando limpo o rosto com a manga, o cheiro me lembra imediatamente da tinta que Axion usa para suas anotações: sangue misturado com fluido cerebrospinal. A mesma substância que agora escorre do meu nariz, confirmando de forma visceral que sou feito das mesmas matérias-primas que ele sempre catalogou nos outros, que meu corpo está literalmente se decompondo e vazando através dos mesmos orifícios que ele documentava metodicamente nos cadáveres que processava.
O técnico me observa com curiosidade científica, não compaixão, e posso vê-lo mentalmente anotando: “Episódio de desconexão neural número um. Duração: cinquenta e oito segundos. Perda de consciência completa. Sangramento nasal iniciado.”
O técnico médico não expressa pesar, nem raiva, nem consolo. Apenas ajusta os dados flutuando à sua frente e continua num gesto que parece cumprimento de protocolo.
— Isso também é normal! — ele diz enquanto me ajuda a me levantar, minhas pernas bambas. Meu cérebro luta contra a degradação, e essa batalha silenciosa cobra seu preço: apagões que me arrancam do presente tal qual se alguém puxasse o fio da consciência.
— Vão se tornar mais frequentes — o técnico médico prossegue — e durarão mais tempo conforme o processo avança. Eventualmente, você simplesmente não vai mais acordar de um deles.
Normal, ele diz, reduzindo minha morte a um evento biológico padronizado, convertendo o meu pânico em número, uma reação tão comum que ninguém sequer se dá ao trabalho de avisar que ela viria. Como se minha agonia fosse estatística a ser registrada, não experiência humana genuína merecendo compaixão ou pelo menos reconhecimento de sua singularidade.
Quantos iguais a mim ainda respiram, presos em existências estendidas à força, fingindo ser o que nunca chegaram a se tornar? Quantos morreram sozinhos enquanto técnicos tomavam notas sobre a “progressão normal” da deterioração, reduzindo o sofrimento humano a um fenômeno científico interessante, mas emocionalmente neutro?
É essa sensação de ser reduzido a objeto de estudo que me força a encarar o Artífice que observa tudo em silêncio desde o início, carregando o diagnóstico tal qual um peso físico no meu peito.
Ele permanece quieto até este momento, aquela blasfêmia ambulante de metal e carne analisando cada movimento meu com suas lentes oculares que faiscam, me observando tal qual se eu fosse apenas mais um espécime interessante para sua coleção pessoal, transformando minha vulnerabilidade em informação processável, meu terror em estatística arquivável.
Então ele se levanta com movimento mecânico que ecoa na sala silenciosa, cumprimenta o técnico médico numa troca de cortesias profissionais: dois especialistas discutindo peça defeituosa. E sinaliza para que eu o siga com gesto que não admite questionamento.
Saímos da sala juntos, meus pés ainda descalços contra o metal frio, e acompanho o artífice pelos corredores infinitos desta instalação que parece existir apenas para processar diagnósticos fatais, ele caminhando à frente sem pronunciar palavra, reduzindo minha existência a um detalhe logístico transportável de um ponto ao outro.
Olhando suas costas largas enquanto caminhamos: o movimento dos implantes se moldando sob a pele, rangendo com sons mecânicos que ecoa no corredor vazio.
Posso adivinhar que meu estado terminal é completamente indiferente para ele, que minha morte programada representa apenas transição natural no ciclo de suas pesquisas, pois no final, mesmo depois que eu parar de respirar e pensar e sonhar com futuros impossíveis, ele ainda terá meu corpo para decompor e estudar, ainda poderá catalogar cada órgão modificado e cada implante neural, e seu investimento em mim será completamente recuperado através da análise post-mortem de mais uma experiência concluída.
Para onde estamos indo? A pergunta martela em minha mente deteriorante enquanto sigo o ritmo pesado de suas botas, ouvindo o ruído constante de seus sistemas internos recalibrando a cada passo, dando a impressão de máquina forçando humanidade, enquanto eu sou o oposto: carne modificada tentando imitar vida, biotecnologia disfarçada de humanidade, criação orgânica programada para falhar.
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