Capítulo 2 - O Anjo Arrancado dos Céus Parte 2
— ARTHUR VOGRINTER! ARTHUR VOGRINTER! — a multidão gritava em uníssono, reverberando aquele nome com cada mísera força de seus corpos.
O clamor ensandecido, capaz de fazer os alicerces do colossal salão tremularem, era a única coisa provável de fazer Layla Zayn sorrir. Tal como sorria naquele momento. A alegria genuína que florescia naqueles lábios… era raridade.
Elta e todos os pesquisadores permaneciam impassíveis à comoção popular. Nenhum acompanhou o coro ou demonstrou-se interessado no que, particularmente, consideravam um escarcéu.
Todos se calaram novamente por imposição da figura que, agora sorridente, gesticulou do trono.
Com voz firme, proclamou: — Arthur Vogrinter, salvo por Elta Velgo, é a prova viva de que ainda resta esperança ao nosso mundo! Sua sobrevivência assegurou a continuidade da profecia!
Com um estalar de dedos, a pequena Libel, que havia permanecido silenciosa ao lado do trono, deu passos à frente. Manteve as mãos unidas na altura da barriga e ergueu a cabeça, tornando-se foco imediato das câmeras de transmissão. A feição indiferente lapidada em seu rosto permanecia enquanto preparava-se para falar.
Com toda a atenção para si, do público presencial e da audiência de milhões que sintonizaram nos canais televisivos e radiofônicos oficiais, ressoou sua voz, tomando conta do ar.
— Há 19 milênios, o Deus da Verdade descobriu em seus últimos momentos um fato aterrador. Uma profecia, ainda que incompleta, emergiu nas tapeçarias da velha civilização de Juno com seu auxílio. Nesses escritos, tecidos com fatos provenientes do firmamento da realidade, apresentou-se o prelúdio do apocalipse.
Nos telões surgiram corpos sem faces ou roupas, silhuetas brancas em fundo preto. Uma tinha cabelos verdes na altura do pescoço e a outra longos cabelos dourados.
— Os céus serão embebidos com um Branco Infinito e, através de uma fenda de ouro, duas figuras descerão às terras do mundo. A Besta Verde e a Besta Dourada, duas figuras de poderes inimagináveis que buscam o fim da realidade material!
Layla Zayn ergueu-se do trono, caminhando até a lâmina negra enfincada no quartzo. Estendeu sua mão, agarrando e retirado-a do chão. Apontou aos céus sua ponta e complementou na fala da ajudante:
— Contudo, há uma esperança: o Escolhido. Aguardamos por milênios o nascimento dele, incertos de quando o cataclísmico futuro profetizado nos atingiria. Mas, felizmente, o nosso salvador está vivo! Arthur Vogrinter atingiu os requisitos citados na profecia!
Uma breve estática nos telões foi seguida das exatas palavras finais contidas na tapeçaria.
Sob O Branco Infinito que se impregnará na existência, erguerá a espada o homem cujo domínio mágico abranja cada um dos 7 Elementos, apontando-a à carne exposta do Dourado.
E, mediante a lua negra, uma estrela azul nascerá na ponta de sua lâmina. Com tal força, expurgará da existência os invasores capazes de, numa única semana, desatarem cada um dos fios da realidade e levarem tudo que se há dentre os pilares da criação.
— Não sabemos os nomes e objetivos exatos das Bestas, mas é certeza que o dia dessa invasão chegará. Tudo dito pelo falecido Deus da Verdade era fato, e isso não se difere — explicou Libel.
— É destino de nosso messias, Arthur Vogrinter, matar esses invasores! — A expressão de Layla era de um orgulho profundo. — Não imaginava que veria isso tão cedo em minha vida, mas tive o privilégio de viver na mesma era que ele… Na verdade todos nós fomos agraciados com essa chance!
A cada palavra proferida, mais Elta Velgo incomodava-se. Ardia em seu peito, em seu âmago, uma vontade de falar, de erguer sua voz perante o mundo. Os incontáveis que suou, sangrou e chorou para salvar no infernal campo de batalha foram tratados como menos que nada.
