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    Era por volta das 15:00 quando chegou aos ouvidos do jovem com a bela marca de nascença em formato de lua minguante o som de um pigarrear. Um homem esguio, de feições apáticas, aproximou-se da cela onde havia sido trancafiado. O observou por um instante e suspirou, um tanto preocupado.

    — O que foi? — perguntou o prisioneiro, tão apático quanto.

    — Preciso levá-lo ao Tribunal da Aniquilação. Fui encarregado de fazer isso sozinho. — Puxou as mangas da camisa que vestia, deixando seus braços à mostra. — Não acho que vá ser fácil fazer isso caso resista…

    — Não existe nenhuma razão para resistir. Lisbeth conseguiria me matar mesmo que a centenas de quilômetros dessa cidade. Escapar não é um opção realista. — Darian levantou do chão pedregoso da cela e bateu a poeira de suas roupas, rumando à porta de saída do espaço confinado. — Pode me levar sem qualquer preocupação.

    — É triste ver alguém tão novo tomando o caminho que tomou. — Destrancou a cela e o permitiu sair. — Mas… se contar onde estão as vítimas, talvez saia vivo dessa situação. É um pequeno conselho de minha parte.

    — Hehehe… Eu deveria mesmo ouvir conselhos de um militar que nem sequer usa uma armadura? — Apontou para o peito dele. — Sua camisa é proteção o bastante para você?

    — Metal convencional é tão fraco quanto uma folha de papel quando o assunto são pessoas poderosas. Não existe diferença prática. Se alguém for forte o suficiente para me matar, vai me matar não importa quanta proteção eu use. — Fez um gesto com a cabeça, o chamando para segui-lo.

    Os dois caminharam silenciosamente por um longe e estreito corredor. O cheiro forte de terra molhada que invadia o lugar indicava uma chuva, coisa que não era frequente na região. Com isso, Darian concluiu que havia algum sistema de ventilação próximo, o motivo do odor úmido invadir aquele espaço desconhecido; talvez algo que pudesse usar para fugir.

    “Fugir? Que tolice…”

    — Poderia responder uma pergunta?

    — Depende de qual seja. — Passou a olhá-lo com maior atenção.

    — Por qual razão se preocupou comigo? — indagou, tão incisivo que suas palavras desestabilizaram o homem.

    — Não me preocupei, do que está falando?

    — Sua dica de contar onde estão as vítimas, isso é um sinal de preocupação. — Soltou ar pela boca, uma risada contida. — Acredita que eu possa sair vivo de alguma forma, coisa que nem eu creio que possa acontecer.

    O homem aceitou aquelas palavra sem qualquer ímpeto de contrariá-lo. Virou o rosto, mantendo o foco no corredor novamente.

    — …O que pretende fazer?

    — Só dizer a verdade e está tudo bem, estou em paz com minha morte. Meu único erro foi ter falhado contra aquela garota da espada de gelo.

    As falsas memórias consolidaram-se com perfeição em seu cérebro. Não existiam mais traços, quaisquer que fossem, da consciência que antes habitou aquele corpo. Era um novo indivíduo, forjado para ser o culpado perfeito.


    Yunneh penteava os cabelos de Verion com delicadeza à beira da cama na hospedagem. Os fios eram desembaraçados a cada passada da escova, deixando-os mais soltos. Não eram tão bem cuidados ou hidratados quanto os da irmã — não era uma preocupação dele —, então ficavam muito volumosos.

    — Isso não acaba nunca?

    — Fica quieto, por favor, você vai ir pro tribunal comigo e eu quero você bonitinho lá.

    — Ah…

    Maika, a mulher que os trouxe de Aludra até a capital com sua Revelação, estava de pé no canto do quarto. Segurava uma bolsa com gelo contra a cabeça; sofria de uma terrível enxaqueca. Resolveu visitá-los por mera curiosidade, não tinha nenhum compromisso adicional além de transportar o grupo.

    Seus olhos púrpura fitavam a expressão desgostosa do pequeno enquanto ele tinha seus cabelos penteados. Isso a distraía um pouco das dores.

    — Maika, você também vai ir ver o julgamento? — perguntou Yunneh, dirigindo seu olhar a ela.

    — Não é um assunto que me interesse. Aliás, eu nem deveria estar aqui, meu chefe vai reclamar um monte no meu ouvido se souber que ajudei vocês. O Taigong é bem complicado com certas questões, mas é uma ótima pessoa.

    — É, lembro de você ter dito ontem que estava ignorando as diretrizes da sua organização. Essas tais diretrizes são coisa desse tal de Taigong?

    — Sim, porém prefiro não entrar nesses detalhes… É algo muito pessoal da nossa filosofia e conjunto de religiões, não é de bom tom espalhar por aí sem a permissão dele.

    — Tudo bem, desculpa se fui incômoda.

    — Nem se preocupa com isso, Yunneh.


    Um forte feixe de luz cegou por um breve momento. Abriu os olhos lentamente, avistando um grupo enorme de pessoas. Dezenas de homens e mulheres, espalhados por toda a área. O olhavam com sentimentos que variavam do nojo à raiva.

    Darian estava diante uma escadaria subterrânea que levava ao tribunal. Nem mesmo havia chegado ao destino final, mas já teve um certo gosto de como seria estar lá. Os olhares cruéis dos guardas que o cercavam eram um prelúdio do que iria enfrentar nos próximos minutos.

