Capítulo 19 - Marcha dos inacabados
O som metálico ecoa quando ela surge através da entrada, cada passo calculado, cortando o silêncio com a precisão de quem conhece o peso das próprias pegadas. Não há pressa nos seus movimentos, mas há urgência no modo em que seus olhos varrem o ambiente antes de pousarem em mim.
Mnemoclasta se afasta instintivamente, criando espaço que não existia antes, numa reação que sugere reconhecimento de autoridade que transcende hierarquias visíveis. Korvak permanece imóvel, porém, suas cavidades oculares pulsam com intensidade diferente, reconhecimento que carrega história.
A mulher avança entre nós. Pequena em estatura, contudo, sua autoridade altera o ritmo do ambiente, forçando todos a se reorganizarem sem perceber. Cada gesto das suas mãos calejadas faz pequenos objetos brotarem do nada, ferramentas que existem por segundos antes de se dissolverem, cristais que pulsam com luz própria e desaparecem quando deixo de olhar diretamente para eles.
Será que precisa mesmo fazer isso? Ou é como respirar, automático? Talvez sejam só sobras de um corpo que nunca desacelera. Movimento sem causa, impulso moldado pela repetição. Talvez nem ela saiba mais onde termina a intenção e começa o hábito.
— Você também estará nessa missão? — a pergunta escapa de Mnemoclasta que está ao meu lado.
O artífice interrompe qualquer resposta que a nova exploradora pudesse dar:
— Essa é Demiurga! — ele anuncia, virando-se para ela com irritação mal disfarçada — Você está atrasada!
A nova exploradora encara o artífice.
— Tive alguns contratempos no laboratório. — responde sem demonstrar qualquer constrangimento, num gesto que dá a entender que atrasos são uma inevitabilidade natural ao se lidar com forças que ignoram cronogramas convencionais.
Ela estende a mão na minha direção. Percebo que não é apenas cumprimento. É análise. Seus dedos tocam os meus e imediatamente sinto energia diferente da varredura mecânica de Oráculo. Esta luz nasce suave, cresce devagar, percorre meu corpo com curiosidade orgânica que reconhece limites e os respeita.
— Hum… — o som que Demiurga emite carrega peso de descoberta e camadas de significado que minha mente fragmentada luta para decifrar.
A sensação que sua análise deixa é completamente distinta da brutalidade clínica do robô. Há algo quase maternal na forma em que essa energia percorre meu corpo, tal uma força que verifica não apenas minha condição física, mas meu bem-estar em níveis que transcendem o meramente biológico.
— Algo estranho? — pergunto, embora já saiba que a exploradora encontrou exatamente o que esperava encontrar — Quer dizer algo?
— Acredito que já saiba que sua estrutura está sendo desmontada! — ela murmura, quase para si mesma, enquanto seus olhos fixam-se nos meus com intensidade que vai além da mera observação científica.
Pergunto com urgência desesperada, na esperança de que entender o processo pudesse me dar algum controle, embora parte de mim já saiba que certas verdades apenas tornam a impotência mais clara.
— Como assim, desmontada?
— Observe! — ela estende a mão e toca meu braço — Seus padrões neurais estão se degradando em sequência específica. Não é falha aleatória causada por desgaste natural ou trauma acidental. É programação executando conforme projetada por alguém que entende exatamente de que forma se constrói deterioração controlada.
“Programação.” A palavra se enterrar nos meus ossos, reconhecimento que ressoa através de cada terminação nervosa. Não sou pessoa morrendo. Sou sistema executando comando final, projeto descartável cumprindo cronograma estabelecido. Cada neurônio que se desintegra, cada memória perdida, cada segundo de agonia é intencional.
— Quem? — a pergunta mal sai e já sinto sua inutilidade se dissolver no ar. A resposta se instala sem cerimônia, inevitável e amarga. Axion.
Uma voz se ergue de onde nada deveria estar. Rompe meu pensamento feito um erro na lógica do espaço.
— Conheço essa sensação!
Viro-me para localizar a fonte. Uma figura se materializa gradualmente, tal qual se estivesse sendo tecida a partir de sombras que sempre estiveram ali, esperando apenas que alguém prestasse atenção suficiente para notá-las.
A presença que emerge desafia categorização. Posso vê-la claramente, contudo, parte da minha mente protesta contra sua existência, insiste que ela é projeção causada pelo stress crescente. Existe na borda do impossível, entre dimensões que não deveriam se cruzar, visível e audível, porém, instável demais para ser tocada sem risco.
— Que sensação?
Com o deslocamento das luzes, ela emerge aos poucos. Como algo que sempre esteve ali, mas só agora se permite ser visto.
— Conheço essa sensação… — a mulher repete com voz que ecoa como se viesse de distância impossível — De perder partes de si mesmo pedaço por pedaço, de existir sabendo que você está constantemente se tornando menos do que era ontem.
