Capítulo 22 - Creio em Ti
— Nossa, que pena que só posso imaginar o que ocorre dentro daquele tribunal — balbuciou Bel, tranquilamente com cabeça repousada em uma mesa.
— Tio, posso comer mais sorvete? — disse Marie Sepoll Gannis, a suposta criança morta por Darian.
— Marie, já disse que não sou seu tio. — Ele apontou para o dono do estabelecimento onde estavam, pedindo por mais sorvete.
A garotinha ruiva olhou para o homem de longos cabelos brancos com descontentamento.
— Posso voltar pra casa? A mamãe vai ficar preocupada assim…
— Não pode, agora você vai trabalhar pra mim até eu acabar com meus compromissos. Mas pode ficar feliz, vou te dar todo tipo de comida que você quiser. Seus pais eram pobres, né? — Acariciou os cabelos dela. — Te darei tudo que quiser se puder me ajudar, coisas que eles jamais te dariam.
— Não quero…
— Você vai mudar de ideia alguma hora — respondeu, risonho. — Seu poder é quase tão útil quanto o da escritora laranjinha…
O celular de botões que estava em seu bolso vibrou. Pegou e o atendeu, era novamente a informante, Siralia Okeron.
— Vou iniciar minha hibernação nos próximos minutos, então serei objetiva. Seu plano de… fingir que Darian era o líder de nossa organização serviu muito bem. Pude averiguar que as pessoas daí estão satisfeitas com esse desfecho e nem mesmo Lisbeth pensa sobre investigar qualquer coisa a mais.
— Ora, qual foi o desfecho, minha querida ladra de memórias?
— Darian foi morto.
— Uui, que rápido! — Ajeitou-se na cadeira. — Uma perguntinha, qual dos nossos recrutas mais fortes está por perto?
— Humm… Lya Seshat.
— Ora, a laranjinha? Que conveniente, queria mesmo vê-la. Poderia contactá-la por mim? Ela nunca lembra de carregar o celular.
— Sem problemas, darei um jeito de falar com ela.
— Antes de desligar, só uma última questão: como está sendo a adaptação da Mirya Velgo aí em Raptra?
— Nada de interessante para destacar, apenas aceitou a situação e está cooperando.
A ligação foi encerrada.
Era começo de noite e a chuva ainda caía forte pela região. Yunneh, Jeremiah e John não sabiam onde Verion havia ido parar no meio daquele clima tempestuoso. Procuraram pela hospedagem a primeiro momento, mas logo entenderam que ele estava fora.
A cidade era grande e o clima não ajudaria a encontrá-lo. Era melhor esperar a chuva enfraquecer ou parar totalmente. Bebiam o amargo café de John para se aquecerem enquanto aguardavam.
O céu que pela manhã tinha um azul belo, quase que celestial, tornou-se cinzento e escuro. O mar de nuvens carregadas acima e os ventos uivantes tiravam a paz dos moradores. Até mesmo as ruas largas de Sirius alagavam naquele tipo de tempo.
Gotas caíam, batiam contra as janelas, lembrando a população de que podiam acabar perdendo seus móveis e outras coisas valiosas caso o nível das águas subisse muito. E mesmo em meio aos trovões assustadores no céu, uma figura caminhava.
Verion seguia cabisbaixo, portando um grande guarda-chuva preto. Seus sapatos estavam submersos, sentia a água fria em seus pés sem se importar com os arrepios.
“Preciso ir logo, ela deve estar lá…”
Ele seguiu pelas ruas, batendo de casa em casa para perguntar onde era o cemitério. Olhavam com suspeitas para o garoto, mas logo o diziam as direções que deveria seguir. Sua expressão triste, e ao mesmo tempo determinada, dava a entender que ele havia perdido alguém importante e precisava chegar lá.
A chuva se intensificava junto aos ventos, o guarda-chuva ameaçando quebrar com aquela força. A escuridão tomou ainda mais forma com o avançar da noite. Após sair da capital, foi por uma estrada de terra batida, afundando seus sapatos no lamaçal frio.
Sob a luz da lua, avistou o cemitério de Sirius. Grandes e imponentes árvores podiam ser vistas através das grades metálicas altas que protegiam o espaço.
“Lá…”
Um único foco luminoso pôde ser avistado, e foi ele que Verion seguiu sem pensar duas vezes. Passou pelo portão e rumou à luz, acabando por encontrar o que já esperava. A avó de Darian.
A mulher estava ensopada, suas roupas e cabelos grisalhos totalmente molhados. Ajoelhada na lama, segurava uma lamparina que já dava seus últimos sinais de vida. A chama volátil lutava para manter-se acesa.
— Ei. — Verion a cobriu com o guarda-chuva, ficando ao lado dela.
Não houve resposta, ela apenas continuou olhando para a lápide adiante. Não tinha nada de especial nela, nem mesmo as inscrições que jaziam nas outras lapides. Uma mera pedra lapidada e sem nome.
