Capítulo 26 - O tempo mastiga ossos
A vibração que percorre a estrutura da broca não tem o som de metal sob pressão. É outro som. Não um familiar. É algo mais profundo, correndo pelas placas e atravessando minha carne, até que meus ossos estalam, dando a impressão de não terem sido feitos para suportar tamanha frequência.
Um clique ressoa através da cabine. Depois outro.
O vidro separador que me isolou durante toda a viagem se retrai nas paredes com sussurro pneumático. A barreira desaparece, revelando verdade que deveria ter compreendido: não me protegia deles. Os protegia de mim.
Iara não espera explicações.
Um giro rápido e as pernas traseiras dela desferem um coice devastador em Korvak, lançando-o contra a lateral da broca. Sem lhe dar tempo de se erguer, ela investe outra vez, os cascos explodindo sobre seu peito.
— COMBUSTÍVEL! — suas palavras irrompem, afiadas e impossíveis de ignorar — Isso é tudo que eu era para você!
Sombra se materializa entre eles, e Iara a empurra com brutalidade, arremessando-a contra Demiurga, que também estendia as mãos para separá-las. O choque empurra Demiurga contra os controles, o metal vibrando sob o peso das duas.
O comandante gigante rola para o lado, evitando outro coice que deixa marca profunda no metal.
— Iara… eu não tinha escolha…
— MENTIROSO!
Algo pesado se choca contra o visor frontal. Um braço decepado se espatifa contra o vidro transparente, espalhando sangue viscoso e obscurecendo nossa visão externa. O som visceral faz todos pararem.
Korvak se levanta cambaleando, segurando-se no visor manchado.
— Onde diabos fomos parar?
Através do sangue no vidro, vejo o impossível.
Não chove água. Chove morte.
Pedaços de corpos despencam do céu violeta. Braços que ainda se contraem. Pernas que rolam ao tocar o solo. Torsos partidos vazando vísceras. Cabeças que pingam fluidos enquanto caem.
O ar sangra literalmente.
A broca não pousa. É arremessada.
O impacto nos arremessa pela cabine sem controle, corpos lançados em todas as direções. Iara bate contra a parede, o som do metal reverbera. Korvak desaba sobre os controles. Demiurga colide contra um equipamento, painéis e fibras se partindo sob a força.
Minha cicatriz volta a queimar.
O barulho, os corpos, a dor: nada importa. Apenas me levanto e vejo, pelo visor, o cenário que mudou o mundo diante de mim.
O solo vermelho se estende infinitamente, coberto por crosta de sangue coagulado. Partículas de poeira vermelha flutuam no ar, misturando-se à chuva escarlate que nunca cessa.
Korvak é o primeiro a se erguer, confusão estampada no rosto enquanto dispara ordens:
— Oráculo!?
O robô se posiciona, estendendo sensores.
— MÚLTIPLAS ENERGIAS DIMENSIONAIS INTERFERINDO. ANÁLISE COMPROMETIDA.
A voz metálica cessa por instantes, os anéis de luz expedidos por Oráculo se enfraquecem, e ele prossegue em registro informativo:
— APENAS DATAÇÃO POR DECAIMENTO ISOTÓPICO RETORNANDO DADOS CONSISTENTES.
Demiurga limpa sangue do nariz, olhos fixos no comandante e em Oráculo.
— Temporal?
Sua voz sobe, cristalizando em fúria.
— Responde! O que está acontecendo? O que você está escondendo?
Korvak ignora suas perguntas, retirando um dispositivo quadrado que nunca havia mostrado. Uma luz vermelha pisca em sua superfície.
Demiurga não aceita ser ignorada.
— Que equipamento é esse? Desde quando você carrega tecnologia que não conhecemos?
O comandante gigante ativa o aparelho sem responder. A energia percorre o dispositivo em ondas de luz, e um vermelho intermitente se acende, piscando em cadência inquietante.
— Buscando sinais. — finalmente ele responde.
Esperamos. O tempo não avança, só se arrasta. O ar dentro da broca pesa, saturado de expectativa e um desespero que cresce em silêncio.
Demiurga explode.
— Não aceito mais silêncios! Exijo explicações! Onde estamos? Como vamos sair daqui?
Sua voz quebra ligeiramente.
— Eu tenho direito de saber em que tipo de missão é essa! Ninguém aqui é uma peça descartável! Ou é?
Oráculo interrompe a tensão crescente.
