Capítulo 21 - A Injustiça Que Devora Parte 2
Esperavam ansiosos pelas primeiras palavras que seriam proferidas por Lisbeth naquele evento tão singular. Normalmente ela terceirizava a função de questionar algum suspeito, mas dessa vez estava lá em carne e osso, um evento incomum. Porém, mesmo que fora dos padrões, a ocasião pedia esse cuidado especial pela natureza dos atos debatidos.
— Antes de iniciarmos tudo isso, peço que todos mantenham o silêncio completo. — Lisbeth bateu a mão no púlpito, atraindo a atenção de Darian. — Seu compromisso agora não é admirar a chuva.
— Não imagino que tenha algo mais importante que isso agora. Queria poder correr descalço na lama, igual uma criança inconsequente… É uma vontade que surgiu na minha cabeça agora. — Ele riu com leveza e dirigiu seu olhar ao dela.
— Darian, Darian, Darian… — Uniu as mãos. — Você é suspeito de comandar o sequestro de 187 pessoas na última semana. Descobri o caso e encarreguei Yunneh Velgo de resolvê-lo com as próprias mãos. Minha nova aluna derrotou todos os membros desse grupo sozinha e o descobriu por lá.
— Foi até que fácil… — disse Yunneh, com um sorriso tranquilo estampado no rosto.
— Bem, ela disse que você assumiu com todas as palavras que de fato era o líder desses sequestradores. — A máscara obsidiana brilho em um tom vermelho escuro por um breve momento. — Isso é verdade?
— É, é verdade. Fui eu quem comandou esses sequestros — confessou sem qualquer receio na voz.
As memórias inventadas estavam atormentadas, um caos. A cada segundo que se passava, mais ansiava por dizer algo ruim para ser dado como culpado. Uma vontade incontrolável que desmantelava qualquer autopreservação.
— Onde estão essas pessoas? O que você queria com elas? O que você fez com elas?
— Queria… queria pegar algumas pessoas com poderes interessantes para que fossem usadas na minha organização. Só que nenhuma prestou para nada e eu acabei matando toda essa gente desprezível e sem propósito. — Desviou o olhar ao público.
Sentia sobre seus ombros o peso dos olhares se intensificar. Todos, absolutamente todos do recinto, ficaram abalados. Era a confirmação, para alguns de lá, de que seus entes queridos haviam sido assassinados por nada.
— Darian Mussiola, poderia afirmar isso novamente?
— Sem problemas…
Darian repetiu aquela afirmação angustiante e ultrapassou todos os limites. Disse, com uma alegria bizarra em seu semblante, que havia matado até mesmo uma garotinha que tinha 8 anos de idade. Disse o nome completo dela, Marie Sepoll Gannis; características físicas como seus cabelos ruivos, altura, peso. Tudo.
Ninguém conseguiu ficar calado e o tribunal se tornou um inferno. Lisbeth não pediu silêncio novamente ou se impôs naquele momento. O som desarmonioso de gritos furiosos e choro por puro desespero inundaram o ambiente por completo.
Mediante à quantidade incompreensível de sons, o culpado confesso batia palmas. Encheu seus pulmões de ar e berrou: — TODOS ESTÃO MORTOS!
O caos continuou por alguns minutos, até que a semideusa gritou, pedindo a atenção de todos. À contragosto, calaram-se novamente para que a governante falasse suas palavras. Todos queriam ouvir apenas uma coisa…
— Darian Mussiola está sentenciado à morte! — declarou com firmeza.
Parte do povo comemorou em uníssono, enquanto outra permanecia em lágrimas. Celebração e senso de justiça inflamaram os corações daqueles mais afetados pela situação. Pais e mães que tiveram aquela cruel confirmação de que não teriam seus filhos de volta sabiam que a morte de Darian não os traria de volta. Entretanto, sentiram um alívio momentâneo ao saber que ele teria aquele destino.
— Pode me levar, não importa mais…
— Morrerá por minhas mãos hoje à noite en…
— POR FAVOR, ESPERA! — Uma voz, a voz de uma velinha entre as pessoas que assistiam à terrível cena.
— Esperar? — Lisbeth virou o rosto para o lado dela, tremendo a cabeça de raiva.
— Eu tenho certeza de que meu neto é inocente!
Uma velhinha de pesados óculos redondos e cabelos grisalho virou alvo de cada um dos pensamentos daqueles milhares. A aparência frágil da mulher trouxe algum nível de pena entre as pessoas, mas, em maioria, queriam que ela se calasse.
