O som das sirenes não me assusta. O que me apavora é reconhecer que meus pés já sabem onde pisar antes que eu decida fugir. Quatro minutos e vinte segundos de vida restante: essa certeza matemática explode na minha cabeça, na cadência de um cronômetro que sempre esteve lá, esperando sua hora de despertar.

    Nunca senti medo. Nem quando olhos se abriam no meio da carne, nem quando pulmões colapsavam sob minhas mãos. Mas agora é diferente. Agora é pessoal. O escuro sempre esteve lá, me observando, sussurrando que um dia seria minha vez. O tubo não escolhe. A mesa não escolhe.

    Sempre aquele tubo. Sempre aquele som úmido de carne deslizando em metal. E no pesadelo que me assombra há anos, no lugar do corpo anônimo está meu rosto. Meus olhos abertos. Minha carne esperando outra mão, outra lâmina. O cheiro de metal queimado e ozônio morto. Sempre aquele som de minha própria carne deslizando, uma lâmina me abrindo, mãos me costurando errado.

    Corro porque não há mais escolha.

    Minha primeira passada ecoa pelo túnel com precisão que nunca possuí. A segunda encontra apoio numa irregularidade que meus olhos não viram, mas que meus músculos reconhecem por instinto, guiados por algo mais antigo que memória. Na terceira, aceito o que não quero entender: este corpo não é completamente meu. Nunca foi.

    Não deveria saber. Nunca caminhei por aqui. Nunca explorei essas vísceras de concreto. Sempre fui prisioneiro da minha mesa, da carne aberta, dos corpos que chegavam pelo tubo. Mas meu corpo sabe. Sabe como se carregasse um mapa gravado na fibra dos músculos, na elasticidade dos tendões, nos comandos que alguém instalou sem me avisar.

    Meus pés escolhem o chão certo. Pulam a rachadura certa. Cortam a curva exata. Antes que minha cabeça perceba, já estão três segundos à frente.

    O bilhete de papel real lateja no bolso feito um dente podre enfiado sob a pele:

    “NÃO É TARDIO PARA FUGIR.” 

    Mas tarde para quê? Para descobrir que minha própria carne me foi emprestada? Para entender que cada reflexo foi calibrado por mãos que não as minhas, que cada instinto foi programado durante sete anos de aulas que eram, na verdade, sessões de configuração?

    Rilks grita atrás de mim, e o som agudo dilacera a realidade por dentro, fazendo minha nuca latejar no exato lugar onde a cicatriz em forma de losango pulsa com calor elétrico. Não é dor. É reconhecimento. Feito se algo tentasse se conectar comigo através de uma rede neural que deveria estar morta.

    Respiração.

    Três minutos correndo em velocidade máxima. As paredes passam em borrões que meus olhos seguem sem esforço. Cada curva, cada descida, cada obstáculo surge na minha consciência segundos antes de aparecer fisicamente. Deveria estar queimando de cansaço, pulmões implorando por ar, coração martelando contra o esterno. 

    Mas não. Meus pulmões trabalham tal qual foles industriais, extraindo oxigênio do ar rarefeito com eficiência que vai além do humano. Minha caixa torácica se expande centímetros além dos limites que lembrava ter.

    Quando foi que parei de precisar de fôlego?

    Forço-me a tropeçar, a falhar, a ser desajeitado. Mas meus reflexos me corrigem antes da queda. Músculos que não comandei se contraem, me estabilizam, me mantêm em movimento perfeito. É do mesmo jeito que tentar se afogar em um corpo que se recusa a parar de nadar.

    As botas se aproximam, mas não são passos humanos. Muito coordenados, muito ritmados. Organismos perfeitos, ou algo que já foi humano mas esqueceu o jeito de caminhar com imperfeição natural. Sessenta segundos de vantagem, talvez menos.

    Faço uma alavanca para ganhar impulso. Minha mão raspa na parede ao fazer uma curva fechada. A pedra deveria arranhar, deveria sangrar. Em vez disso, meus dedos se adaptam, se moldam, se cravam feito garras que não deveriam fazer parte de mim. Unhas crescem meio centímetro em milésimos, tornando-se mais duras que a rocha, deixando sulcos na superfície.