“Como podem dar maior importância a esse moleque do que às milhões de vidas salvas na Guerra de Etinova…?! Dizer que meu maior feito é salvar esse príncipe…”
Layla, então, reafirmou seu papel enquanto governante da ZNI. Seus ditames férreos, que abarcavam o mundo como um todo, nasceram de um pedido e de uma intenção.
Fora designada pessoalmente por Rakka, o Deus da Calamidade, à missão de resguardar Arthur e o mundo. A paz requisitada pela divindade escarlate era prioridade máxima e, para cumprir com esse pedido, foi criada a primeira lei internacional:
1 – Sofrerá extermínio completo de cada cidadão em território nacional a nação que iniciar guerra injustificada contra outra.
A governante fazia questão de lembrar o mundo de sua força naquela reunião. Unida com Rakka, possuía força suficiente até para matar deuses.
Entretanto, um homem não se importou com nada disso por um momento.
“Chega…”
Elta deu um passo adiante enquanto ela continuava seu discurso. A serva da deidade mais forte não era capaz de apavorar aquele espírito já condenado.
— Cada lei que criei foi visando esse doce momento que vivemos. Só nesse mundo de paz o Escolhido estaria seguro em seus anos iniciais. Essa era a vontade de Rakka, pavimentar um caminho seguro para Arthur Vogrinter! — explicou, inebriada por seu ego.
A movimentação não passou despercebida aos seguranças. Colocaram-se de prontidão para intervir caso necessário.
— O nosso salvador tempos atrás acabou em uma situação de vida ou morte. Elta Velgo o salvou com seus poderes curativos! Esse foi o maior feito realizado por ele em vida! — O entusiasmo em sua voz desaguou nas palavras mais óbvias da noite. — Por ter salvo a esperança de nosso mundo, é Elta Velgo o Anjo!
Outro passo. Outro passo. Mais um e outro. Parou perto, sendo impedido de continuar por Libel. Um clima tenso se instalou de imediato na audiência. O olhar exaltado do pesquisador dominou os telões e televisões de cada canto da terra.
— Precisávamos de um Anjo que pudesse ser uma ferramenta útil ao salvador. Foi essa a razão da nova seleção. O surgimento da criança da profecia clamava pela intitulação de um dos gênios!
Layla demorou a entender a razão do grande público estar tão aflito. Quando notou o Anjo à frente de todos os candidatos, tendo o ombro segurado pela assistente, era tarde demais para impedir os questionamentos.
— Por acaso acredita mesmo que essa pessoa valha mais do que os 250 milhões que salvei, e que você não teve nem mesmo a decência de abrir a boca para falar sobre?!
O questionamento em tom acusatório fez o sorriso da governante se desmanchar. A troca de olhares causou calafrios a qualquer um que conhecesse muito bem o histórico daquela mulher.
— Velgo, não confunda as coisas aqui. Não me importaria mesmo que tivesse salvo na casa dos bilhões; Arthur Vogrinter salvará a existência como um todo. Acredita ser equiparável?
— Esqueça essa merda de profecia imbecil e olhe para a realidade por um momento! Esse pirralho não é mais importante do que ninguém! — Apontava para ela.
Um falso sorriso, incapaz de ocultar a raiva que fervilhava em seus olhos cor de sangue, floresceu nos lábios. Aquela lâmina negra estava endereçada, tinha destino certo.
— Falou dos meus medicamentos apenas para me bajular? Nem mesmo minhas contribuições às instituições humanitárias te importam? Se não pode reconhecer isso, eu nego o título de Anjo!
Um estrondo agudo antecedeu o clarão sangrento ofuscante. O ataque de Layla queimou a pele de todos os presentes ao impactar no salão. Pessoas com queimaduras tentavam segurar suas vozes desesperadamente para não serem alvos.
No ponto de impacto, continuava de pé o Velgo, com um buraco derretido no torso. Pouco puderam pensar sobre isso, pois o homem se curou. A espada negra, que o atravessou, se encontrava logo atrás dele. Empunhou a arma da inimiga e avançou fulminante.