— Como alguém que confessa tais atrocidades com tamanha alegria poderia ser inocente? — A semideusa arrancou a máscara, demostrando seus olhos castanhos. — Diga-me se tiver coragem.
A intenção assassina de Lisbeth era inescapável. Todos sentiram o Roha extremamente intenso engolir o perímetro. Sentiam-se ameaçados, do fundo de suas almas, mesmo que soubessem não serem os alvos.
A velhinha foi de lacrimejar para um choro desconsertante em questão de segundos. Ergueu sua voz, trêmula e apavorada, para dizer:
— Eu… Eu vi com meus próprios olhos esse garoto crescer! F-fui eu quem cuidou dele depois que a mãe dele morreu! — Os olhos ardiam com as lágrimas incessantes. — Eu estive ao lado dele o tempo todo, ele é só um menino simples, nunca fez nada de errado pra ninguém! Isso tudo está errado, vocês estão errados sobre ele!
“Eu conheço essa mulher?”, pensou Darian, um tanto confuso. Nada lhe vinham em mente, porém, de alguma forma, lembrava daquele rosto e seus traços.
— Não dá pra ficar quieta? — perguntou, insensível, Yunneh.
— Garota amaldiçoada, isso é armação sua, não é?! — A voz embargada, quase incompreensível. Apontou para o rosto da semideusa. — Vocês inventaram isso pra matar o meu neto e fingirem que acharam um culpado! É tudo uma farsa, uma grande farsa! Como uma seguidora de Quilionodora, nosso querido deus, pode sustentar uma mentira tão vil contra um jovem para cobrir sua própria incompetência?
Os olhos de Lisbeth tomaram a cor ciano, brilhantes, em frenesi. As pessoas ao redor da mulher começaram a correr, bater um no outro e até a se pisotearem para saírem de perto. A expressão dela tornou-se tão ameaçadora quanto a do dragão, a perfeita representação humana daquela fúria.
A semideusa não era capaz de colocar em palavras tudo que sentia ao ser contrariada. Contudo, o coração acelerado e a tremedeira de suas mãos falavam por si só.
Ainda assim, a velhinha continuou: — Filha do antigo Anjo, por que aceitou fazer isso? Por que colocou meu neto nessa situação? Você acha que seu pai se sentiria orgulhoso disso?
Darian esfregava as têmporas, buscando alguma coisa que escapava entre seus pensamentos. A certeza crescente de que havia uma memória ao seu alcance, mas que não conseguia rememorá-la, torturava como um espinho cravado na carne.
“Esse rosto… Ela me conhece mesmo? Parece preocupada comigo…”
“Isso faz algum sentido? Argh… tem algo estranho aqui, tem algo errado.”
Uma lágrima escorreu pela bochecha dele, o fazendo ter um calafrio terrível, como se algo gritasse em seus ouvidos para correr e impedir Lisbeth de atacar aquela senhora. Suas pernas se moveram involuntariamente. Acabou de braços abertos, no caminho entre os dois.
— Não mexe com ela, sua desavença é comigo e unicamente comigo — afrontou, retribuindo o olhar ameaçador sem qualquer pingo de medo.
Um clarão de luz cegou todos temporariamente. Lentamente abriram seus olhos, avistando uma cena grotesca. O corpo de Darian havia sido empalado por um grande obelisco de obsidiana, tão alto que atravessava o teto. Seu torso estava totalmente queimado, irreconhecível e tomado de pequenos metais que o público carregava.
A semideusa quebrou a estrutura e arrancou o cadáver de lá, levando até a avó do garoto manipulado. Pôs seu corpo diante a ela, que desabou em prantos.
— Velha, não importe o quanto você acredite que seu neto é alguém maravilhoso, ele na realidade era um criminoso nojento, um assassino de crianças. Pessoas assim merecem morrer — disse Yunneh, com um sorriso orgulhoso no rosto.
— Saia daqui. Em respeito à coragem desse verme, te deixarei viver. — Mascarou-se novamente e deu as costas para ela.
A Velgo via o desespero daquela pobre senhora, e tudo que conseguia sentir era uma indiferença total. Apenas tinha olhos para o futuro que estava adiante, Lisbeth a abraçaria como discípula. O que mais poderia importar afinal de contas? Precisava ficar forte.
Não tomou qualquer iniciava para ajudar as pessoas que se machucaram no tumulto, foi Verion quem o fez. O garotinho passou a curar as pessoas pisoteadas e empurradas, pedindo para que tivessem calma.
“Tem algo pior ainda no olhar dela dessa vez…”, pensou o irmão, sentindo um aperto no peito.
Quando Yunneh Velgo se lembrar da verdade, doerá.

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