Capítulo 6 - Onde a memória escorre
O eco da cachoeira grotesca de fluido biológico ainda ressoa nos meus ouvidos quando ouço as mercenárias contornando a queda de líquido orgânico por uma passagem lateral que eu não havia notado.
Meus novos sentidos captam o metal rangendo contra a rocha úmida, o sussurro de equipamentos sendo ajustados, o ritmo disciplinado de respirações controladas. Elas não desistiram. Apenas encontraram outro caminho.
Mas eu também tenho outro caminho.
O túnel diante de mim pulsa com um chamado que sinto nos ossos, uma frequência subterrânea que ressoa na cicatriz em forma de losango na base do meu pescoço. Não é fuga que me guia agora. É reconhecimento.
Sei que há laboratórios escondidos com equipamentos que Axion deixou espalhados à maneira de sementes de possibilidade. Sei que há informações sobre minha construção esperando por dedos que saibam navegar interfaces com precisão impossível. Sei que não estou sendo caçado por acaso: estou sendo caçado porque represento investimento caro que finalmente deu certo.
E entendo uma coisa com clareza brutal que corta através de sete anos de submissão: não quero ser usado. Não quero ser propriedade. Não quero ser material biológico catalogado em cadernos com tinta feita de fluido cerebrospinal. E o mais importante: não quero morrer e ser jogado em um tubo igual as crianças que desmontei durante tanto tempo.
Entro no túnel com passos que já não soam iguais aos de uma vítima.
O túnel se abre numa câmara que pulsa com energia bioelétrica, e percebo que essa passagem interligada me fez andar em círculo. Voltei ao laboratório inicial onde a perseguição começou, mas agora posso ver o que o medo me impediu de notar: uma abertura secreta na parede oeste, selada com tecnologia que reconhece padrões genéticos específicos. Quando minha mão se aproxima, sensores ocultos escaneiam a palma e a passagem se abre com sussurro pneumático.
O Laboratório Principal de Axion se revela diante de mim tal qual um útero tecnológico onde fui gestado sem saber. Equipamentos dispostos em semicírculo, cada um calibrado para interfaces que meus dedos navegam à semelhança de música memorizada.
Não é lembrança consciente. É memória muscular implantada, cada movimento fluido revelando conhecimento que foi programado diretamente no meu sistema nervoso.
As mudanças continuam. Meu corpo reescreve a si mesmo, célula por célula, ativado pelo pânico. Não é milagre, é bioengenharia. A fuga, o medo, a descarga brutal de adrenalina e cortisol em sincronia perfeita… tudo isso era a chave. Um instinto que não nasceu comigo. Foi instalado. Agora entendo.
A prova está escrita sob a pele.
Veias bioluminescentes riscam meu corpo tal qual mapas vivos, projetando sombras dançantes ao meu redor. Minha temperatura se estabiliza num calor visível que distorce o ar ao meu redor.
A audição se expande em ondas concêntricas, captando sons de quilômetros de distância: o gotejo da chuva na superfície, o zumbido de geradores urbanos, os batimentos cardíacos acelerados das mercenárias que se aproximam. E a força. Músculos se rearranjando sob a pele, num movimento semelhante ao de cobras líquidas encontrando nova configuração.
Quando o sorriso chega, é estranho. Torto. Como se meu rosto tivesse esquecido o que fazer. Mas ainda assim… é meu.
Porque agora eu entendo. Esse sorriso não é só sobre dentes ou músculos. É sobre não estar mais indefeso. Sobre não ser mais aquele que vivia à sombra de ordens, protocolos e ameaças de descarte.
Não estou mais com medo do escuro, de ser abandonado, de ter o corpo descartado em algum tubo industrial igual a material biológico desperdiçado.
Só então percebo que o corpo inteiro parece sorrir comigo. Não é só meu rosto que mudou. Quando passo a mão pela mandíbula, sinto que os dentes estão diferentes. Mais longos. Afiados.
Arquitetura pensada para rasgar carne e não mais para mastigar pão. Meus dedos também se afilaram em pontas córneas que podem cortar metal. Durante anos, fui a ferramenta que desmontava armas biológicas descartadas.
Agora, eu sou a lâmina.
As mercenárias chegam à entrada no momento em que os sistemas auxiliares do laboratório emitem o último suspiro eletrônico. A bioluminescência se apaga em ondas. Estruturas de energia colapsam. E a escuridão total engole o ambiente feito um predador que finalmente encontrou território ideal.
Mas eu tenho visão que funciona melhor na ausência de luz. Reflexos adaptados para caça tridimensional. Modificações finalmente completas revelam minha verdadeira natureza. Não fui feito para ser vítima. Fui feito para ser algo que nunca soube que era até ser forçado a acordar para minha própria letalidade.
Tem gosto de tempestade enferrujada, de metal molhado roçando nos dentes. E junto vem essa satisfação estranha, algo que arrepia cada nervo reconstruído.
— Alvo localizado! — a primeira mercenária informa, mas agora a voz carrega algo que não tinha antes: hesitação.
Elas percebem. Está no cheiro, na densidade do ar, nas leituras dos sensores. Uma mudança. Uma presença que seus equipamentos detectam… mas que suas mentes não sabem decifrar.
— Sinais biológicos alterados! — segunda confirma, verificando instrumentos que transmitem dados contraditórios — Não corresponde aos parâmetros do contrato.
Não estão mais caçando o que vieram buscar. Vieram atrás de algo fácil, descartável, um material supostamente quebrado. Vão descobrir que não existe nada fácil aqui, só um predador que ainda não estava totalmente ativado.
Sete anos de pedagogia grotesca. Cada cadáver desmontado foi treino. Cada enxerto, um mapa de onde rasgar. Cada articulação separada, uma lição que revela a mecânica de desligar corpos ainda pulsando. Agora quem me caça só repete o ciclo, mas do lado errado da lâmina.