Ele permaneceu lá, protegendo-a da chuva sem dizer qualquer palavra por incontáveis minutos. Cada gota pesada batia como um soco contra o tecido do objeto que os protegia.
“Ela vai ficar doente se continuar aqui…”
— O que você quer aqui? — perguntou a senhora, quebrando o silêncio.
— Só queria saber como você estava e dizer uma coisa… Peço desculpas pelo que minha irmã disse. Essas desculpas não valem de muita coisa, mas…
— Você também é da família Velgo?
— Sim.
— Que bom saber que alguém de lá ainda tem um coração bom…
— Olha, eu acredito em você. Tem algo nessa situação que não consigo aceitar. Vi o Darian agindo diferente daquela postura estranha que ele teve durante a maior parte do julgamento quando foi te salvar. — Segurou o guarda-chuva com mais força. — Eu acho que ele era inocente de verdade.
— Ele é inocente mesmo! Sinto isso no meu coração, mas nem eu saberia explicar totalmente como.
— Moça, vamos sair daqui, por favor. Não tem mais nada a ser feito nesse lugar e eu quero conversar com você… — Colocou a mão no ombro dela.
A mulher demorou a tomar iniciativa, mas se levantou. Verion pediu para que ela segurasse o guarda-chuva, pois não conseguiria protegê-la agora que estava de pé. Com o objeto em mãos, ela viu o rosto dele pela primeira vez.
— Você é muito especial… — Passou a mão no rosto dele com cuidado. — Seus olhos lembram os do seu pai; conheci ele na época da guerra. Você tem o mesmo brilho que ele, e é bem maduro pra sua idade.
— Acho que sou assim por causa do meu pai.
— Sim, ele deve ter te educado muito bem, né? — perguntou com um tom de voz mais meigo.
— Não desse jeito, acho que foi magia mesmo. Eu sinto que seria burro igual uma porta se não fosse isso — respondeu com casualidade, trazendo um sorriso fraco ao rosto da senhora.
— Vamos sair daqui.
O interior da casa dela era quentinho, aconchegante. A madeira da lareira estalava com um fogo intenso que trazia conforto ao ambiente. Verion, sentado no chão e encostado em um sofá, olhava para as chamas.
A sala da casa era simples, uma mesa com um único retrato, duas cadeiras e um grande sofá vermelho sobre um tapete circular. Alguns vasos com plantas, todas de aparência frágil, ficavam nos cantos do cômodo.
Via com curiosidade a escuridão pesada nas partes onde a luminosidade da lareira não era capaz de alcançar. Aguardava a volta dela, seria por um corredor escuro que ficava logo à direita na casa.
A chuva continuava.
— Voltei… Foi difícil fazer isso no escuro. — Segurava uma lamparina na mão esquerda e uma bandeja na mão direita.
— Sério, não precisava fazer isso — disse, sem jeito. — Seria melhor que a senhora descanasse.
— Não se preocupe tanto comigo. — A bandeja foi colocada na mesa, tinha alguns pães recém-feitos. — Quero que você se sinta bem aqui, é o mínimo que eu poderia fazer pela única pessoa que visitou o túmulo dele também.
— O-obrigado. — Levantou do chão e foi à mesa pegar um pão.
Ainda estava muito quente, sentia na pele, mas era um calor a qual estava acostumado. A senhora também pegou um e se sentou no sofá, logo sendo acompanhada por ele. Ficaram lado a lado comendo por um pequeno tempo.
— Meu nome é Karina Mussiola.
— Verion Velgo.
— O que queria conversar comigo? — Tentava ocultar, em vão, as expectativas que tinha com aquilo.
— É estranho, mas eu tenho um motivo pra acreditar que seu neto é inocente. Recentemente eu descobri que existe alguém com a capacidade de alterar memórias. Não sei quem foi exatamente… mas fez isso com meu pai também de algum jeito.
Ela conectou rapidamente os pontos e entendeu que esse alguém poderia ser o causador dessa mudança repentina em seu neto, e talvez até em Yunneh de certa maneira. Tendo concluído isso, focou-se no ponto seguinte.
— O Anjo teve as memórias modificadas?
— Não ele, as pessoas ao redor dele tiveram as memórias alteradas com relação a ele. Não sei se deveria te contar isso, mas meu pai não morreu de uma doença comum como todos acharam que foi. Meu pai foi amaldiçoado, até ficou com os cabelos brancos, mas ninguém que viu ele nos últimos meses de vida se lembra dessa mudança.
— Tem certeza disso?!
— Sim, achamos no diário dele. — Verion abaixou a cabeça, olhando para o chão. — Talvez quem fez todos acreditarem que ele ainda estava normal foi quem fez isso com seu neto.