“Preciso me segurar para não matar ninguém por acidente.”
Ela interceptou o ataque, segurando-o pelo braço, e ironizou: — Vou brincar um pouco com você. Se conseguir me fazer sangrar, vou perdoar tua heresia!
— Vai ser um prazer te fazer ter juízo!
Acharam loucura rejeitar o título e, mais ainda entre os crentes na profecia, menosprezar aquele que salvaria o mundo. Acompanhavam a transmissão com receio de que eles acabassem derrubando a fortaleza. Era provável.
O chão de quartzo tornou-se um mosaico de rachaduras. Os repórteres e convidados, temerosos nas bordas do salão, assistiam àquela demonstração de forças. Um borrão dourado e um vermelho, era apenas isso que conseguiam ver.
Os socos e chutes que antes resultaram apenas em pequenas rachaduras transformaram-se causadores de enormes crateras. Pedaços arruinados do tapete dourado despencavam pelas fendas profundas no chão.
Elta, com seu poder de gerar objetos temporários, infestava o espaço de lâminas translúcidas das quais Layla desviava e defletia com as mãos nuas. Os avanços frenéticos não traziam resultados.
Aumentou a aposta, intensificando seus ataques. O foco, que ia além dos limites humanos, tornava a precisão dos seus lançamentos ainda mais perfeita na verdadeira tempestade de lâminas que criava. O som cortante reverberava no ar junto dos estrondos, arrepiando quem via aquele evento.
Mas…
— É só isso que tem a oferecer? — Ela destruiu todas as armas com uma rajada de energia carmesim liberada das mãos.
Os esforços foram ineficazes para ambos os lados. O pesquisador curava qualquer ferida e a adversária apenas brincava sem medo de qualquer consequência.
Ao fim do primeiro minuto, Layla o agarrou pelo pescoço. De repente, o homem se viu afundado no chão, tendo a arma que roubou retomada pela dona legítima antes de ser atravessado na barriga.
— Sei que tentar te parar com isso é como enxugar gelo. Você sobreviveu a coisas piores, então vou ter que ser um pouco mais incisiva.
Nem mesmo um único arranhão podia ser visto no corpo dela. Não eram equiparáveis, nem de perto. E essa diferença ficaria clara com o próximo movimento.
Zayn cochichou algumas palavras, transformando a espada em uma lança. Um clarão, com o brilho de incontáveis sóis, destruiu as retinas de quase todos no salão. Ficaram cegos, e apenas os não afetados e os que acompanhavam de fora puderam ver os efeitos imediatos.
Layla encarava satisfeita uma cratera gigantesca que se estendia às laterais do ambiente. Por poucos metros, milhares escaparam da destruição. O quartzo rachado no entorno incandesceu, irradiando luz escarlate.
— Toupeira, sem timidez, pode sair daí! — gritou à beira do abismo que forjou, logo abrindo um sorriso satisfeito.
Com a ausência de uma resposta, a Deusa do Conhecimento se aproximou calmamente com as mãos levantadas.
— Posso ir buscar ele? Não acho que vá conseguir subir por conta própria.
— Tsc… Para um seguidor do Conhecimento, seu protegido é bem estúpido — reclamou ríspida, logo concedendo permissão para que ela descesse.
Benten seguiu às profundezas daquela cratera em um salto tranquilo. Chegou ao solo com a suavidade de uma pena.
— Tá vivo aí colega? — Ela cruzou os braços enquanto o observava, não muito preocupada.
Curava o corpo, fechando lentamente as lacerações. O processo curativo estava muito mais devagar que o normal. Tinha algo errado.
“Essa coisa debilitou meu Roha?”
A energia mágica parecia instável e revirada, como se não encontrasse padrão para fluir. Ao invadir a mente de Elta Velgo, a figura de cabelos azuis entendeu a situação e o motivo dos atos extremos tomados por ele.
— É, estou vivo e respirando… — balbuciou, colocando a mão no próprio peito para sentir o coração.
— É o suficiente. — Aproximou-se e ajudou ele a levantar, apoiando-o em seu ombro. — Olha só, não vou meter minha mão no fogo por você nessa. Da última vez que lutei com alguém tão poderoso… quase morri. Não pretendo repetir a dose.
