O silêncio entre nós volta a pesar, mas não é o mesmo de antes. Agora tem algo mais ali, algo que não percebo de imediato.

    Ela continua imóvel, olhos fechados de novo, parecendo meditar, mas seu corpo inteiro está tensionado demais. Tal qual se estivesse… contido.

    Demoro um instante para entender por quê.

    Então vejo.

    Correntes. Grossas algemas biomecânicas envolvem seus pulsos, com pequenos fios embutidos nas juntas. Outra, mais pesada, conecta os tornozelos traseiros. Ferragens justas demais para serem apenas contenção.

    Sou tomado por uma estranha culpa. Ela está acorrentada. Eu, não.

    — Por que você está presa e eu não? 

    — Porque você ainda não descobriu que é perigoso. Eu descobri há muito tempo.

    Só então percebo que não olhei realmente ao redor desde que acordei. Além do ferro que nos cerca, há algo diferente. Uma superfície que não é metal. É translúcida, lembrando uma lente ou um cristal grosso embutido na parede da cápsula.

    Através dela, vejo apenas negrume no início. A escuridão densa da rocha que estamos perfurando. Mas conforme observo, a cor muda. O preto cede ao laranja, numa transição que sugere a passagem por camadas sucessivas de materiais distintos.

    Em seguida, algo mais irregular. A rocha uniforme dá lugar a formas com espessuras variáveis, tons quebrados, texturas que não se repetem. O mundo lá fora parece feito não de pedra, mas de algo que nunca se decide por uma forma final.

    — Isso é… isso é real? — a pergunta me corta a garganta antes que eu perceba.

    O riso dela vibra, meio veneno, meio epitáfio, lembrando que nada floresce sem apodrecer primeiro.

    — Você nunca saiu daquele buraco, não é? Dezesseis anos respirando ar reciclado e luz artificial.

    — Dezessete. Faço dezessete em duas semanas. — não sei por que corrijo. Não sei por que importa.

    — Dezessete anos… Então! Dezessete anos cercado em um laboratório onde o mundo não existe, sem árvore que ofereça refúgio, sem vento que sussurre promessas, sem rosto humano além do hálito rançoso do seu criador.

    Ela se cala, os olhos me percorrem como se esquartejasse cada fibra da minha vontade.

    — Sem ninguém para ouvir sua voz. Sem ninguém para mentir que existe salvação.

    Não é uma pergunta, mas assinto mesmo assim. Minha garganta está seca, e quando ela nota meu desconforto, aponta com a cabeça para uma garrafa de água presa na parede.

    — Você pode beber. Eu não posso alcançar.

    Pego a garrafa e a cheiro instintivamente. Minha pele formiga levemente. Uma reação que não entendo completamente, mas que me diz que a água é potável. Limpa. Segura.

    — Obrigado.

    Mesmo acorrentada, ela consegue cuspir a palavra como quem arranca a liberdade com os dentes:

    — Não estava oferecendo só para você.

    Olho para ela sem entender enquanto ela continua: 

    — Eu estou com sede há seis horas. Você está livre. Eu estou acorrentada. Faça as contas.

    Não é um pedido. É rendição disfarçada de gesto. Ela olha o copo como quem encara a cova, e eu sou a pá.

    — Eu não sei como…

    A voz dela vem seca: a recusa de implorar disfarçada de fala, uma lâmina embainhada em sarcasmo.

    — Segura a garrafa. Inclina para minha boca. Não é neurocirurgia.

    Hesito. Nunca fiz isso. Nunca cuidei de outra pessoa. Não sei chegar sem parecer ameaçador, nem medir a inclinação correta, nem perceber quando já é demais para ela.

    A ferida é dela. A impaciência também.

    — Você vai ficar aí me olhando morrer de sede?

    — Não! — a palavra sai mais firme do que esperava — Não vou.

    Aproximo a garrafa de seus lábios. Ela bebe devagar, controladamente, e posso ver seu pescoço trabalhando para engolir. Quando termina, ela encosta a cabeça na parede metálica do veículo.

    — Valeu.

    — Por quê?

    Ela demora um segundo. Acho que está decidindo se vale a pena me dar uma resposta.

    — Por não me deixar morrer de sede.

    — Não, por que você… por que foi gentil? Todo mundo sempre quer alguma coisa.

    Ela me olha com algo que pode ser piedade.

    — Porque você me lembra de mim. Antes de eu descobrir que gentileza é um luxo que criaturas como nós não podem se permitir.

    — Criaturas como nós?

    — Armas biológicas. Ferramentas. Projetos de laboratório que respiram e sangram e às vezes se convencem de que ainda são pessoas.

    Algo em mim rejeita isso visceralmente.

    — Eu não acredito em categorias. Não acredito em espécies.

    — Ah, não? E no que você acredita?

    Não respondo de imediato. Apenas observo Iara, ainda acorrentada, o som leve do metal preenchendo o silêncio tenso. Por um instante, tudo parece parado, não por calma, mas por esgotamento.

    Algo se move dentro de mim. Um pensamento antigo. Uma lembrança que não fazia sentido até agora.

    — Axion me mostrou uma coisa, uma vez… Acho que foi só uma curiosidade, na hora. Mas não. Pensando agora… foi a coisa mais bonita que ele já me mostrou. E era… um inseto.

