Capítulo 5 - O labirinto sob a pele
Mas meu corpo já se move: rolar, esquivar, flutuar. Músculos executam dança que nunca aprendi conscientemente, mas que parece ter sido coreografada especificamente para este momento, para esta ameaça, para estas armas. Algo sibilante passa onde minha cabeça estava há meio segundo, e estou de pé antes de entender de que maneira saí do chão.
Não foi consciente. Meu corpo reagiu a estímulos que minha mente nem processou: mudança na pressão do ar, som do disparador sendo acionado, deslocamento microscópico na postura da atiradora. Sistema de alerta precoce instalado no meu sistema nervoso tal qual programa que roda em segundo plano, sempre ativo, sempre vigilante.
Não foi bala. Foi rede, dispositivo que se debate no chão à semelhança de uma cobra eletrônica frustrada, filamentos inteligentes ainda procurando por carne para capturar.
— Reflexos confirmados! — diz a segunda mercenária, e o tom mudou completamente. Não é mais tédio profissional. É interesse técnico, quase científico — Padrão reconhecido. Série KX.
“Série KX.”
As palavras batem no meu cérebro feito bisturi arranhando a parte errada, criando reverberações que despertam memórias que não são minhas, conhecimentos que não aprendi. KX. Série experimental. Soldados artificiais. Crianças modificadas para guerra.
Como as que chegavam mortas na oficina. Como as que eu desmontava. Iguais às que tinham exatamente as mesmas modificações que sinto pulsando no meu próprio corpo neste exato momento.
Elas ajustam sensores no meio da corrida, movimentos fluidos que não quebram o ritmo da perseguição. Visores piscam com dados que não consigo ler, mas imagino que sejam meus sinais vitais, minha composição corporal, minha classificação de ameaça. Braços recalibram armas. Músculos biônicos vibram com energia acumulada que pode explodir em velocidade letal quando necessário.
E eu só corro. Sem plano além da sobrevivência imediata. Sem mapa além do instinto que me guia através de túneis que não deveria conhecer. Só esse corpo me arrastando além do que teria acreditado ser possível, ultrapassando limitações que sempre pensei serem minhas.
Sem mais disparos, por enquanto. Elas mudaram de estratégia, optando por me cansar em vez de me danificar. Mas os passos ficam mais próximos. Elas ganharam terreno, e sei que é questão de tempo até que me alcancem.
O túnel orgânico deságua numa nova câmara, e o cheiro me golpeia antes dos olhos processarem o que veem: cheiro de morte antiga, de carne vencida, de organismo que faliu de formas espetaculares. Não é apenas morte. É colapso sistêmico. Falência biológica em escala arquitetônica.
Tudo aqui está morrendo.
Não é falha mecânica, é colapso biológico progressivo. Tecidos se rasgam com sons úmidos que ecoam tal qual suspiros interrompidos. Fluidos espessos escorrem das paredes como pus nervoso, carregando cheiro metálico de ferro oxidado misturado com proteínas em decomposição.
Estruturas que um dia foram elegantes agora caem em câmara lenta, ossos de titânio biológico racham com um estalo seco, áspero, que lembra vértebras esmagadas sob peso demais.
E então percebo a verdade que me paralisa: não há saída.
Olho para trás. Elas surgem da abertura pulsante do túnel feito pesadelo materializado, rápidas e precisas. Mas uma viga viva, nervuras e cabos orgânicos entrelaçados igual a artéria gigante, desaba no exato ponto que usariam para me flanquear. Saltam para trás no reflexo, quase esmagadas pela massa que cai com impacto que faz o chão tremer.
— Estrutura colapsando! — grita a primeira, voz mais rápida, menos segura, perdendo o controle profissional — Reagrupar. Protocolo de emergência.
O líquido começa a escorrer do teto à semelhança de chuva maldita. Ácido biológico. Corrosivo, denso, espesso feito óleo queimado misturado com carne derretida. Elas recuam mais, mesmo com armaduras avançadas. Não querem atravessar aquilo, e não as culpo.
