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    Quarenta minutos seguindo o Artífice através de corredores que parecem se estender além das dimensões físicas desta instalação, meus pés descalços contra metal frio ecoam em ritmo que gradualmente se torna hipnótico, quase meditativo. 

    O ambiente mantém consistência industrial absoluta conforme descemos. Ferro cinza e superfícies que eliminam qualquer vestígio de vida, cada nível repete o mesmo padrão arquitetônico implacável até chegamos a uma sala subterrânea.

    A sala está vazia e sento-me numa cadeira de metal, ainda processando o diagnóstico fatal que recebi, mas descubro que minha mente continua se refugiando em detalhes insignificantes sempre que tenta encarar a verdade central sobre minha condição. 

    As paredes ao meu redor mantêm a mesma consistência, com superfícies metálicas que criam reverberações duras e eliminam qualquer possibilidade de conforto visual. 

    O ambiente me lembra visceralmente da maca metálica na oficina de Axion. Aquela superfície fria era feita do mesmo material cinza que dominava todo o espaço onde aprendi a processar corpos que chegavam pelo tubo de transporte. Cada morte era catalogada com uma precisão clínica que agora reconheço no meu próprio diagnóstico. 

    A ironia é evidente demais para ignorar, mas minha mente deteriorante parece incapaz de sustentar esse tipo de conexão por mais de alguns segundos antes de se dispersar novamente em fragmentos de memórias aleatórias e observações superficiais sobre o ambiente.

    É mais fácil catalogar as características arquitetônicas da sala do que aceitar que tanto esta instalação quanto o meu antigo laboratório existem para processar transições entre vida e morte, que meu destino sempre foi terminar sendo estudado com a mesma frieza científica que eu mesmo apliquei aos outros. 

    Focar na missão, nas barreiras de fogo que preciso atravessar, nas fraturas da realidade que preciso navegar, nas habilidades que posso perder antes de conseguir usá-las, significa admitir que sou ferramenta sendo preparada para uso final. Que cada estratégia que desenvolvo precisa considerar a possibilidade real de que minha própria mente pode me trair no momento mais crítico.

    A sala se enche de vozes e movimento quando os exploradores contratados começam a chegar. A energia que carregam fere o torpor do ambiente, suas falas técnicas vibram com um ânimo que me soa artificial no meu estado atual. 

    Grupos se formam naturalmente ao redor de equipamentos específicos, cada um discute aspectos diferentes da missão com a seriedade de quem planeja sobreviver.

    Deveria me juntar a eles. Meu conhecimento sobre modificações corporais extremas, sobre o modo em que os sistemas orgânicos entram em colapso sob pressão, poderia ser crucial. Mas minha mente continua se fragmentando, perdendo o foco em qualquer coisa que exija pensamento sustentado. 

    Em vez disso, fico preso em observações obsessivas: o jeito em que meu próprio sangue insiste em ter gosto de metal oxidado, dando a sensação de que meu corpo está literalmente enferrujando por dentro; a textura das paredes que absorve o calor corporal, deixa minhas palmas frias mesmo após contato prolongado; e o modo em que meus reflexos apresentam falhas mensuráveis: 0,2 segundos de atraso onde antes havia resposta instantânea.

    Essa degradação física não é apenas inconveniente. É fatal. Em ambiente hostil, um quarto de segundo pode significar a diferença entre detectar ameaça e se tornar vítima dela.

    É então que a dinâmica da sala muda completamente. As conversas não param exatamente, mas diminuem de intensidade e um instinto coletivo reconhece de imediato algo que impõe respeito. Quando viro para ver o que causou essa mudança, entendo imediatamente.

    — Korvak! — diz alguém próximo, e o nome carrega peso que vai além da identificação simples. 

    O novo explorador domina o espaço não apenas pela estatura. Seus três metros de altura fazem até os modificados mais extremos parecerem pequenos. Porém é outra coisa: uma qualidade indefinível que faz as pessoas se afastarem sem perceberem que estão fazendo isso.

    Sua pele é madeira petrificada, mas marcada por rachaduras que brilham fracamente, dando a impressão de que luz interna vaza por entre as fissuras. 

    As linhas formam padrões que me remetem às estruturas antigas das estufas que conheci na infância. Madeira rachada pelo tempo, porém, resistente de uma forma que desafia décadas de desgaste natural. Onde olhos deveriam estar, cavidades profundas emanam luz âmbar que pulsa irregularmente, criando sombras dançantes em seu rosto angular.

    Quando nossos olhares se cruzam através da sala, algo no meu peito se contrai violentamente quando vejo sua boca se abrir. Não é medo do desconhecido. É o terror específico de ser reconhecido por alguém que deveria ser impossível conhecer, de ver nos olhos de um estranho a familiaridade reservada para fantasmas do passado.

    — Você tem a forma dele! — sua voz ressoa pelo ambiente com a brutalidade de uma ventania que se aproxima — Mas a essência é diferente. Mais… nova. Menos gasta pelo peso de carregar memórias pesadas demais para estrutura que está aprendendo a morrer.

    Meus músculos se contraem involuntariamente, e a cicatriz em losango no meu pescoço começa a coçar furiosamente, em uma reação que sugere um tipo de reconhecimento biológico fora do alcance da minha mente consciente. Forma de quem? Que forma ele está descrevendo com tanta certeza perturbadora? Meu corpo é único, adaptado. Não deveria existir outro igual, vivo? Não deveria haver precedente para comparação. 

