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    O ar entre nós fica denso com o peso de reconhecimentos impossíveis, carregado de eletricidade estática que faz os pelos do meu braço se eriçarem tal qual antenas captando uma frequência que existe apenas entre nós dois. Mnemoclasta me observa com intensidade que vai além da curiosidade. É desespero disfarçado de pergunta, urgência mascarada de confusão casual.

    Sua pergunta queima na minha garganta, líquida e metálica, dissolve cada tentativa de resposta. Meu corpo reconhece o dela antes da minha mente conseguir processar o impossível: ela respira de um jeito que já me era íntimo, pisca com um ritmo que carrego nos ossos, inclina a cabeça de leve enquanto espera e tudo isso ressoa através dos meus nervos tal qual música que aprendi mas esqueci a letra.

    Mais uma vez me vejo arrastado para território emocional que não consigo mapear, confrontando sensações que desafiam qualquer lógica que tento aplicar à minha existência fragmentada. Por que meu peito se contrai com violência quando olho para ela? 

    Por que sua presença desperta, não memórias, essas foram arrancadas com precisão cirúrgica, mas emoções brutas que pulsam através da minha espinha tal qual corrente elétrica descontrolada? Há algo nela que me faz sentir que somos partes de um mesmo sistema, interrompido, fragmentado, esquecido, mas cujas cicatrizes ainda queimam sob a pele da memória.

    Como se fosse possível esquecer alguém que nunca encontrei, mas que meu coração insiste em reconhecer com a dor aguda de uma amputação recente. Como se cada célula do meu corpo guardasse a memória do dela, enquanto minha consciência foi limpa com a precisão de quem apaga dados específicos sem danificar o sistema operacional que os hospedava.

    — Eu… — finalmente começo a responder, mas as palavras morrem na minha garganta quando percebo que não sei o que dizer, que qualquer explicação que eu ofereça, seria especulação baseada em sentimentos que não consigo justificar. 

    Não sei por que a reconheço com certeza que transcende lógica, não sei por que meu peito se aperta quando olho para ela, não sei por que tenho vontade quase irresistível de protegê-la de algo que não consigo nomear mas que sinto tal qual ameaça iminente.

    Antes que possa formular alguma resposta coerente, a presença familiar do Artífice se materializa ao nosso lado com aquela capacidade perturbadora de surgir exatamente quando não deveria estar lá. Suas botas pesadas contra o chão anunciam chegada que já foi calculada há minutos, planejada com precisão que transforma coincidências em intervenções programadas.

    — Vejo que já conheceu algumas pessoas aqui! — ele declara, voz carregada da satisfação clínica de quem observa resultados esperados se manifestarem conforme previsto — Mas deixe-me apresentar adequadamente a mais um explorador: Oráculo.

    Olho ao redor procurando por quem ele está se referindo, esperando ver alguém novo se aproximar, mas minha confusão deve ser óbvia porque o Artífice emite som que poderia ser riso se viesse de garganta humana.

    — Estou falando desta coisa ao meu lado! — ele antecipa minha pergunta não formulada — Você já viu outras partes dele no meu laboratório. Não são máquinas independentes. São extensões. Oráculo… não é um robô. Nem de longe.

    — Melhor eu explicar direito, já que ele não é muito comunicativo e vai te acompanhar nessa missão. — continua, agora com um tom mais sério — Oráculo é uma consciência distribuída. Um único núcleo espalhado por dezenas de corpos, cada um com uma função específica, mas todos interligados. Ele vai estar ao seu lado. Então é bom entender com quem, ou com o quê, está lidando.

    Meus olhos se voltam para o robô humanóide que se posiciona silenciosamente ao nosso lado, e percebo que não há nada visualmente diferente entre ele e os outros androides que vi trabalhando no laboratório do Artífice. Mesma estrutura metálica polida, mesma precisão de movimentos, mesma falta de passividade programada. O rosto, inalterado, sem traço de ninguém.

    — Realize varredura de reconhecimento. — o Artífice instrui com autoridade casual — Precisa conhecê-lo adequadamente para otimizar a colaboração durante a missão.

    O que acontece a seguir me pega completamente desprevenido. Os olhos de Oráculo se tornam focos de luz branca pura, projeta raios que se multiplicam em prismas complexos, cria rede tridimensional de energia que me envolve completamente. 

