Capítulo 9 - Aprendemos a morrer devagar
A broca de transporte diminui a velocidade. O ranger metálico cede lugar a um gemido abafado, quase uma súplica de exaustão mecânica contra o mundo que ela ainda perfura. Meu corpo estranha a mudança. Passei horas acostumado com o caos: agora, o silêncio crescente parece errado.
Iara levanta a cabeça com o cansaço de quem já morreu em partes. Os olhos se abrem, breves, feito uma última piada contada ao escuro.
— Chegamos!
Chegamos aonde? A pergunta não importa. Chegamos, e isso significa que nossa conversa acabou. Que este momento entre nós, dois espelhos estilhaçados admirando a ilusão de insetos com asas, exala seu último sopro.
Como aquelas borboletas que Axion me mostrou. Mesmo quando voam, já estão morrendo. Suas asas coloridas são apenas a versão bonita do fim se aproximando.
A verdade é simples: nada dura. Nem a dor dos primeiros dias no laboratório, quando meu corpo rejeitava as modificações de Axion. Nem este momento estranho onde alguém me viu não só pela função, mas pelo que resta de mim.
Tudo se esvai. O que fica é apenas o gosto do que foi. Às vezes, amargo. Às vezes, doce demais para parecer real. Contudo, sempre insuficiente. Sempre menos do que esperávamos.
No laboratório, aprendi que órgãos têm duração prevista. Corações param. Pulmões colapsam. Cérebros apagam. Nunca pensei que momentos também morressem assim.
Agora sei que sim. Cada instante nasce, cresce e morre. Quando morre, deixa fantasmas: lembrança do que foi, sempre pálida comparada ao que realmente vivemos. Ficamos com cinzas de experiências que, quando vivas, tinham gosto de infinito.
A máquina para completamente. O silêncio é absoluto.
Olho para Iara. Realmente olho desta vez.
Ela cruza o trajeto de olhos fechados. Talvez não por desconforto, todavia, porque a escuridão familiar parece menos ameaçadora que o destino à frente. Ou talvez só não queira ver onde tudo termina.
É estranho. No laboratório, eu olhava corpos todos os dias. Cadáveres frescos desciam pelo tubo pneumático, o barulho metálico anunciando mais trabalho. Examinava cada fibra, cada órgão, cada anomalia com a mesma precisão clínica de Axion. Eu olhava para esquecer depois. Nunca para lembrar. Só o bastante para desmontar.
Contudo, com Iara é diferente. Olho feito quem grava, e não pretende apagar.
Cada detalhe. A curva suave onde a pele bronzeada encontra a pelagem castanha. As cicatrizes cirúrgicas que contam uma história de dor e resistência. A forma com que suas mãos se movem mesmo com as algemas. Gestos pequenos, porém, expressivos. O jeito contido da respiração é meticuloso, medido. Cada inspiração parece uma decisão consciente.
Talvez seja porque sei que nunca mais vou vê-la. Ou talvez seja porque, de todas as coisas desconhecidas que vou enfrentar, ela seja a mais suave. E surpresas boas são raras. Especialmente quando se vive numa vida pontuada pelo barulho de novos cadáveres descendo pelo tubo.
Iara abre os olhos. Aqueles olhos âmbar que me veem desde o primeiro momento.
— Zéric? — ela chama meu nome, não meu número.
— Sim? — respondo, ainda absorvendo cada detalhe de seu rosto e esperando seu complemento.
— Lembra do que você disse sobre borboletas?
— Lembro. — respondo, surpreso com a palavra que escapa como se tivesse vida própria, arranhando meus lábios secos.
Ela vira o rosto devagar, e parece que até o tempo hesita por ela. Os olhos, opacos tal qual sensores queimados que só enxergam silêncio, não buscam os meus. Apenas examinam o vazio à frente, onde fantasmas talvez se aglomerem. Quando enfim fala, a voz não traz piedade, nem raiva, nem pressa. Só ossos.
A frase escorre dela com o peso espesso de sangue coagulado, carregada de memórias e maldições.
— Às vezes, para voar, você precisa primeiro aprender a cair.
Soa tal qual um epitáfio lançado antes da morte. A minha ou a dela, não sei dizer. Parte de mim aceita aquilo na forma de um presente de despedida, torto e amargo, talvez o único jeito que ela conhece de deixar algo que não sangre ao ser tocado.