— Tem alguma pista de quem fez isso? — O olhar dela, por de trás dos óculos, era de medo.
— Algum deus com uma espada de lâmina serrada, pelo menos acreditamos que seja isso. Talvez tenham outras pessoas com esse deus, mas é tudo que sabemos até agora além de que ele também quer nos matar.
A velhinha retirou os óculos e passou a observar o fogo com a vista embaçada. Aquelas novas informações tornavam tudo ainda mais difícil em sua cabeça. Parecia uma gigantesca conspiração, até mais que acreditar que Lisbeth havia forjado um jeito de culpar Darian.
— E-eu entendi a situação da manipulação de memórias… Também acredito em você, garoto. — Engoliu em seco. — Mas mesmo assim, nunca vou ser capaz de perdoar sua irmã, levarei esse rancor até o último dos meus dias.
— Está no seu direito, faz sentido que pense assim…
— A mãe dele morreu na guerra quando a nação vizinha nos invadiu. Perdi minha filha que tanto amei e consegui seguir em frente com o Darian… Toda vez que via o rosto dele, lembrava dela e isso me trazia um pouco de paz; ainda tinha parte dela ao meu lado. Usei meu tempo, nesses 21 anos que ele viveu, para dar uma vida digna, fazê-lo sorrir…
Verion viu o rosto dela mudar para uma expressão de quebrar o coração. As lágrimas que escorriam e caíam pelo rosto de Karina, ele limpou carinhosamente com a mão.
Prosseguiu: — Mas foi tudo em vão… eu perdi os dois, perdi tudo que me motivava continuar vivendo nesse mundo confuso e doloroso. Só queria ter um pouco de paz, mas a vida continua batendo cada vez mais… Queria que Quilionodora me levasse logo, quero deixar esse mundo!
— Não fala isso! — Verion a abraçou.
Em contato com ela, pôde sentir quão rápido seu coração batia. Estava prestes a ter um colapso. Precisava fazer algo a respeito imediatamente.
— Vergarten! — gritou, assustado, envolvendo suas mãos e braços em um fraco brilho dourado.
Aquele poder não podia acalmar um coração, porém podia curá-lo, e foi isso que fez. Deixou o coração no melhor estado possível, pelo menos para a diminuir a chance de algo pior acontecer. Não podia fazer nada além disso naquele momento.
— Não tem mais razão para estar aqui…
— Sempre existe uma razão para viver, e eu sei disso! — Apertou mais ainda no abraço. — Até sabendo que tem um deus querendo me matar, e sabendo que isso provavelmente vai acontecer mesmo que eu lute contra isso com unhas e dentes, ainda quero continuar!
Verion pediu com todas as suas forças antes de começar a chorar como ela: — Quero viver e fazer esse deus pagar de alguma forma por tudo que ele fez! Por favor, fique viva pelo menos para me ver tentar pegá-lo… Para vingar seu neto. Por favor, por favor…
Karina não via qualquer razão lógica para querer viver, mas seus sentimentos foram mais fortes que o senso. Queria perguntar, cara a cara, para esse deus o motivo dele ter feito coisas tão repugnantes como matar o Anjo e empurrar seu ente mais precioso para o abismo daquela forma. E para isso, precisava continuar firme, trilhar um novo caminho.
Verion sentiu-se abraçado, seu gesto foi retribuído em silêncio. A partir daquele momento, aquela mulher o trataria como um segundo neto, querendo vê-lo conquistar o improvável.
— Seu pai sentiria orgulho de você, é mesmo uma pessoa tão doce quanto ele…
Os raios de sol da manhã passavam entre as nuvens, banhando com luz o solo lamacento e o gramado baixo. O som de cigarras, do farfalhar das árvores e dos pássaros no cemitério deixava o ambiente muito diferente de sua versão obscura à noite.
Verion tinha a cabeça protegida do calor por Karina, que segurava o guarda-chuva ao seu lado. Abaixado, plantou uma rosa diante do túmulo sem nome.
— Espero que esteja tudo bem, onde quer que você esteja agora… Vou fazer de tudo para poder limpar seu nome e fazer todos entenderem a verdade.
Karina pegou em mãos uma foto, a que estava no retrato de casa. Ela e a filha, sorridentes. A foto estava um pouco avariada por umidade, porém ainda bela.
— Obrigado Verion… Vamos lá?
— Sim.
Yunneh andava em círculos no quarto da hospedagem.
— A chuva parou, mas não faço ideia de onde procurar ele! — reclamou, agitada.
— Conhecendo ele, deve estar comendo uma melancia em algum lugar — disse John.
— O Verver é esperto, ele vai vol…
A porta do quarto foi aberta com um chute e Yunneh deu pulo, arrepiada como um gato assustado. Verion e Karina entraram no quarto.
— ELA VEM COM A GENTE!
— MAS QUE PAPO É ESSE?!

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