Capítulo 23 - Chamas densas que nunca queimam
A broca perfura a terra como uma agulha atravessando carne viva.
O som metálico da perfuração ressoa pela cabine: primeiro agudo contra o solo superficial, depois grave e denso conforme descemos. A terra muda de marrom para vermelho, depois para negro.
A broca vibra mais forte a cada metro, a resistência das rochas aumentando exponencialmente. O motor ruge para compensar, rotações subindo perigosamente.
Meus dedos tremem sobre os controles. Cada ajuste é hesitante, cada movimento uma confirmação que luta contra a inexperiência. Tenho o conhecimento que me foi implantado, embora me falte a experiência.
Sei da teoria por trás de um fogo, ainda que nunca tenha sentido o calor da chama queimando os dedos. Minha certeza teórica se dissolve no confronto com a realidade brutal dos controles.
Através da cicatriz em losango, informações chegam em rajadas que fazem minha cabeça latejar: imagens fragmentadas de geometrias impossíveis, temperaturas que queimam o ar antes de tocá-lo, pressões que fazem meus ossos gemerem só de imaginar.
A criança-soldado à minha direita se inclina para frente, seus dedos dançando sobre sensores que não reconheço.
— Primeira barreira em quarenta segundos! — a voz dela corta o rugido dos motores.
Desta vez, há algo diferente na transmissão telepática. Não apenas dados frios. Há… medo. Curiosidade assombrada. Humanidade vazando através do condicionamento militar.
Olho para ela. Realmente olho. Seu rosto, com os traços de um garoto comum, mas os olhos… vazios, carregando o vazio de um soldado, arruínam a imagem.
Uma pontada familiar me atinge, a mesma que sempre surgia quando abria as crianças mortas em busca de algo que elas não podiam mais dar: uma infância. Agora, com sua presença viva diante de mim, vejo-me finalmente com a oportunidade de fazer a pergunta que sempre desejei:
— Qual é o seu nome? — pergunto através da ligação neural.
Pausa. Depois, sussurro mental hesitante da criança ao meu lado direito:
— Lira.
O mundo me faz perceber que ela tem um nome. Não é apenas Piloto Alfa. É uma pessoa. Escuto um início de voz em minha mente e me viro para ver a segunda criança se comunicando também:
— E eu sou Nyx! — sua voz mental carregada com vulnerabilidade que nunca esperei ouvir.
Olho para um lado depois para o outro: duas crianças idênticas nos assentos de copiloto, rostos inexpressivos mascarando almas que acabaram de se revelar humanas.
No compartimento traseiro: Demiurga, Oráculo, Korvak, Mnemoclasta e Sombra. Seus olhos esbugalhados fixam a escuridão à frente, expressões de terror puro mascaradas apenas pelos capacetes que impedem qualquer som. Cinco vidas conscientes e aterrorizadas que dependem da minha capacidade duvidosa de não nos matar a todos.
E então a vejo.
O centro da Terra não é sólido: é oco. A broca emerge do túnel rochoso e despenca em uma caverna colossal. Por segundos aterrorizantes, caímos em queda livre antes do veículo se estabilizar. As rodas da broca tocam uma superfície lisa, e deslizamos ao invés de perfurar.
É então que vejo: não são mais rochas. São muros de fogo, vivos em sua essência, se contraindo e se expandindo com uma cadência própria. Buracos surgem, se abrem e fecham com uma precisão aterradora, quase vivos, porém sem carne ou osso. Algo mais perverso. Algo impessoal e implacável.
A barreira se estende à nossa frente, uma ferida aberta no mundo que jamais cicatrizou.
Não é fogo. Fogo eu conheço. Já vi corpos queimados, sei a reação da carne ao calor. Isso é diferente. As chamas têm densidade de vidro derretido, textura sólida que ondula sem nunca se mover realmente.
Através do vidro translúcido das chamas, formas se movem. Grandes demais para serem humanas, fluidas demais para serem máquinas, opacas demais para serem identificadas.
Lira não me olha. Seus dedos dançam sobre os controles, rápidos e precisos, antes que sua voz corte o silêncio:
— Trinta segundos! — sua comunicação carrega uma nota nova: terror disfarçado de profissionalismo.
É então que noto: não há desaceleração. A broca mantém velocidade máxima, trajetória de colisão direta. Minha mão vai instintivamente aos freios.
Nyx segura meu pulso com tanta força que posso sentir a pressão formando marcas, no entanto, são suas palavras, frias, que deixam cicatrizes que não se apagam:
— Não! A barreira não se abre. Você atravessa ou morre tentando.
A pressão no meu pulso é tudo o que sinto agora, e a mente tenta se agarrar à lógica, mas nada faz sentido. A raiva, a frustração, o pânico. Tudo se mistura e sai em uma única pergunta, carregada de incredulidade:
— Como assim atravessa?
Elas se entreolham pela primeira vez desde que entramos na broca. Uma conversa silenciosa acontece em segundos, e através da nossa ligação neural sinto o peso da decisão que estão tomando.
Lira arranca os cintos de segurança e se põe de pé no banco, um gesto surpreendente, e sua voz, imponente, corta o ar:
— Dez segundos!
Eu observo, tentando processar o que está acontecendo. Uma sensação estranha de desorientação toma conta de mim, enquanto as palavras ficam presas na minha garganta. Com a velocidade da situação, não há espaço para hesitação. E as palavras que preciso dizer já estão vindo à tona, sem pensar:
— O que você está fazendo?
Ela caminha para a frente da broca, se posiciona próxima à escotilha de emergência diretamente na trajetória de impacto. Através da ligação neural, sinto sua resolução e seu terror em proporções iguais. Então grito:
— Não!
Nyx segura meus braços, sua voz mental fragmentada pela emoção.
— Ela sabe o que está fazendo. — sua voz mental se quebra — Durante toda a nossa vida, nunca tivemos o direito de fazer uma escolha verdadeira. Deixa ela ter essa.
Lira olha para trás uma última vez, e através da ligação neural sinto sua determinação mesclada com uma melancolia profunda.
— Cinco segundos! — Lira diz sua última mensagem — Lembrem de mim.
E então permanece na posição de sacrifício, de pé na frente da broca.
Ela realmente nunca verá o sol, assim como a maioria dos sonhos que morrem sem nunca ter nascido. As promessas, os desejos, tudo se dissolve nas rachaduras do impossível.
A colisão acontece.
Lira é consumida pelas chamas translúcidas no momento exato em que nossa proa toca a barreira. As chamas atravessam o metal da broca, desconsiderando sua existência, envolvendo-a por completo. E então vejo o que acontece quando carne humana encontra fogo que não é fogo.
Ela não queima. Endurece.
A pele dela vira cristal em segundos, transparente, quartzo puro, porém pulsando com luz própria. Os ossos se tornam vidro translúcido, o sangue vira luminescência líquida. Mas seus olhos permanecem humanos. Conscientes. Desesperados.
Lila não se desintegrou. Ficou presa em um corpo que não pode mais se mover, não pode mais falar, não pode mais morrer.
A broca perfura a barreira usando o tecido orgânico de Lira como ponte. Passamos protegidos pelo sacrifício cristalizado de Lira.
Através da ligação neural, sinto Nyx se retraindo em luto que é devastadoramente real. Não dor de arma biológica perdendo componente. Agonia do menino que acabou de perder a irmã.
Minha voz sai rouca quando finalmente consigo falar:
— Barreira perfurada!
À frente, surge um labirinto: túneis que pulsam, artérias vivas, paredes de chama viva que se contraem e relaxam. Estamos dentro de alguma coisa. E há movimento nas sombras.
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