Diferente de mim. Eu não tenho escolha.
As mercenárias se afastam, retornando à entrada da câmara, hesitando pela primeira vez desde que começaram a perseguição. A cachoeira grotesca de fluido biológico agora bloqueia o avanço delas completamente, criando barreira que nem suas modificações podem superar.
Só me resta uma esperança: que o colapso abra passagem alternativa. Algum caminho escondido. Alguma rota que só existe porque tudo está se desmontando. Porque voltar… simplesmente não existe mais.
O fluido pinga em mim.
Primeira gota na mão. Segunda no braço. Terceira no rosto.
Desliza pela pele sem causar dor, sem causar ardência, sem causar qualquer dano. Meu corpo… aceita. Absorve. Integra. Como se fosse projetado especificamente para processar essa substância, com cada poro da minha pele atuando como receptor especializado à espera desse exato momento de conexão.
E então sinto conhecimento.
Não é informação chegando através dos sentidos normais. É transferência direta. Fluido neural se integra através da pele, ativando receptores ocultos cuja existência até então me escapava. Dados fluem direto para o meu sistema nervoso iguais a atualizações de software que não pedi, mas que sempre estiveram preparadas para mim. Memórias químicas sendo decodificadas e integradas em tempo real.
Flash de imagens que não são minhas, mas que reconheço com familiaridade assombrada:
Laboratórios escondidos no corpo da criatura. Câmaras cirúrgicas onde Axion trabalhava em projetos que nunca mencionou. Equipamentos processando algo que se parece… comigo. Jovens sendo modificados, testados, descartados quando falhavam os parâmetros estabelecidos. Corpos pequenos em mesas metálicas. Bisturis que trabalham feito impressoras tridimensionais. Tecidos sendo reescritos célula por célula.
E então a verdade não chega como revelação gradual. Chega tal qual sentença definitiva.
Não nasci aqui. Fui feito aqui.
Molde. Projeto. Propriedade intelectual. Produto de engenharia biológica que levou anos para ser refinado até atingir viabilidade operacional.
E não sou o único. Nem fui o primeiro. Nem serei o último. Sou apenas… o que não quebrou. O que passou em todos os testes. O que sobreviveu ao processo completo.
Cada fibra muscular que pulsa no meu corpo. Cada osso reforçado que suporta impactos impossíveis. Cada adaptação sensorial que agora me permite ver no escuro. Tudo foi calculado, arquitetado, refinado através de gerações de protótipos falidos. Não há acidente aqui. Não há sorte. Não há presente da natureza.
Há apenas design intencional e execução meticulosa.
Mas as memórias químicas são fragmentadas. Lacunas cirúrgicas onde informações foram deliberadamente removidas. Dados arrancados não por falha do sistema, mas por intenção específica. Vejo procedimentos, mas não suas justificativas. Vejo corpos, mas não suas identidades. Vejo bisturis e modificações, mas não o propósito final.
Feito se alguém tivesse editado cuidadosamente o que eu podia saber, permitindo que visse o suficiente para entender que fui moldado, mas não o bastante para descobrir exatamente o que me tornei.
E muito menos para que fim fui criado.
A pergunta martela no meu crânio com força que ameaça rachar meu autocontrole: Por que fizeram isso comigo?
Cada músculo que agora reage antes do meu pensamento consciente. Cada tecido que regenera além dos limites humanos normais. Cada osso reforçado com materiais que não deveriam existir na natureza. Cada nervo ampliado para processar informações em velocidades sobre-humanas. Cada fragmento daquilo que chamei de ‘eu’ durante sete anos…
Tudo isso foi escolhido. Programado. Instalado. Testado. Aprovado.
Axion nunca foi apenas meu pai, mentor ou meu empregador. Foi meu arquiteto. Meu programador. Meu engenheiro chefe. A pessoa responsável por cada decisão que determinou quem eu me tornaria.