    Meus ossos vibram em ressonância com frequências que não deveria ser possível perceber, e minha medula espinhal responde com formigamento que sobe da base do crânio até a região lombar.

    O processo dura apenas segundos e o robô anuncia: 

    — RECONHECIMENTO CONCLUÍDO. PADRÃO GENÉTICO E NEUROLÓGICO CORRESPONDE A SEQUÊNCIA ZÉRIC-SÉRIE COM PRECISÃO DE 99.94%. DETERIORAÇÃO PROGRESSIVA SEGUE CRONOGRAMA ESTABELECIDO EM REGISTROS PRECEDENTES. EXPECTATIVA DE FUNCIONALIDADE OPERACIONAL DENTRO DOS PARÂMETROS HISTÓRICOS DOCUMENTADOS.

    A brutalidade com que despeja verdades sobre meu corpo me atinge sem freio ou filtro entre dado e impacto. Não é ignorância. É projeto. Alguém o programou assim, com a delicadeza de uma serra. Provavelmente alguém que nunca encostou a mão num rosto humano.

    E então o Artífice fala mais uma vez, rasgando meu raciocínio ao meio:

    — Oráculo!? — o Artífice interrompe, já com aquele tom de quem está acostumado com esse tipo de constrangimento — Quando eu falei “reconhecimento”, era pra ser um cumprimento, não um check-up completo. Acho que seus protocolos sociais estão precisando de uma atualização.

    Mas eu mal registro as palavras dele, porque minha mente está completamente consumida pelo horror que volta em nova confirmação: “Sequência Zéric-série. Registros precedentes. Cronograma estabelecido.” Cada palavra é martelo esmigalhando a ilusão de que minha condição é única, trágica, individual.

    “Registros arquivados. Replicação intencional.” Isso significa que outros passaram pela mesma deterioração específica que estou passando, seguindo um padrão tão preciso que a ideia de acaso vira piada cruel. Outros iguais a mim existiram. E caíram. Um por um, apagados com a mesma coreografia de falha que agora se desenrola dentro de mim.

    Não sou único. Sou cópia. Projeto descartável. Memória reciclada. Nome escrito sobre um cadáver anterior. Nada em mim é exceção. Só o padrão. Só repetição.

    — Que registros? — pergunto, mas minha voz sai feito sussurro estrangulado que mal consegue carregar peso da pergunta — De quantos? Quantos como eu realmente existiram antes de mim? Quantos morreram seguindo exatamente os mesmos padrões que estou seguindo agora?

    — BIIIIP… — o som ecoa de dentro do Oráculo, percorrendo corredores vazios antes de chegar até mim.

    A pausa entre a emissão e a resposta é longa o bastante para que eu perceba que não é lentidão mecânica. É intenção. Está me testando. O que vem depois vibra com algo que soa feito um riso abafado, uma crueldade silenciosa que nenhum código deveria conter, mas que, mesmo assim, percorre cada circuito dele.

    — HUH-HUH… — o som grave ressoa antes da resposta, metálico demais para ser humano, mas carregado demais para ser neutro — ACESSO NEGADO. — diz, e a pausa seguinte me faz crer que a negação não é tão automática quanto parece — FALHA SISTEMÁTICA IMPEDE A REVELAÇÃO DE INFORMAÇÕES RELEVANTES PARA CASOS ESPECÍFICOS EM AMBIENTES CONTROLADOS.

    “Falha sistemática.” Claro que é falha sistemática, não restrição intencional. Mas seus olhos brilham de um jeito que torna essa “falha” conveniente demais para ser acaso. Ele sabe exatamente o que não pode me contar. E sabe também as condições precisas em que essas restrições seriam suspensas, ainda que por instantes. 

    Se minhas falhas seguem padrões arquivados com precisão estatisticamente impossível, isso não torna minha morte apenas previsível. Torna-a documentada, simulada, refinada. Resultado de múltiplas iterações. Uma repetição minuciosa de quedas anteriores, talvez até mesmo otimizadas.

    — Clémm!

    O som metálico explode pelo lugar, seco, impessoal, desalinhado com qualquer lógica orgânica. E ainda assim, real. Meu corpo se move antes da mente reagir. Giro o rosto em direção ao som metálico, mas já sei. Não preciso ver. Alguém entrou. 

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