— Térmicas confusas! — primeira mercenária baixa a voz, instinto de predador reconhecendo que pode ter se tornado presa — Não está onde deveria estar.
— Equipamento pode estar falhando! — segunda responde, mas dúvida real contamina a certeza — Sinais não fazem sentido.
Não sabem que minhas garras fincaram na carne do teto, que me movo sobre elas feito uma sombra invertida, atravessando superfícies que jamais foram feitas para sustentar um corpo. Exceto o meu.
Meu corpo habita o espaço vertical com naturalidade que deveria ser impossível, mas que se revela como capacidade sempre presente, apenas adormecida.
A primeira dispara no escuro, mirando onde acha que estou. Mas eu já não estou mais lá. Meu corpo se move com velocidade não-humana, reflexos funcionando mais rápido que qualquer pensamento consciente, músculos reagindo a estímulos que minha mente ainda tenta processar.
Desço da parede igual a uma sombra que ganhou densidade e propósito. Aterrizo atrás delas sem produzir som, pés tocando o chão com distribuição de peso que absorve completamente o impacto. Posso sentir o calor irradiado pelos corpos, cheiro da adrenalina se misturando com suor, sabor metálico do medo saturando o ar feito perfume familiar.
Minha primeira aplicação prática de anatomia em organismo vivo não vai ter tempo de gritar.
Minha mão encontra o pescoço da primeira mercenária antes que ela perceba que não estou mais na mira das armas. Dedos, agora com força que pode quebrar estruturas metálicas, se fecham em torno da garganta. O movimento é rápido, preciso. Eficiente.
É a primeira vez que aplico conhecimento anatômico em algo que resiste, que luta, mas não há tempo para hesitação.
O corpo cai. E quando olho… algo quebra, não nela, mas em mim. Uma parte antiga, que ainda acreditava que a vida humana carregava algum valor absoluto, parece se desfazer. O choque não vem apenas da morte. Vem da constatação de como é fácil tirar uma vida.
E percebo, com um incômodo ácido na garganta, que anos abrindo corpos me custaram mais do que imaginei. Quando exatamente a vida dos outros se tornou algo tão fácil de descartar? Quando exatamente comecei a olhar para carne viva feito apenas… matéria?
Por um segundo, penso que deveria me sentir quebrado. Que deveria haver mais peso nisso. Mais culpa. Mais humanidade. Mas não há. Só essa constatação crua de que algo essencial foi corroído há muito tempo, bem antes desse momento. E é justamente aí que percebo: não sou mais quem achava que era. Nunca fui. O que sobra… é funcional. É eficiente. E, talvez, perigosamente confortável.
O grito que sai da minha garganta quando salto não é humano. É primitivo, feral, e carrega uma satisfação profunda que vem de reconhecimento: é o som que predadores fazem quando param de se esconder da própria natureza. Vem do fundo do peito, de lugar que não sabia que existia, cavidade que ressoa com frequências que fazem os equipamentos eletrônicos ao redor emitirem interferência simpática.
Não é grito de raiva ou medo. É declaração de identidade finalmente aceita. É aviso. É o ruído que coisa perigosa faz para que as presas saibam que foram encontradas por algo que vai completar sua função com eficiência letal.
É o som de criatura que finalmente entendeu o que é, e que escolheu abraçar essa revelação com alegria sombria.
A segunda mercenária consegue meio segundo de compreensão total. Meio segundo para ver os olhos da parceira se apagando em sequência biológica previsível. Para perceber que a coisa que estavam caçando não é mais a mesma que fugiu em pânico pela oficina.
Meio segundo para entender que foram enganadas por contrato baseado em informações desatualizadas, que vieram caçar algo que não existe mais e encontraram algo muito mais complexo, muito mais letal, muito mais consciente de suas próprias capacidades.
Ela tenta disparar, mas minha segunda mão já quebrou o pulso dela com torção calculada para seccionar tendões específicos, já desarmou a arma com movimento que libera fragmentos metálicos numa trajetória que corta o ar com assobios musicais.
Reflexos funcionam mais rápido que processos conscientes, de tal forma que o corpo parece ter sido programado para exatamente este tipo de combate próximo com múltiplos adversários armados.
Não há esporte. Não há desafio. Foram preparadas para caçar humano modificado com capacidades limitadas. Encontraram algo diferente, algo que finalmente parou de fingir que era ferramenta e aceitou ser a arma biológica que sempre foi destinado a se tornar.
Mas no momento em que o último corpo toca o chão, uma dor excruciante explode na base do meu pescoço. A cicatriz em forma de losango queima, e percebo que o poder momentâneo tem custo. As modificações que me permitiram caçar com eficiência letal drenam energia de sistemas vitais numa velocidade insustentável.
Minha visão se fragmenta. As pernas cedem. O corpo que se revelou como instrumento perfeito de violência controlada agora colapsa igual a máquina que excedeu os próprios limites de funcionamento.
Enquanto a consciência se dissolve, uma risada amarga escapa dos meus lábios. Por um momento, tive a ilusão de controle total, de poder absoluto sobre minha situação. Mas estou novamente entregue à sorte, ao destino, à vontade de forças que não compreendo completamente.
E para um observador externo, seria cômico: essa crença momentânea em autodeterminação, essa sensação de ter finalmente rompido as correntes, quando na verdade apenas segui a trilha de programação mais longa e mais complexa do que posso imaginar.
A escuridão me engole, e pela última vez neste capítulo da minha existência, sou apenas material biológico inconsciente esperando pelo próximo movimento num jogo que talvez nunca tenha sido meu para jogar.
Se ele já tinha armado tudo isso, se meu abandono era parte de um plano maior.
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