Eu só não sabia. Até agora.
— Sobrecarga neurológica detectada! — grita a mercenária, observando meu corpo através de sensores que captam variações que nem meu cérebro processa — Protocolo de emergência ativado. Prioridade: preservação do ativo.
Mas não estou em sobrecarga. Estou integrando.
Décadas de informações arquivadas fluem pelo meu sistema nervoso, ativando sinapses que pareciam ter esperado por esse momento desde sempre. Módulos dormentes despertam. Funções enterradas no meu próprio código biológico se destravam uma por uma. Capacidades que nunca soube que possuía se ativam com suavidade que sugere design intencional, não acidente biológico.
Levanto a cabeça, e pela primeira vez em sete anos de existência consciente, sei exatamente o que fazer.
Não fujo das caçadoras. Não procuro esconderijo. Não imploro por misericórdia.
Corro na direção da parede. De um ponto específico. De um lugar que nunca vi conscientemente, mas que sempre soube que existia, arquivado em algum compartimento da minha memória que só agora ganhou acesso autorizado.
Meus dedos se projetam tal qual lâminas naturais. Unhas penetram a carne da parede com precisão molecular, encontrando exatamente as fibras certas, os pontos de tensão corretos, as junções que cedem sob pressão aplicada no ângulo perfeito. O corte abre à maneira de um corpo que conversa diretamente com a arquitetura viva desse lugar, em linguagem que ambos conhecem instintivamente.
E lá está. O túnel secreto. O caminho escondido.
Sempre esteve aqui. Sempre foi meu. Sempre foi parte do plano que alguém fez para mim antes mesmo de eu existir conscientemente.
Atrás de mim, a voz da mercenária racha no meio da frase, oscilando entre frustração profissional e surpresa genuína:
— Ele conhece passagens que não estão nos mapas. — O tom não é mais tático. É medo disfarçado de protocolo operacional — Repito: seguir o alvo. Rota não registrada. Prioridade máxima.
Mergulho na passagem secreta que se abre tal qual casa me dando as boas-vindas, e pela primeira vez desde que começou essa perseguição, sorrio. Não estou mais fugindo desesperadamente. Estou navegando território familiar, usando capacidades que foram instaladas em mim especificamente para este tipo de situação.
As mercenárias podem ter mapas. Podem ter equipamentos avançados. Podem ter anos de experiência em caça.
Mas eu tenho algo melhor: fui construído para estar aqui.
O canal orgânico se estreita, força meu corpo a contorções que deveriam ser dolorosas mas são naturais, e entendo que cada centímetro da minha estrutura óssea foi calibrada para permitir exatamente esses movimentos. Não há acidente na minha flexibilidade. Não há sorte na minha resistência. Não há talento natural na minha velocidade.
Há apenas engenharia de precisão aplicada à forma humana.
Atrás de mim, ouço as mercenárias por uma nova rota tentando me seguir, mas seus corpos modificados para guerra aberta não foram otimizados para perseguição em espaços apertados. Ganho distância. Ganho tempo. Ganho vantagem.
Mas mais importante que qualquer vantagem tática: ganho compreensão.
Não sou vítima de circunstâncias. Não sou produto do acaso. Não sou anomalia biológica sortuda.
Sou arma. Ferramenta. Solução para problema específico que alguém identificou e decidiu resolver através da minha criação.
A pergunta agora não é mais “o que sou?” É “para que fui feito?”
E tenho certeza de que, antes desta noite terminar, vou descobrir a resposta. Mesmo que ela destrua tudo o que pensei saber sobre mim mesmo.
O túnel orgânico me leva mais fundo na criatura morta, mais longe da superfície, mais perto das respostas que Axion escondeu de mim durante sete anos.
E desta vez, não vou permitir que ninguém edite minha memória antes que eu saiba a verdade completa.
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