    Iara ergue uma sobrancelha, cética, mas não interrompe.

    — Ele disse que era só uma larva nojenta, daquelas que vivem na lama, comendo resto. Feia, esquecida. Mas um dia ela se fecha num casulo. Some. E depois… sai com asas. Coloridas. Imensas.

    Ela cruza os braços, o olhar fixo em mim agora. A provocação some. Algo mais atento toma o lugar.

    — Axion deu um nome pra ela. Disse que não era um nome científico, nem prático, mas gostava da ideia: Borboleta.

    Um leve franzir de testa. O nome parece estranho nos lábios dela. Percebo e continuo, mais baixo:

    — A mesma vida. Só que… outra! Eu acho que… se aquilo pode mudar, talvez a gente também possa.

    — E você acha que somos larvas ou borboletas? — pergunta Iara, testando o peso da ideia pela primeira vez.

    — Acho que somos vivos. E que isso é suficiente.

    Ela fica em silêncio por um longo tempo. Quando fala novamente, sua voz é mais suave.

    — Iara. Meu nome é Iara Dornelles.

    Cuspo o nome como quem se livra de um tumor: 

    — Zéric-7.

    Ela hesita, e então me devolve algo mais doce do que devia.

    — Só Zéric. Você não é um número.

    Deixo que as palavras enferrujadas subam pela garganta: 

    — Todos os outros Zérics morreram… eu sou o sétimo.

    Ela sustenta meu olhar por tempo demais, como quem quer impedir um cadáver de fechar os olhos.

    —E você não vai morrer. Vai?

    A pergunta me pega desprevenido. Não sei a resposta.

    — Não sei. Não sei nada sobre o que acontece agora. Axion me abandonou. As mercenárias estão mortas. Estou sendo transportado para algum lugar que não conheço, com alguém que mal conheço.

    — Você me conhece!

    Falo mais por espasmo do que por certeza, feito quem toca um cadáver que ainda está quente:

    — Conheço?

    Não tenho tempo de negar. Ela já perfura:

    — Você viu o que eu sou por dentro quando me tocou. Suas mãos sabem ler modificações biológicas. Então me diga. O que você viu?

    Calo-me por um instante. Como ela sabe disso? A pergunta sobe feito uma faísca, mas a empurro para o fundo da mente. Aquilo fica para depois. Agora, eu preciso responder. 

    Fecho os olhos e me forço a lembrar: a textura da pele dela. A temperatura. A conexão precisa entre músculos e ossos, a integração perfeita dos implantes ao tecido orgânico.

    — Dor! Muita dor. — revelo num tom mais próximo de um relatório para Axion do que de empatia — Cirurgias começaram quando você era criança. Sete, oito anos. Não foram rápidas: foram graduais, deixando o corpo se adaptar. Várias infecções, várias rejeições. Mas você resistiu.

    — Continue.

    — Tem modificações que não são funcionais. São… decorativas. Alguém quis que você fosse bonita além de útil. Isso é cruel.

    — Por quê?

    — Porque beleza cria expectativas. — mais uma vez, sou só um eco de Axion — Cria esperanças. Faz você querer coisas que não pode ter.

    Ela sorri, mas é um sorriso triste.

    — Você entende mais do que imagina.

    A máquina-toupeira começa a desacelerar. Nossa conversa está chegando ao fim.

    — Iara?

    — Sim?

    — Para onde estamos indo?

    — Para lugares diferentes. Eles vão me vender para algum colecionador ou casa de luta. Você, não sei. Talvez um laboratório novo. Talvez alguém que queira estudar o que Axion fez com você.

    — E se eu não quiser?

    — Você quer?

    A pergunta fica suspensa no ar entre nós, misturada ao ruído constante da perfuratriz que desacelera.

    Penso na vida que deixei para trás. Dezessete anos entre tubos de ensaio, corpos abertos na mesa de cirurgia, órgãos imóveis sob a luz fria do laboratório. Era pouco. Mas era o que eu conhecia. Aquilo me entendia.

    Ali, ninguém esperava que eu fosse mais do que uma ferramenta precisa nas mãos de Axion. E, às vezes, ser apenas isso… bastava. Era simples. Previsível. Seguro.

    Mas agora não dá mais.

    Não posso voltar. O laboratório não existe mais. Não há mais o chão firme onde eu estava, não há mais a certeza de acordar amanhã sabendo exatamente o que fazer, para que servia, qual era meu propósito.

    Só me resta seguir em frente.

    Como aquela coisa que Axion chama de borboleta. A larva que vivia na lama comendo restos, mas que um dia se fechou em um casulo e emergiu com asas. Talvez eu também precise fazer isso: subir, sair da lama, ver de cima. Ver o que realmente é isso que chamam de viver.

    Talvez só lá de cima eu vá entender se vale a pena ser mais do que apenas uma ferramenta que respira.

    — Não! — finalmente respondo, e minha voz soa mais firme do que esperava — Não quero!

    — Então você vai resistir?

    — De que jeito você resistiu?

    — Mal. Muito mal. Mas resistir mal ainda é resistir.

    A máquina começa a parar.

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