    O militar esguio parou ao lado dele e apontou o topo do longo caminho de degraus brancos. Não disse nada e se afastou, como quem não queria ser visto perto daquela figura, mesmo que todos soubessem que apenas fez o trabalho de levá-lo até lá.

    Seguiu pela escadaria em silêncio, admirando as chamas de grandes lamparinas nas laterais, que iluminavam naquele estranho local.

    Chegando próximo ao fim, ouviu vozes, muitas vozes e uma comoção explosiva. Queriam sua cabeça, e provavelmente a teriam, pois os julgamentos naquela nação não seguiam nem de perto os padrões do resto do mundo.

    Faces, inúmeros rostos que nunca viu em sua vida, passaram a encará-lo com ódio profundo, dúvidas e um medo arrebatador. Sua paz com a morte não o livrou de sentir um arrepio percorrer sua espinha com aquele mar de emoções tão fortes.

    O tribunal era enorme, cabiam lá 4500 pessoas. O espaço ia de tons cinzentos a tons claros por toda sua estrutura, não seguiam qualquer padrão. As pilastras que mantinham firme o grande espaço indicavam com perfeição o caminho que precisava seguir. Um padrão vermelho, imitando escamas de dragão, cobria todo o trajeto seguinte. Uma grande janela ao fim do caminho dava visão da chuva pesada que caía lá fora.

    “Aquilo…”

    Demorou a notar aquela forma, mas uma estátua de Quilionodora estava disposta no teto. A cauda serpenteava entre os pilares, e a face dracônica encarava o espaço com um olhar pesado de cima para baixo.

    Darian seguiu quieto, ouvindo gritos e ameaças sendo disparados de todos os lados. Era de se imaginar que tal reação ocorreria, porém, ainda assim, era desnorteante. Os ouvidos quase que zuniam com a barulheira do público inconsolável.

    À frente, uma elevação, o espaço onde precisaria estar. Lisbeth aguardava lá, com a máscara de obsidiana no rosto. O escuro uniforme militar contrastando com o púlpito branco em que apoiava seus braços.

    — Bem-vindo ao seu julgamento, garoto. — Apontou o púlpito branco no lado oposto.

    Posicionou-se no local requisitado e o silêncio se instaurou quando a governante daquelas terras ergueu sua mão.

    — Hoje, e agora, inicia-se o julgamento de Darian Mussiola!

    O julgado exibiu um sorriso que nem mesmo sabia o motivo de estar dando. Aguardava paciente pelos questionamentos que iriam o atingir como flechas nos próximos.

    — Isso está sendo possível pelos esforços de Yunneh Velgo, a filha do antigo Anjo que tanto fez por nosso povo! O legado do nome Velgo permanece grandioso nas mãos dessa jovem que, de certo, fará muito por nós. — Apontou para ela, que estava entre o restante das pessoas. — Afinal de contas, agora será minha pupila e receberá meu treinamento pessoal. Enquanto estiver viva, estará sob meus cuidados e a darei todo tipo de oportunidade de elevar o nome Velgo!

    Começou a bater palmas, e a multidão acompanhou o gesto de imediato. Yunneh ficou tímida com tanta atenção de repente, mas sorriu e acenou para todos. O rosto corado deixava claro que ela estava adorando aquilo.

    — Quilionodora me tornou semideusa por uma razão, por confiar a mim sua própria verdade. — Ergueu o punho fechado à frente da máscara obsidiana. — A rebelião é a verdadeira natureza universal. Todos que existam, e que desejam se rebelar, devem lutar contra as forças que os colocam de joelhos, mesmo que isso signifique a morte.

    Prosseguiu: — Yunneh é a expressão mais rebelde de nossos tempos, e tomo ela como meu braço direito pelos próximos anos. Suba aqui e fique ao meu lado, Velgo. Essa é minha vontade e por isso é a vontade de deus!

    Ela saltou, caindo diretamente sobre a elevação onde encontravam-se os púlpitos. Seus cabelos brancos logo viraram assunto entre as pessoas nos arredores. Foram novamente silenciados por um simples levantar de mão da semideusa.

    — O que quer que eu faça? — perguntou, entusiasmada.

    — Ainda que o garoto seja o culpado mais provável, precisamos arrancar uma confissão dele para que o povo aceite alguém com uma aparência tão mundana ser morto — cochichava no ouvido dela. — Eu poderia matá-lo sem mais nem menos, mas quero melhorar um pouco minha imagem.

    “Entendi… É a lei de Quilionodora que todos a ouçam sem questionamentos caso não possam vencê-la num duelo para tomar seu posto. Mas, mesmo que isso seja um ponto pacificado entre a maior parte da população, uma morte sem julgamento ainda seria capaz de incitar algum movimento contrário por parte dos que vivem aqui e não seguem esse deus”, pensou Yunneh ao balançar a cabeça afirmativamente.

    — Acho que vai ser fácil fazer ele falar algo — cochichou de volta.

    — A conversa tá boa aí? — ironizou Darian, sorrindo sem qualquer medo.

    — Calado! — Lisbeth elevou a voz, deixando todos do ressinto tensos.

    Ele passou a mão frente a boca, fazendo o movimento de fechar um zíper. Virou o rosto, ignorando todos para olhar a chuva através da janela.

    O desrespeito fez a semideusa querer agilizar o julgamento, iniciaria a sessão.

    Estava prestes a começar.

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