— Zéric.

    A voz de Axion vem pelas minhas costas, sempre com o mesmo tom inconfundível: sem som de passos, sem deslocamento de ar, sem aviso, com a naturalidade de alguém que brota do nada no instante exato em que pensa que preciso dele ou estou à beira de descobrir algo que não devo descobrir sozinho. 

    Me viro devagar, dobro o papel e escondo no bolso num movimento que tento fazer parecer natural, mas que sei que ele vai perceber, porque Axion percebe tudo, anota tudo, lembra de tudo com precisão que vai além da memória humana normal.

    Ele está mais pálido hoje, mais translúcido, num processo que sempre parece uma dissolução interna, lenta e constante, que venho presenciando há meses, sempre em silêncio. 

    Aquela tosse molhada que sempre vem acompanhada de sangue com circuitos está mais frequente, mais urgente, numa cadência que denuncia algo se desfazendo por dentro, no exato compasso de quem sabe exatamente quando o processo vai se completar.

    — Esse lote de mortos está interessante. — ele diz, não chega muito perto, nunca chega muito perto, sempre mantém distância exata que me permite trabalhar, mas que também me permite ser observado sem obstáculos.

    — Duas modificações neurológicas consistentes. Padrão militar avançado. Alguém lá em cima está experimentando com soldados infantis de novo, investindo recursos sérios em cada exemplar.

    Não respondo imediatamente, mas sinto a nuca latejar com dor aguda quando ele menciona exatamente o que eu estava pensando, quando ele verbaliza as suspeitas que estão se formando na minha cabeça com palavras quase idênticas às que eu usaria. 

    Coincidência? Ou ele lê meus pensamentos com facilidade que vai além da observação casual? Ou algo pior: ele planta pensamentos na minha cabeça e depois os ‘lê’ de volta para confirmar que o processo funciona?

    — E você… — ele continua, observa meu trabalho com aprovação que deveria me agradar, mas que hoje me deixa inquieto de forma que não consigo explicar.

    — Está se tornando eficiente demais! Rápido demais. Preciso demais. É quase como se você soubesse o que vai encontrar antes de abrir os corpos… como se seu corpo reconhecesse as modificações por instinto.

    A frase paira no ar, tal qual uma pergunta disfarçada de observação, carregada de significados que não consigo decifrar completamente mas que fazem minha cicatriz coçar com intensidade dolorosa. 

    Olho para minhas mãos, para os cortes precisos que faço sem pensar, para a forma pelo qual identifico as modificações neurológicas antes mesmo de abrir o crânio da criança, para os movimentos fluidos que executo agora sem hesitação. Quando aprendi a fazer isso? Quando parei de precisar pensar antes de agir? E por que meu corpo reage às modificações com a familiaridade de quem já as conhece?

    — É experiência! — minto, mas a voz sai menos firme que gostaria, traindo incerteza que não quero mostrar.

    — Sim. — Axion concorda, mas há algo no tom dele que não é concordância, é confirmação de algo que ele já sabe, aprovação de uma resposta que ele espera que eu dê. 

    — Experiência. Sete anos trabalhando comigo te ensinaram muito sobre anatomia modificada. Mais do que a maioria dos cirurgiões de Nova Esperança sabe. Mais do que alguns dos melhores especialistas biomédicos da cidade conhecem!

    Axion para. Tosse gotículas com sangue que visualmente parecem com faíscas que fazem barulho metálico quando atingem o chão.

    — Sorte nossa que você tem talento natural para isso. Talento que vai ser muito útil quando chegar a hora.

    “Talento natural. Hora.” As palavras ecoam na minha cabeça enquanto ele se afasta cambaleando entre as máquinas com movimentos que parecem mais calculados que instáveis, na encenação exata da fragilidade. 

    Talvez eu seja mesmo um talento natural para desmontar crianças mortas com eficiência que aumenta a cada dia. Talento natural para farejar enxertos escondidos sob a carne, com a precisão de quem sabe onde estão. Talento natural para não vomitar quando abro cérebros que ainda piscam sonhos interrompidos e memórias fragmentadas.

    Que tipo de pessoa tem talento natural para isso? E que “hora” ele está esperando?

    Volto ao trabalho, mas algo muda na textura do ar, na qualidade da luz, na cadência com que as máquinas sussurram entre si. A oficina parece menos estável, as paredes de rocha gotejam um líquido esverdeado que nunca vi antes e que cheira a ozônio queimado misturado com algo orgânico que não consigo identificar, mas que faz meu estômago se contrair com repulsa instintiva. 

    Rilks interrompe a corrida e congela no centro da oficina, as orelhas vibrando em sintonia com uma frequência que só ele parece captar, e então vejo a fenda.

    Uma rachadura na parede que sempre esteve lá, sempre foi disfarçada pela tecnologia de ocultação que Axion instalou anos atrás: “para nos proteger dos escaneamentos de Nova Esperança”. 

    Mas agora a camuflagem falha intermitentemente, pisca feito circuito defeituoso e revela flashes de luz do outro lado. Luz que não é artificial: é orgânica, pulsante, viva. E nos flashes, algo me observa com interesse que vai além da curiosidade.

    Não é humano. Os olhos são grandes demais, líquidos demais, cheios de uma inteligência faminta que reconhece algo em mim que eu mesmo não reconheço completamente. É tal qual se aquele olhar me conhecesse de antes. Como alguém que espera ser notado, certo de que toda a minha vida nesta oficina foi uma preparação para este momento de reconhecimento mútuo. 

    Quando nossos olhares se encontram, sinto uma dor aguda na nuca que se espalha pela espinha tal qual corrente elétrica, exatamente no lugar onde a cicatriz em forma de losango pulsa com calor súbito.