Um pequeno dragão robótico surgiu na escuridão próxima. Os olhos azuis brilhantes iluminavam o ambiente. Era o meio de transporte daquela deusa, algo que Elta não via há décadas.
Memórias do passado, de quando se conheceram, cruzavam sua mente. O sangue que pingava do punho fechado reforçava suas memórias de quando era apenas alguém frágil sendo ensinado pela deusa.
Ainda continuava frágil de certo modo.
— Essa infeliz tratou a tradição de Anjo como um simples acessório de uma profecia… Não teve qualquer respeito pelo legado que foi passado entre tantas gerações. Isso é um ultraje aos cientistas que se foram! Existem pessoas que carregam esse sonho por conta de parentes amados, que se esforçam por isso… É algo importante demais para ser relegado a esse papel!
— Entendo perfeitamente sua raiva, mas baixa a bola. Você já vai morrer daqui uns meses. É esse o motivo da sua coragem repentina, não é? Se acalma ou você não vai voltar pra casa e ver seus filhos de novo.
Desde o começo, Elta entendia sua ida à ZNI como um ato inútil. Considerou o chamamento à seleção de Anjo como demorado, pois seus dias estavam contados. Uma doença incurável o acometia desde antes do início da viagem.
Aqueles eram seus últimos meses de vida.
Sua aceitação da ideia de treinar o filho tão cedo, apesar de reprovar a ideia de crianças tendo contato com combates, era por ter a certeza de que não teria essa experiência caso adiasse. Queria mostrar a ele a beleza contida no ato de curar os feridos e salvar as vidas inocentes.
Cada pessoa que se dispôs a ouvir e cumprimentar pelas ruas de Mazda, como um bom ouvinte, era porque sabia que talvez fosse a última vez que o veriam. Sentia que precisava deixar uma última impressão antes de partir. Não queria que fosse lembrado anos depois meramente como uma marca de remédios.
O homem que moldou a história recente era moldado pela incerteza. Nunca duvidou por um dia que lembrariam dele após a morte, mas essa certeza tão limpa não perdurou face a face com a morte.
Benten subiu com ele no dragão robótico, levantando voo na cratera, rumo à saída. O silêncio vindo de cima, por algum motivo, parecia mais aterrorizante que o do fundo.
“Se eu não conseguir fazê-la reconhecer meus atos… Arthur se tornará o foco, e minha maior chance de ser lembrado por milênios será apenas uma nota de rodapé nessa paranoia profética.”
O dragão emergiu do abismo, abrindo completamente suas asas para desacelerar. A dupla, alvo dos olhares atentos do mundo, desceu da máquina. Retornaram ao chão de quartzo que ainda brilhava em vermelho.
A governante balançava sua lança, aguardando que o homem dissesse qualquer coisa. No entanto, ele não abriu a boca para nada, apenas ficou estático fitando-a nos olhos.
Percebendo que o baderneiro não diria qualquer palavra, avançou em sua direção com passos elegantes. Sua lança foi apontada ao pescoço do homem, que não reagiu.
— Benten, em respeito à sua ajuda na modernização de Mazda, irei poupar seu seguidor desordeiro. — A arma tornou-se a mesma espada de antes.
— Agradeço por reconsiderar e garanto que não irá se repetir. — Reverenciou a figura antes de deixá-los a sós no que restava do local da batalha.
— Peço a todos os telespectadores: entendam que o que Elta Velgo fez aqui hoje foi um mero deslize. Rakka é capaz de perdoar os pecadores, e este homem é digno do perdão. O curador de nosso messias apenas precisa de correção, e isso será dado a ele. Celebrem a vida do novo Anjo! — Ela estendeu a mão, aguardando a resposta dele.
A imagem do sorriso cínico que se apresentava perante ele, e a mão estendida, trazia a irracionalidade de tentar atacá-la uma segunda vez. Mas, engolindo seu orgulho, deixou que ela guiasse aquele show. Um aperto de mão foi realizado.
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