Capítulo 4 - Ritmo que o medo escreveu
Aumento. Acelero.
O comando vem de algum lugar anterior ao pensamento, numa sensação de que meus músculos leem instruções gravadas diretamente nos meus ossos. Meus pés obedecem antes que eu ordene, e pela primeira vez em sete anos de existência consciente, sinto que meu corpo me conhece melhor do que eu o conheço.
As paredes disparam para trás, borradas em velocidade que deveria me desorientar, mas não desorienta. Cada fibra muscular encontra seu ritmo perfeito, cada tendão se alinha com precisão mecânica que nunca aprendi, mas sempre possuí.
Rilks dispara ao meu lado com as orelhas cibernéticas captando frequências que fazem minha cicatriz losangular pulsar, reagindo a sinais que minha carne reconhece, embora minha mente não compreenda.
O ratinho para constantemente, fareja o ar com terror primitivo que eu deveria compartilhar, mas não compartilho mais. Meu medo se transformou em outra coisa. Em análise de risco. Em cálculo tático. Em precisão que vai além da sobrevivência e entra no território da caça.
O túnel despenca numa inclinação vertiginosa que transformaria qualquer pessoa normal em projétil descontrolado. Anéis de cartilagem formam degraus irregulares, e meus pés os encontram por parecer que este caminho sempre tivesse sido meu, numa sensação de que cada depressão na carne viva da criatura tivesse sido moldada para receber exatamente o formato das minhas solas.
Gravidade ajusta. Quadris compensam. Joelhos absorvem. Tornozelos redistribuem. Tudo responde com harmonia que deveria ser impossível para alguém que passou a vida inteira desmontando cadáveres numa oficina subterrânea.
Como se eu tivesse ensaiado essa fuga por anos que não lembro de ter vivido.
A descida termina abrupta numa câmara que me engole igual a uma boca predatória. O primeiro estômago da criatura, percebo através de conhecimento que não deveria ter. Bioluminescência falha. Pulsações de luz morrem numa sequência que lembra velas sopradas uma por uma. Escuridão total me abraça com intimidade sufocante.
Me encolho.
Reflexo automático, animal, instintivo. Meu corpo inteiro recusa o escuro com terror que reconheço visceralmente: sempre odiei a ausência de luz, sempre evitei cômodos onde as sombras se acumulavam na quietude ameaçadora de predadores pacientes.
Durante anos, a escuridão foi minha única fobia constante, a única coisa que conseguia me fazer tremer mesmo quando minha mão já não tremia mais ao separar ossos de crianças mortas.
Talvez nunca tenha sido o escuro em si. Talvez fosse o que ele lembra. A ideia de fim sem som, sem luz, sem olhos para ver. Talvez esse sempre tenha sido meu verdadeiro medo: não a escuridão… mas a possibilidade de nunca mais sair dela. De ficar preso ali, seguindo o mesmo destino dos corpos que estudei.
Nenhum voltou com brilho nos olhos. Nenhum deixou rastros de claridade. Eles terminaram ali: frio, silêncio e sombra. Talvez o escuro sempre tenha sido só isso: um lembrete do fim. Um aviso de que, no final, tudo apaga.
Mas algo quebra.
Algo rasga dentro de mim com estalo quase audível, tal qual uma trava biológica sendo liberada. A escuridão que deveria me cegar… não cega. Ela some. Some de mim à semelhança de algo que jamais existiu, na impressão de que nunca foi real, como se fosse apenas uma limitação temporária que finalmente se tornou obsoleta.
Que porra de escuridão é essa que não escurece?
Em vez de cegar, ela revela. A transição não é desconforto, é correção. Um filtro desnecessário foi removido, e minha visão explode em espectros que não sabia que existiam. O infravermelho se acende assumindo o papel de uma segunda retina.