    A dor não é nova. É familiar. Sinto que isso já me atravessou antes, muitas vezes, mas nunca deixa rastro.

    — Axion!? — chamo, mas minha voz parece se dissolver num espaço que engole o som e o transforma em algo irreconhecível — Axion! Tem algo na fenda. Algo que me conhece.

    Ele não responde imediatamente, mas ouço um som que não é humano sair da direção onde ele estava. É metal se desfazendo em padrões específicos. É carne virando energia de acordo com fórmulas que reconheço mas não deveria conhecer. É o som de promessas sendo reescritas, de contratos sendo transferidos, de propriedade mudando de mãos.

    Quando me viro, meu mentor está se dissolvendo, mas não é morte: é transformação controlada, processo que ele esperava, que ele planejou.

    Inesperadamente, ele retorna, mas o seu corpo se desfaz em pó bioluminescente, tremeluzindo feito os últimos impulsos de um sistema que não quer morrer, mas cada partícula se move com propósito, forma padrões no ar que meus olhos conseguem ler do mesmo jeito que se lê um texto. 

    Os olhos dele se apagam, mas não se fecham, ficam fixos em mim com expressão de satisfação, de trabalho completado, de missão cumprida. A boca se abre numa última tentativa de comunicação, mas em vez de palavras, sai luz dourada que se espalha pela oficina e faz todas as máquinas reagirem ao mesmo tempo, num coro eletrônico de reconhecimento que soa na forma de boas-vindas.

    No segundo antes de o pó que é meu mestre se assentar no chão, à semelhança de neve radioativa, sua voz ecoa uma última vez, não da boca dissolvida, mas de dentro da minha própria cabeça, ressoando através de conexões que eu não sabia que existiam:

    — Agora você está pronto, Zéric-7! 

    As palavras ecoam na minha cabeça com reverberação que sugere espaços mentais que não conheço, câmaras de pensamento que foram construídas sem meu conhecimento consciente. 

    E então entendo. Clareza brutal. Rasga meu peito, morde minha nuca, dilacera tudo que acho ser verdade.

    Tudo… é preparação. Cada peça que toquei. Cada músculo que costurei. Cada cadáver que desmontei na oficina. Cada circuito, cada nervo, cada falha que corrigi.

    Nunca foi trabalho. Nunca foi aprendizado. Era treinamento. Treinamento pra mim. Pra isso aqui. Meu próprio corpo. Meu próprio futuro. E agora… agora eu acordo.

    Sirenes explodem nos túneis. Uma voz metálica ecoa, impessoal, afiada, fria feito bisturi.

    — Protocolo de segurança ativado. Unidade não autorizada confirmada. 

    Meu sangue enrijece. O sistema entra em modo de segurança. Isso só significa uma coisa… intrusos.

    A fenda na parede pulsa, luz vibra num ritmo crescente, à beira de explodir. E os olhos do outro lado… se multiplicam. Dois. Cinco. Dez. Vinte. Cinquenta. Cada par atento. Todos caçam. E, por algum motivo que não entendo, estão focados… em mim.

    Rilks grita um som agudo que nunca ouvi antes, suas orelhas cibernéticas captando as frequências de morte que se aproximam pelos túneis com velocidade calculada para chegar até mim em exatamente quatro minutos e trinta segundos. 

    As máquinas orgânicas começam a se desligar uma por uma, num colapso orquestrado, apagando rastros, destruindo tudo que poderia revelar, numa sequência que lembra uma peste eletrônica executada até o último bit.

    Ficar parado não é uma opção.Ninguém vai perguntar meu nome. Ninguém vai querer saber quem eu sou. Só vão querer saber… como me abrir.

    Meu corpo reage com eficiência que não tenho, músculos respondendo a comandos que não preciso pensar, reflexos ativando sistemas que não sei como acabei possuindo. Sei quanto tempo as sirenes têm até silenciar. Sei rotas que nunca vi. Entradas que ninguém me mostrou, mas que vivem em mim tal qual cicatrizes herdadas.

    Sou o plano de fuga que não lembrava ter sido escrito.

    Pego o bilhete do bolso e releio as palavras uma última vez. A caligrafia não é minha. É de outro à semelhança de mim, outro experimento que sobreviveu tempo suficiente para deixar um aviso: 

    “ELES ESTÃO FAZENDO MAIS COMO NÓS. AXION SABE.”

    Ele sabe. Sobre Axion. Sobre o que estão criando. Eu não sou o primeiro. Só o próximo. E, com sorte, não o último.

    Mas há algo no bilhete que me dá esperança: Alguém com a mesma origem que eu conseguiu escapar tempo suficiente para escrever isso. Alguém que carrega o mesmo traço sobreviveu lá fora tempo suficiente para tentar avisar outros. Se um conseguiu, eu também posso conseguir.

    Depois de tanto tempo, volto a correr com todas as capacidades do meu corpo. Corro porque meu corpo sabe exatamente o que fazer, porque meus reflexos foram calibrados para esta situação específica, porque toda aula que Axion me deu sobre anatomia modificada foi também aula sobre a arte de desarmar, a precisão de incapacitar e a frieza de matar, quando necessário. 

    Não corro para escapar. Corro porque é tudo o que resta. A pergunta que bate junto aos meus passos não é quem vem atrás, nem se consigo fugir. É: por que fui criado? Por que esta carne, esses dados, essa programação?

    Axion esculpiu algo entre homem e ferramenta, e esqueceu de entregar o manual. O que fazer com o que sei? Com o que sou? E se realmente houver um mundo fora dos túneis… será ele mais real do que eu?

    O bilhete pesa mais que os passos: 

    “NÃO É TARDIO PARA FUGIR.”

    — Mas e se for?

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