— SEGUNDA ANÁLISE TEMPORAL CONCLUÍDA.
Korvak desvia os olhos do aparelho e, encarando o robô, fala apressadamente:
— Fale.
— DESLOCAMENTO CONFIRMADO. SALTO TEMPORAL.
O comandante gigante fecha os olhos por um instante.
— Explique melhor.
— TIVEMOS UM DESLOCAMENTO. NÃO APENAS ESPACIAL. TEMPORAL. QUARENTA ANOS DE ACÚMULO DESDE OS PARÂMETROS ESPERADOS.
O silêncio que se segue é absoluto. Quarenta anos. O número golpeia a cabine, afiado, frio e irrevogável.
Demiurga fica pálida.
— Quarenta anos no futuro? — sua voz baixa e tensa arrasta-se, e cada palavra custa sangue — Korvak… como voltamos? Como voltamos para nossas vidas?
Korvak continua operando o dispositivo, mandíbulas contraídas.
— Isso será… resolvido.
— Resolvido? — a voz dela se rompe, ganhando uma tensão que rasga o ar — Resolvido de que jeito?
Demiurga se aproxima do comandante da missão, cristais de criação pulsando em suas mãos pequenas.
— Pare de me tratar igual a uma criança! Quero garantias! Quero a verdade!
Então algo rasga o próprio ar, e a escuridão absoluta nos engole, pesada e silenciosa.
— Merda… — Korvak e eu gritamos simultaneamente.
O segundo deslocamento explode com ainda mais brutalidade. A broca gira descontrolada, e energias conflitantes nos lançam mais uma vez contra os painéis. O mundo ao nosso redor se despedaça em fragmentos de luz e sombra.
Eu bato também nos suportes, a força do impacto me deixa sem ar. Sangue escorre do meu nariz. Iara tem um corte profundo na testa. Demiurga segura o pulso, provavelmente fraturado.
O mundo mudou novamente.
O horizonte não é mais vermelho. Um preto com tons de ferrugem agora se estende, coberto por uma camada fina de poeira e restos pulverizados de corpos que se decompuseram há tanto tempo que viraram apenas manchas no vento.
O sangue coagulado, agora transformado em pó pela erosão, dança com a poeira carregada pelo vento, misturando-se a fragmentos de corpos antigos espalhados pelo chão.
— Oráculo! — Korvak comanda, voz tensa — Nova análise. Imediatamente.
— SALTO TEMPORAL ADICIONAL CONFIRMADO. QUINHENTOS ANOS DE ACÚMULO DESDE A ÚLTIMA LEITURA.
Demiurga cambaleava, mas consegue falar.
— Quinhentos anos… — sua voz é apenas um fio — Estamos quinhentos anos no futuro!?
Ela olha para o comandante gigante com horror crescente.
— Não há retorno, há?
Korvak não responde. Sombra aperta a cabeça com força, e suas palavras se dirigem mais à própria dor do que a quem a ouve:
— Tudo se foi! Eco, mundo, lembranças… voltar será começar do zero. Não é a morte de tudo que éramos?
A acusação paira no ar, densa e cortante, penetrando em cada músculo de Sombra. Ela para de esfregar as têmporas e seus olhos se prendem aos do comandante e a fala sai:
— Quando voltarmos, vou denunciar tudo ao Conselho. Cada mentira. Cada omissão. Tudo…
Korvak a encara com frieza que nunca vi antes.
— Você não vai fazer nada disso.
— Como pode ter certeza?
— Porque não há retorno!
O silêncio se instala. Sombra segura o braço, hesita. Eu vejo cada pequena reação: a mão que treme, o olhar que se afasta e a respiração contida. Nada do que ela faz desfaz a frieza nas palavras do comandante.
O comandante ativa o dispositivo novamente, mãos tremendo visivelmente.
— Precisamos de informações mais precisas. Vamos sair da broca.
A escotilha se abre com sussurro pneumático. Seguindo Korvak para fora, sou atingido por um turbilhão de estímulos sensoriais distorcidos. O deslocamento temporal distorce o ambiente. As fronteiras do espaço se contorcem, como se o mundo respirasse de forma irregular, ameaçando desmoronar a qualquer instante.
Não sinto, não vejo e não ouço. Tudo se retrai, deixando apenas um eco frio onde antes havia espaço.