Percebo em sua expressão que minha reação não corresponde ao que ela esperava. Talvez antecipasse olhar de piedade, reconhecimento imediato de sofrimento compartilhado. Em vez disso, encontra confusão, incompreensão de alguém que ainda está aprendendo os contornos da própria deterioração.
A figura etérea inclina a cabeça ligeiramente, ajustando suas expectativas de acordo com o que vê no meu rosto.
— Eu esqueço que você é novo aqui. Eu sou Sombra e estou falando do meu outro fragmento: Eco! Ele se perdeu na superfície.
“Fragmento.” A palavra desperta questões que minha mente fragmentada luta para organizar. Seria uma forma de relacionamento que transcende definições convencionais? Uma parte literal dela, separada mas conectada? Morreu?
“Fragmento.” A brutalidade da palavra parece inadequada para descrever o que ela está tentando comunicar.
— Como assim se perdeu? — pergunto finalmente, escolhendo palavras com cuidado para não forçar confirmação de morte que talvez não seja tecnicamente precisa.
A expressão de Sombra se aprofunda.
— Ele não conseguiu voltar na última missão. Não sei se está vivo… Não! Com certeza está vivo.
— O que quero te dizer… — a exploradora suspende as palavras, deixando o silêncio pesar, antes de continuar — É que sei o que é viver com uma parte essencial da nossa identidade sendo arrancada.
Olho para ela com nova compreensão. Todavia, preciso entender de forma mais profunda.
— Essa parte essencial que você perdeu… — pergunto, hesitando porque reconheço que estou tocando território doloroso — É uma pessoa ou parte de você?
Sombra me observa por momento que se prolonga, a impressão de que calcula quanto de verdade pode compartilhar sem se despedaçar no processo.
— Eco é minha outra metade! Não dividíamos apenas experiências. Dividíamos consciência. Quando ele se perdeu, perdi metade da minha capacidade de pensar, sentir, existir como pessoa completa.
Agora entendo. Somos ecos um do outro, ela e eu. A mulher perdeu metade de si mesma em uma ruptura. Eu estou perdendo aos poucos através de deterioração programada que é mais lenta, porém, carrega a mesma inevitabilidade cruel.
Ambos fragmentados, ambos incompletos, ambos tentando existir com partes essenciais de nós mesmos desaparecendo de formas que não podemos controlar, interromper ou reverter.
A diferença é que ela perdeu sua outra metade, o que foi uma amputação súbita, enquanto eu estou assistindo minha integridade se dissolver gradualmente, célula por célula, memória por memória.
— Como você suporta? — a pergunta escapa de mim com desespero que corta minha própria garganta, vulnerabilidade crua que não tentei esconder porque não vejo sentido em manter máscaras quando minha personalidade inteira será apagada em questão de meses.
Preciso entender seu segredo, preciso aprender de que modo alguém continua mesmo quando perdeu algo que deveria ser indispensável para existir, encontrando uma forma de reconstruir identidade ao redor de um buraco que nunca se fecha no centro de quem você é.
Sombra me observa por momento que se estende além do confortável e fala:
— Aceitando que ser incompleto ainda é forma de existir. Que ter esperança, mesmo irracional, também é força que nos impede de desmoronar! — ela pausa — E procurando significado no que sobrou… Não no que foi arrancado. O que você é agora ainda importa, mesmo sendo temporário. Talvez importe mais exatamente porque não vai durar.
As palavras me atingem feito revelação física, forçando reconhecimento que corta através de toda negação que construí para me proteger. Sombra tem razão, e admitir isso machuca mais do que aceitar que vou morrer.
Não é que vou morrer em seis meses que está me matando. É que estou desperdiçando cada dia que me resta obcecado com os que não terei. Cada momento gasto em lamentação, é momento roubado de descobertas que ainda posso fazer, conexões que ainda posso formar, versões de mim mesmo que ainda posso conhecer antes que minha capacidade de conhecer seja permanentemente comprometida.
Movimento abrupto na entrada destroça nossa intimidade. Viro-me para ver homem emergindo através da porta.
Há algo profundamente perturbador na pressa com que o desconhecido se move. Seus múltiplos olhos fixam-se em todos nós. Sem qualquer cumprimento ou apresentação, ele ergue a mão e holografias explodem no ar ao nosso redor, imagens das barreiras de fogo se materializando com detalhamento que faz minhas retinas arderem.
As chamas virtuais dançam com realismo impossível, carregando calor que sinto na pele mesmo sabendo que não pode ser real.
— Temos janela de oportunidade de setenta e duas horas! — sua voz ressoa com autoridade — As barreiras estão enfraquecendo. Esta pode ser nossa única chance em décadas.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.