Capítulo 20 - A ascensão à zona fatal
As holografias das barreiras de fogo se estilhaçam no ar, parecendo que o próprio calor é um erro a ser apagado, e a apresentação se dissolve em cinzas. O homem de múltiplos olhos abaixa a mão com a frieza de quem sabe que já disse tudo que necessitava. E o silêncio é rasgado pela repetição, com um grito que ele sabe ser necessário:
— Setenta e duas horas! É o que temos. É tudo o que temos.
O peso das palavras que ele disse se aninha no fundo da minha garganta. Setenta e duas horas. Apenas isso. E, à medida que a realidade se instala, uma pergunta escapa antes que eu possa contê-la:
— O que ele quer fazer com isso?
Ao captar a origem da pergunta, o olhar do homem se fixa em mim e ele não consegue conter uma risada, um sorriso escorregadio de quem esperava por isso.
— O que resta! o óbvio! Atravessar a barreira.
Então acontece algo que me paraliza: todos na sala levam a mão ao pulso direito.
— CLICK!
Um som. Depois outro. E mais deles, ecoando pelas paredes.
Olho ao redor. Relógios. Todos têm relógios digitais. Todos, menos eu.
Os números começam a descer. 72:00:00. 71:59:59.
A visão dos dígitos vermelhos pulsando me atinge. Por um instante fragmentado, vejo outros números, outras contagens, outros rostos tensos observando o tempo se esvaindo. Uma memória que não é minha, embora meu corpo a reconheça.
Tento formar uma pergunta, porém, minha mente, por um instante, se apaga. O branco invade minha visão tal qual um flash cegante. A pergunta que eu ia fazer, desaparece, e por um instante, não consigo lembrar o que estava prestes a dizer.
Tento focar, forçar o pensamento a voltar, porém ele escorrega, se dissolve. A confusão vem acompanhada de algo pior: a certeza de que isso já aconteceu antes.
Gota de sangue no chão.
O gosto metálico me invade a boca antes mesmo de perceber que meu nariz sangra. A dor me puxa de volta.
Certo. Foco. Setenta e duas horas. No entanto, por que meu corpo conhece essa dor? Por que a familiaridade se espalha pelos meus músculos, um reconhecimento involuntário que surge sem controle?
Mesmo com a dor pulsando em meu rosto, ele não espera. Seu olhar atravessa o ambiente com uma frieza clínica, ignorando tudo ao redor. Sem qualquer preocupação com meu estado, ele emite a ordem, implacável, com o peso de quem sabe que o tempo não pode ser desperdiçado.
— Movam-se! Temos uma janela de operação. Perdê-la significa morte para todos.
— Três minutos para preparação!
O fluxo humano se organiza com eficiência, e sou arrastado junto com eles pelos corredores. A sala de equipamentos se transforma num formigueiro urgente. Roupas impossíveis voam de braço em braço. Máscaras de gás se encaixam em rostos tensos.
— Dois minutos e meio!
Canos curtos são distribuídos, passando de mão em mão, até que um deles chega a mim. Demiurga já está ajustando sua arma, fixando-a nas costas como se fosse uma extensão de seu corpo.
Observo a tubulação saindo de seu ombro e, antes que minha mente processe o movimento, minhas mãos já estão conectando minha própria tubulação à empunhadura. O estalo metálico ressoa não apenas no ar, porém dentro de mim, despertando ecos de treinamentos que não lembro de ter feito.
Antes de acoplar a arma às costas, preciso entendê-la. Observo cada detalhe: o cano encurtado, as modificações específicas, o sistema de alimentação.
A arma parece uma escopeta antiga, mas há algo mais. Algo que minha mente técnica, treinada por Axion, reconhece imediatamente: tecnologia Barreira-Perfuração. Equipamento militar classe A.
Meus dedos traçam as linhas do metal com precisão cirúrgica. Cada componente, cada parafuso, cada solda conta uma história que meu corpo lê fluentemente, fruto de tantas vezes desmontando e remontando armas idênticas. Mas quando? Onde?
Demiurga interrompe meus pensamentos:
— É sua apólice de seguro!
A frase desperta algo gelado na base da minha nuca. “Apólice de seguro.” Já ouvi essas palavras antes, ditas exatamente com o mesmo tom. Por alguém que eu deveria conhecer, porém não consigo lembrar.
Korvak se aproxima rindo, com a expressão distorcida por uma satisfação mórbida, e complementa:
— Espero que não precise usar isso. — ele continua rindo, o som quase maníaco — Porque, se precisar, então deu tudo errado.
Suas palavras ecoam dentro de mim com um peso desproporcional. “Se precisar, então deu tudo errado.” A frase se repete na minha mente, não trazendo novidade, mas confirmando algo que eu já sabia. Um protocolo. Um plano de contingência que não deveria conhecer.
— Dois minutos!
Ele sai apressado, contudo suas palavras continuam reverberando. Protocolo de emergência. Contingência. Backup. As palavras surgem na minha mente sem contexto, porém com a certeza absoluta de alguém que foi treinado para situações extremas.
— Um minuto e trinta!
Os exploradores começam a se mover, uma onda de precisão, sem hesitação. Cada um com a mesma urgência, a mesma preparação, seguindo um destino já traçado para eles. Eu, uma sombra deslocada, sigo atrás, sem saber o que exatamente me aguarda lá fora, mas com a sensação clara de que não posso mais ficar para trás.