Linhas de calor contornam tudo com precisão técnica que transforma o ambiente em diagrama tridimensional. Detalhes minúsculos saltam para o foco: texturas impossíveis, nervuras capilares, veias secas feito fios de cobre, pedaços de enzimas petrificadas formando cristais que crescem nas paredes.
Pisco, e sinto algo deslizar sobre meus olhos. Uma membrana. Óptica biológica que se ajusta com sussurro quase inaudível. Amplificação automática.
Quando isso começou?
A pergunta ecoa no vazio da minha memória, tal qual uma voz que caiu e continua caindo. Como revistar um corpo que ainda sangra, volto a lembrar de tropeçar no corredor da oficina quando as luzes falhavam.
Lembro de dormir sempre com luz artificial: luz de emergência, luz do monitor, luz da parede, luz de qualquer coisa, só para não enfrentar o escuro. Por sete anos, a escuridão foi minha única fraqueza confessa, minha única vulnerabilidade que Axion conhecia e nunca tentou corrigir.
Agora não. Agora nem sei mais se algum dia verei escuridão de novo. Talvez ela tenha deixado de existir para mim. Talvez nunca tenha sido real, apenas uma programação temporária que cumpriu sua função e se autodestruiu.
Antes que eu processe completamente a magnitude dessa transformação, um alerta biológico explode dentro de mim feito choque muscular involuntário. Alguma coisa se move na entrada oposta. A escuridão, que parecia vencida, me lembra que pode não ter sumido, apenas mudado de forma e escolhido novos portadores.
Rilks se esconde entre fragmentos orgânicos, orelhas tremulando com captação de frequências que meu próprio sistema auditivo agora processa com facilidade, mas percebo que ele não vai conseguir me seguir adiante, pois o caminho que se abre à frente é perigoso demais para suas pequenas patas modificadas.
Duas figuras se aproximam com coordenação que identifico como sincronizada. Algo no meu peito se contrai, movimento involuntário diante de uma ameaça registrada e conhecida. Equipamentos brilham na minha visão ampliada: armas, sensores, modificações corporais que deveriam ser caras demais para caçadores comuns.
Mulheres. Pelo menos foram um dia.
Pele metálica reflete luz infravermelha em padrões geométricos que sugerem enxertos extensos, modificações que começaram por necessidade e terminaram por obsessão.
Rostos deformados por implantes que substituíram mais osso e músculo do que preservaram. Olhos substituídos por sensores que se ajustam constantemente, piscando com frequência mecânica enquanto calibram minha distância, velocidade, potencial de ameaça.
Se movem feitos predadores que conhecem exatamente sua presa. Coordenação exata. Silêncio cirúrgico. Caçadoras experientes o suficiente para transformar assassinato em arte, disso não há dúvida.
Mas há algo no movimento delas, uma familiaridade estranha, por lembrar uma coreografia que meus músculos conhecem, ainda que minha mente não consiga nomear.
— Pare! — a voz distorcida falha no meio, carregando mais exaustão do que autoridade. Modulação vocal artificial que tenta soar humana mas não consegue esconder completamente a origem mecânica.
O fato de falarem primeiro, em vez de atirarem imediatamente, me surpreende. Não sei se é compaixão residual, protocolo de captura ou cálculo estratégico. Seja qual for o caso, é sinal de que ainda sou mais valioso respirando do que sangrando no chão. Mas confiar nisso seria suicídio.
O túnel estreito à frente promete escape se eu for rápido o suficiente. Se agir agora, se pegar as duas de surpresa, ganho metros. Ganho tempo. Talvez ganhe vida.
Meu corpo já decide antes que eu termine o pensamento. E corro.
— Pow! — o disparo ecoa através da câmara com autoridade que faz as paredes vibrarem.
O som ressoa pelas paredes vivas feito sentença de morte. Meu corpo já se move antes mesmo que minha mente processe o perigo, mas será que os reflexos que descobri há poucos minutos serão suficientes contra caçadoras profissionais? A escuridão que não me cega, mas testemunha o primeiro teste real das modificações que carrego sem saber.
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