Minha percepção luta para se ajustar. O caos visual me cerca, imergindo-me em emaranhado de formas indistintas. Sons distorcidos, tanto agudos quanto graves, criam cacofonia ensurdecedora.
Cores vibrantes se chocam em frenesi indescritível, distorcendo tudo ao redor. O espaço curvar-se ao meu redor. Cada passo é um desafio.
Uma luz suave emerge de meu uniforme, compensando gradualmente as perturbações. À medida que o caos visual se acalma, percebo que a paisagem está tomando forma.
Então sinto algo que não esperava.
Minha cicatriz não queima mais. Pulsa. Suavemente. Como se reconhecesse algo familiar na distância.
Concentro-me na sensação. Sinto algo impossível, um fio tênue, invisível, que parece me ligar a alguém próximo, puxando minha atenção contra minha vontade.
Sinto o fio vibrar com força crescente. A mesma energia negra que me trouxe até este lugar agora se espalha, com aparente vontade própria. O que isso significa? Será que ela me chama?
A energia flui através da marca no meu pescoço, procurando conexão similar.
E encontra.
Recebo sensações que não são minhas:
Paralisia absoluta. Séculos de consciência presa em um corpo que não responde. Energia vital correndo através de veias petrificadas. E um nome que rasga nossa conexão, urgente e impossível de ignorar:
Harley!
A conexão transmite uma imagem final que faz meu mundo parar:
Axion.
O rosto que me assombra, mas diferente. Carregado de autoridade cruel que reconheço dos meus piores pesadelos. Do outro lado da ligação, ódio puro atravessa nossa comunicação neural.
Axion esteve aqui. Criou coisas aqui. Morreu?
A conexão se rompe abruptamente, deixando-me cambaleando.
Iara me segura pelo braço, preocupada.
— O que aconteceu?
Penso em mentir, contudo a intensidade em seu olhar rasga minhas defesas, revelando mais do que eu pretendia:
— Alguém como eu… preso há muito tempo.
Korvak se aproxima, interesse despertando em seus olhos.
— Onde?
Avanço primeiro, erguendo a mão para indicar a direção. Minha cicatriz arde, agindo na forma de um guia involuntário, obrigando-me a liderar. Atrás de mim, os outros hesitam, mas sigo até a elevação, onde aponto a depressão: o ar ali ondula, oscilando tal qual miragem incandescente.
— Ali!
Paro junto com os outros diante do caos energético à frente, a respiração suspensa no mesmo compasso. E é nesse espaço suspenso que Sombra dá o passo, direto, sem o cuidado que nos mantém parados.
— Está vivo? porque ele não se mexe? — a voz dela treme enquanto gira, encarando cada um como se qualquer um pudesse responder.
Korvak me encara, com o olhar fixo. O silêncio dele não é vazio, é uma pressão que anuncia palavras afiadas. E logo elas vêm:
— Tem algo que você ainda não revelou.
Balanço a cabeça, afirmando minha negação. O comandante gigante franze os olhos, entretanto, antes que diga algo, Sombra intervém:
— Ele deve estar morto. Como tudo neste planeta.
Repito o movimento da cabeça, insistindo na minha certeza silenciosa.
— Ele não está morto.
Fixo o olhar à frente. Há uma área diferente do resto do espaço, envolta por uma névoa azul que demarca um espaço diferente. Sombra se vira ligeiramente, os olhos encontrando os meus, e então fala:
— Será? Só tem um jeito de descobrir.
Sombra rompe a névoa azulada sem aviso, seu movimento tão súbito que o grito de Korvak chega atrasado, ecoando pelo ar:
— Não!
Mas ela já está caminhando em direção ao jovem. A três metros da borda, para abruptamente seu rosto volta-se para nós. Seus olhos se arregalam de terror.
— Não consigo me mover.
O comandante reage imediatamente, braço projetado à frente em alerta:
— Ninguém se mova! Oráculo, avalie a área.
— ENERGIAS CONFLITANTES CRIANDO CAMPO DE CONTENÇÃO.
Demiurga se joga para a frente.
— Temos que salvá-la! Não podemos deixá-la lá!
Korvak segura Demiurga e a arremessa para trás.
— Não podemos mais perder ninguém.
Enquanto Sombra congela diante da névoa, o comandante gira o corpo, puxando a arma das costas. O cano brilha com energia azulada e pulsante.
— Não podemos permitir que ela sofra por séculos.
O horror do que ele pretende fazer me paralisa.
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