— Um minuto!
Os passos se tornam mais rápidos e meu corpo responde automaticamente, mantendo a formação, preservando a “Distância de segurança” padrão. “Distância segurança”? De onde vem esse termo?
O homem de muitos olhos está à frente, um vulto distante que se torna mais nítido a cada passo.
Um instinto me impele a alcançá-lo, a não deixar aquele espaço entre nós aumentar. O pensamento de que algo precisa ser perguntado bate forte dentro de mim, uma inquietação crescente que não consigo mais ignorar.
— Quantas vezes já fizeram isso?
A pergunta sai com mais autoridade do que eu pretendia, transmitindo a impressão de que eu tivesse direito de exigir informações operacionais.
Ele não parece nem se dar ao trabalho de esperar que eu fale a resposta. Sua fala chega seca, tal qual uma verdade esquecida.
— Muitas.
Eu fico um instante imóvel, absorvendo a resposta. A palavra ‘muitas’ ecoa de forma vazia no corredor, porém nada muda. O homem de muitos olhos segue adiante, sem diminuir o ritmo, e solta outra palavra, sem mais nem menos, tal qual se fosse apenas uma estatística qualquer:
— Um sucesso. — e, sem olhar para mim, ele lança mais uma frase, sem emoção — O que quer que aconteça, vai acontecer.
O homem com múltiplos olhos não se importa em me dar mais explicações. Suas palavras cortam o ar, dando a sensação de que a distância entre nós já foi eliminada. O corredor à minha frente se estende sem fim, o ar saturado com o peso das perguntas que ficaram engolidas.
Eu vejo o grande elevador ao fundo, esperando tal qual uma besta de ferro pronta para engolir todos nós. O caminho para a entrada de Nova Esperança.
— Vinte minutos para partida! Movam-se para a superfície!
Entro no elevador sem hesitar, e ele se fecha com um estalo metálico. A viagem até a superfície parece durar um piscar de olhos. Não há tempo para observar a cidade de Nova Esperança, não há espaço para apreciar a sensação de estar vivo em meio ao caos. Tudo o que eu consigo pensar é no que me aguarda.
O elevador se abre e o ar me atinge com força, no entanto, meu corpo já está se adaptando antes mesmo da exposição completa. Respiração controlada, filtros nasais ajustados automaticamente, postura defensiva ativada. Reflexos que não aprendi conscientemente.
Em vez disso, sou atraído magneticamente para o Contador. Os números vermelhos pulsam e cada dígito que muda envia ondas de reconhecimento através do meu sistema nervoso.
19:03:00… 19:02:59… 19:02:58…
Respiro fundo, contudo, o ar entra pelos meus pulmões seguindo um padrão específico. Respiração tática de combate. Oxigenação otimizada para situações de estresse extremo. Quando aprendi isso?
O Oráculo está à minha frente, imponente, mas de algum modo, a estranheza de sua presença aumenta nessa imensidão aberta. Ele para de repente.
Paro também, minha posição se ajusta automaticamente. Distância de segurança mantida, ângulo de escape calculado, linha de visão preservada. Consciência tática que surge do nada.
O Oráculo então fala, sua voz cortante preenchendo o vazio ao nosso redor:
— LOCALIZAÇÃO: TERCEIRO PLANETA DO SISTEMA SOL. CLASSIFICAÇÃO: MARTE. INFORMAÇÃO IRRELEVANTE PARA OBJETIVOS ATUAIS.
Marte? Eu fico imóvel por um instante, tentando compreender. O que é Marte? Ele fala da mesma forma que se estivesse fornecendo uma informação sem importância, porém, eu não consigo deixar de me perguntar se existe mais por trás dessas palavras.
O que Marte representa? E por que ele menciona isso agora?
Kordak ri baixinho, com uma risada que parece dividir uma piada interna.
— Não pense muito sobre isso. Acontece raramente, no entanto, essa lata velha também tem suas falhas.
Demiurga se aproxima, empurrando o Oráculo com uma leveza que parece desafiar sua imensa estrutura. Sua voz, quase divertida, ecoa enquanto ele manipula o robô.
— É engraçado! Para mim, tudo não passa de mistura de dados criando algo novo. Acho que ele quer ser… humano.
O Oráculo emite um som metálico, evidenciando o reconhecimento do comando de Demiurga. Ele então fala mais uma vez:
— ANO 3022. TERRA DESLIGADA. COLÔNIAS DECLARAM INDEPENDÊNCIA TOTAL.
Depois disso, o silêncio se instala. Nenhuma palavra mais sai do Oráculo enquanto seguimos em frente.
Chegamos finalmente à zona de operações. Quando vejo a máquina-toupeira, meu corpo todo se tensiona com um reconhecimento visceral.
— Quinze minutos para ignição!
Quando finalmente chegamos à zona de operações.
A primeira coisa que noto: é a conhecida máquina-roupeira.
Mas essa estrutura é maior. Metal escuro, linhas aerodinâmicas.
— Dez minutos para partida!
A voz do homem de múltiplos olhos corta o ar, o som vibrando tal qual um comando irrevogável:
— Zéric, você é o navegador!
As palavras não fazem sentido imediatamente. Meu corpo reage antes da minha mente, e por um instante, fico imóvel, sem conseguir compreender. Navegador? Eu?
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