Um gesto que já nasceu exausto. Contudo, ainda assim, um gesto.
Porém quanto mais repito a frase na cabeça, mais ela ressoa estranho. Muito precisa. Muito certeira para ser espontânea. Parece escolhida a dedo. Calibrada.
Será que ela também carrega algo implantado? Não apenas as modificações físicas que senti quando a toquei, mas… palavras. Frases programadas para dar esperança quando tudo parece perdido. Pequenos empurrões psicológicos para manter a vontade de continuar vivo.
Meus pensamentos se estilhaçam quando uma cascata de sons irrompe ao redor. Metal contra metal, vozes abafadas, passos pesados se aproximam. A realidade volta para me reivindicar.
Então uma voz áspera grita através do metal:
— Máscaras! Todo mundo coloca as máscaras antes de abrir!
Compartimentos se abrem nas paredes da cápsula, revelando dispositivos que reconheço: respiradores artificiais. Filtros de ar.
Uma das máscaras cai ao meu lado. Pego o aparelho e o examino. Minha pele não formiga, não reage. Instintivamente sei que não preciso dele, que meus pulmões podem processar o que quer que esteja lá fora. Todavia, algo na minha memória ressoa. A voz de Axion, sussurrando um conselho que nunca entendi completamente:
“O segredo de sobreviver é nunca mostrar todas as suas cartas de uma vez, meu garoto. Deixe sempre uma reserva, uma surpresa, algo que eles não esperam.”
Na época, pensei que ele estava falando sobre anatomia, sobre técnicas de dissecação. Agora me pergunto se ele já sabia que este momento chegaria.
Coloco a máscara. Melhor não revelar tudo que sou capaz de suportar.
Olho para Iara. Ela também precisa de proteção, contudo, as algemas biomecânicas tornam impossível que ela mesma se proteja. Pego a segunda máscara pendurada na parede e me aproximo.
Ela me observa com resignação, inclina ligeiramente a cabeça para facilitar. Quando ajusto as tiras ao redor de seu rosto, sinto novamente a textura modificada de sua pele. Mais quente que o normal. Mais resistente.
Por um instante, nossos olhos se encontram através das lentes. Há algo ali que não consigo decifrar. Gratidão, talvez. Ou apenas o reconhecimento silencioso de que agora estamos ambos nas mãos de desconhecidos, igualmente vulneráveis ao que vem a seguir.
As portas se abrem. O ar que entra é denso, carregado de partículas que fazem os filtros da minha máscara trabalharem intensamente. Através da lente do respirador, vejo homens armados esperando do lado de fora, todos usando equipamentos de proteção similares.
— Hora de ir, garoto! — a ordem chega feito uma lâmina antes do corpo.
Olho para Iara uma última vez. Ela me observa com aqueles olhos âmbar, e há algo neles que não consigo decifrar. A pergunta me escapa antes que eu possa enterrá-la:
— Não vamos nos ver novamente, não é?
Vem dela. Baixa, exata, como se não dissesse a mim, mas à própria morte:
— Talvez. sim… O mundo é menor do que parece. Quando se vive dele.
Os homens armados me fazem sinal para sair. Quando me levanto, ouço o tilintar das correntes de Iara uma última vez. A porta se fecha atrás de mim com um som definitivo.
O mundo lá fora é uma agressão aos sentidos. Mesmo através da máscara, sinto que o ar é diferente, mais denso, e meu corpo os percebe estranhos, embora não alarmantes. O ambiente é um caos de cores e texturas que minha mente luta para processar. Não há horizonte definido, não há linhas retas. Tudo parece estar em constante transformação, numa espécie de fluidez da própria realidade.
Enquanto me levam embora, escuto o som da máquina-toupeira voltando à vida, suas brocas girando, pronta para perfurar através de mais obstáculos. Não olho para trás. Não posso.
Contudo, carrego comigo o peso da água que dei a Iara, o som de sua risada, a sensação de ter conversado com alguém que me entendeu.
Há dezessete anos, carrego esse vazio feito uma pele. E agora, ele cede um pouco. Só um pouco. Mas cede.
E isso me apavora mais do que qualquer transformação física que meu corpo possa sofrer.
Porque agora sei o que é ter algo a perder.


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