    Grito de nojo, de terror, de rejeição. Mas também sinto satisfação suja que vem de algum lugar profundo que não quero reconhecer. O prazer primitivo de não ser frágil. De não ser apenas presa.

    O túnel se alarga abruptamente numa câmara sem saída visível. Meus pés param sem ordem consciente em uma decisão biológica que contorna completamente minha vontade. O ar muda. Deixa de cheirar a ferrugem e pedra molhada. Agora é biologia pura, matéria viva processada com precisão industrial.

    Reconheço esse cheiro. É a oficina, mas limpa, concentrada, essencial. É o cheiro de casa, se casa ainda for um conceito que posso aplicar a mim mesmo.

    Sou obrigado a parar ao chegar ao final da câmara. Toco a parede e inesperadamente ela responde à maneira de quem me conhece. Não é pedra. Nunca foi pedra. É carne preservada, músculos que se contraem sob minha mão, reagindo a ecos de instruções neurológicas esquecidas.

    Minha pele se arrepia com familiaridade que vai além da memória.

    A verdade me golpeia: estou dentro de algo morto. Algo colossal que morreu há décadas, mas foi preservado com técnicas que transformaram sua carcaça em arquitetura viva. A oficina nunca foi construída numa caverna, e sim implantada na garganta de uma criatura que mordeu o mundo e morreu no processo.

    Sete anos respirando ar filtrado pelos pulmões mortos desta coisa. Sete anos usando luz gerada por neurônios gigantescos que ainda faiscam com atividade pós-morte. Sete anos desmontando cadáveres humanos dentro de um cadáver que contém continentes, sem nunca levantar a cabeça para ver onde estava.

    Fui mantido cego por design. Ignorante por necessidade. Porque se eu soubesse o que realmente era esse lugar, talvez tivesse feito as perguntas certas muito antes.

    Quarenta segundos. As vozes se aproximam, distorcidas pelos ecos da carne fossilizada:

    — Assinatura térmica confirmada. Aquecimento da parede por contato.

    Eles me rastreiam pelo calor que minha pele produz quando toca superfícies vivas. Como se eu tivesse conexão direta com a biologia deste lugar morto.

    Meus dedos se cravam na palma, tentando arrancar respostas da própria carne. Procuro qualquer saída. À frente, só tecido formando paredes. Atrás, as botas chegam, pesadas, certas. E nesse exato momento a pergunta me rasga por dentro: que tipo de resistência poderia oferecer contra eles?

    Vinte segundos.

    Olho para cima. O teto é um palato descomunal. Dentes do tamanho de edifícios pendem feito estalactites calcificadas. Tentáculos grossos iguais a troncos balançam entre tecidos que formam rede orgânica, tudo preservado em perfeição mórbida.

    Estou na boca de uma gigantesca criatura morta.

    Dez segundos.

    Minha mão se cola na bochecha interna sem comando consciente. Arco elétrico explode sob a pele, viaja pelos meus nervos, conecta-se com circuitos biológicos que ainda funcionam na carne antiga. Meus dedos se contraem, enviando pulsos através de músculos fossilizados.

    A criatura responde.

    Cinco segundos.

    Três fissuras se rasgam à minha frente, tal qual costelas partindo-se. Tecidos se retraem, músculos se alongam em espasmos controlados. Túneis se abrem onde não existiam, passagens se formam através de órgãos internos que reconhecem em meu toque uma chave biológica.

    Zero.

    Sons dos motores antigravidade convergem onde estava. Não me procuram mais, sabem onde estou, e me ocorre que minha posição talvez esteja sendo enviada por algum sistema interno que desconheço.

    Disparo pela única abertura que meus nervos aprovam. Instinto puro comandando músculos que funcionam além dos limites humanos. Corro através do sistema circulatório de uma gigantesca criatura morta, usando artérias como autoestradas, veias como rotas de fuga.

    Vozes ecoam atrás: 

    — Perdemos o sinal térmico. Entrou no sistema vascular. 

    — Impossível. Humano não sobrevive à pressão interna. 

    — Este não é humano.

    E pela primeira vez desde que comecei a correr, concordo completamente com meus caçadores.

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