    O peso das palavras de Korvak ainda paira no ar, e uma estranha sensação de reconhecimento começa a se formar, sugerindo que sua presença carrega algo além do corpo. Ele não se move rapidamente, mas sua voz carrega uma força que torna cada palavra ainda mais impactante. 

    O gigante está imerso em uma lembrança, e sua fala é mais do que uma simples observação: é quase um eco do que ele já viveu.

    — Conheci alguém assim uma vez! — continua Korvak, parando a poucos metros de mim, e posso sentir o calor emanando das cavidades onde deveriam estar seus olhos — Alguém que também estava perdendo pedaços de si mesmo, um de cada vez, numa sequência que tornava cada dia um pouco menos seu que o anterior. Contudo aquele tinha olhos mais velhos, mais cansados pelo peso de carregar verdades que não conseguia processar completamente. Você ainda tem esperança brilhando na sua expressão. Por enquanto.

    O jeito que ele fala sugere um conhecimento íntimo da minha condição, algo que ultrapassa a mera dedução. Ele está comparando minha aparência com memórias específicas de outra pessoa, analisando diferenças sutis entre dois casos similares? Ou todos os presentes receberam documentação prévia sobre minha deterioração neural: relatórios médicos completos que transformaram minha condição terminal em informação compartilhada antes mesmo de me conhecerem pessoalmente? 

    A hipótese mais perturbadora é que faz meu estômago se contrair: minha própria memória pode estar me sabotando em tempo real, apagando interações recentes com ele e deixando apenas ecos confusos de familiaridade. Se minha deterioração já começou a afetar formação de memórias novas, posso ter conversado com Korvak dezenas de vezes sem reter registro consciente desses encontros.

    A cicatriz coça ainda mais intensamente, tentando transmitir algo que minha mente, agora em colapso, não consegue mais decifrar. Tento acessar qualquer memória que explique o que ele está dizendo e encontro apenas vazio onde deveria haver informação, lacunas que se estendem muito mais profundo que a deterioração recente deveria alcançar. 

    É como se minha história tivesse sido extirpada em silêncio, e eu herdasse apenas o eco de uma versão anterior. Mas por que essa sensação dolorosa de que já passei por essa conversa exata antes? Por que suas palavras despertam em mim um eco antigo que meu pensamento não alcança, no entanto, meu corpo reconhece?

    — De quem você está falando? — pergunto, todavia, minha voz sai mais aguda que o normal, carregando urgência desesperada que revela mais vulnerabilidade do que pretendia mostrar — Quem você conheceu que era igual a mim?

    Korvak balança sua cabeça massiva lentamente, movimento que faz suas articulações emitirem ruídos feito madeira velha rangendo no vento, som que desperta eco emocional profundo que não consigo identificar, mas que ressoa através do meu corpo inteiro, despertando uma vibração dolorosa inexplicável.

    — Os mortos não têm nomes! — ele responde, e suas palavras carregam peso de perda genuína que contradiz a natureza aparentemente monstruosa da sua forma — Apenas funções que executaram enquanto existiram. Propósitos que cumpriram antes de serem reduzidos a configurações básicas e depois ao silêncio final.

    Por que só agora percebo com clareza devastadora o quanto minha mente se fragmentou? Durante toda a fuga, toda a adrenalina de descobrir este lugar, toda a tensão de conhecer os outros exploradores, me mantive funcionando, fingindo estar inteiro, sustentando a aparência de que meus pensamentos ainda fluíam com a mesma coerência de sempre. 

    Mas será que o choque do diagnóstico médico finalmente derrubou as barreiras psicológicas que me protegiam de enxergar minha própria deterioração? Como se o cérebro tivesse criado mecanismos de negação sofisticados para me permitir funcionar normalmente enquanto morria por dentro, e só agora, confrontado com a realidade médica inescapável da minha condição, todas essas ilusões protetoras desmoronaram simultaneamente. 

    O processo de degradação não se intensificou hoje, apenas parei de conseguir me enganar sobre sua progressão real, e agora cada falha de memória, cada segundo perdido de consciência, cada fragmento que escorrega entre meus dedos mentais se torna visceralmente óbvio demais para ignorar.

    Antes que eu possa perguntar mais alguma coisa, antes que possa processar completamente as implicações devastadoras do que ele acabou de revelar, uma figura se materializa ao meu lado, condensando-se a partir de possibilidades que existiam apenas na minha visão periférica.

    — Mnemoclasta! — ela se apresenta com voz que ressoa em múltiplas frequências simultaneamente, com a estranheza de quem fala por muitas gargantas fundidas num só som.

    Sua aparência me desorienta visceralmente. Uma mulher indefinível cuja pele muda constantemente de textura e cor, passando de lisa e pálida para rugosa e dourada, depois para translúcida e azulada, parecendo incapaz de decidir que forma manter, como se todas as versões de si mesma se manifestassem através dela, uma de cada vez. 

    Quando nossos olhares se cruzam, algo no meu peito se contrai com uma violência que me deixa sem ar. Um reconhecimento impossível se espalha através do meu corpo tal qual substância corrosiva, uma familiaridade que não deveria existir, mas faz meu coração acelerar com a antecipação de um reencontro que não posso explicar logicamente. 

    Não é apenas que ela me parece familiar. É algo mais profundo, como se minha alma se lembrasse da dela, mesmo que minha mente não saiba de onde nem por quê.

    — Por que sinto que deveria lembrar de você? — ela pergunta, e sua voz carrega peso emocional desproporcional para alguém que supostamente está me vendo pela primeira vez, tristeza que sugere perda recente de algo precioso — Se nunca nos encontramos antes, por que olhar para seu rosto me faz querer chorar por algo que não consigo nomear?

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