Vila de Harlon, 25/04/029, às 12:37.

    “Calma.”

    Os lábios ressecados de uma mulher acamada deixavam escapar breves grunhidos de dor, enquanto uma agulha entrava e saía da pele de seu braço, suturando um corte profundo. Suor escorria por sua testa, tentava se controlar para não tremer e atrapalhar o processo.

    Um homem de cabelos levemente grisalhos, com olhos focados através de óculos redondos, trabalhava meticulosamente. Evitava prolongar aquele sofrimento, fazendo tudo da melhor forma possível. Terminou o serviço cuidadosamente e enfaixou o braço dela para evitar o risco de infecções.

    Com um suspiro pesado, a cabeça baixa, guardou a agulha cirúrgica e outros equipamentos em uma maleta branca. Sentiu então o coração disparar, como se estivesse na garganta.

    “Continua se repetindo, mas está tudo bem… Posso me preocupar e temer pelos outros, desde que seja somente ao finalizar minha função.”

    — Sinto muito por qualquer dor que não pude evitar — disse, ajeitando os óculos com um gesto trêmulo e apertando a maleta. — Preciso ir. A esterilização dos equipamentos para os próximos pacientes não pode esperar.

    — Tudo bem Mark… sei que só havia um restinho do anestésico — respondeu com voz fraca, fechando os olhos para descansar. — Fui poupada de sofrer o pior. Minha verdadeira preocupação são pelos próximos tratados, que nem isso terão. Sinto que não tenho direito de reclamar.

    Nenhuma resposta foi dada pelo médico; apenas saiu da casa dela e fechou a porta. Sentiu algo como um estalo por dentro da cabeça, algo recorrente quando seu coração acelerava. Apertou o passo para chegar logo em casa.

    “É melhor que ninguém me veja no caminho… Seria péssimo ter que recusar um tratamento por ainda não ter limpado minhas ferramentas.”

    Caminhou pelas rua de brita da vila, onde casas de todos os tamanhos e formas podiam ser vistas, misturadas sem ordem aparente. Madeira, pedra, tijolos e outros materiais, a variedade era a única constante.

    O sol castigante do começo da tarde parecia querer cozinhá-lo vivo naquele ponto. O suor em suas vestimentas as tornaram desconfortáveis, grudadas em sua pele. Colocava regularmente a mão no pescoço, checando a pulsação.

    Manteve-se nas ruas que sabia serem menos movimentadas para não encontrar alguém. No entanto, por conta disso, ninguém pôde o ajudar quando cambaleou e caiu com tudo. A cabeça foi contra o caminho de brita escaldante. Sentiu um ardor terrível com o quão quente estavam as pequenas pedras.

    “Sangue…”

    Respirou fundo, recuperando o fôlego antes de recolher a maleta com dificuldade e sair daquele inferno tátil que queimava a pele.

    Chegou em casa poucos minutos depois, com uma forte dor na região da têmpora. Olhou-se no espelho da sala de casa, enxergando a ferida da queda.

    “Superficial.”

    Abriu a maleta e pegou um pano simples para limpar o sangue. Enquanto realizava o procedimento, barulho de passos, vindos do corredor, se aproximaram. Uma mulher alta de cabelos escuros e alaranjados apareceu na sala e correu até ele.

    O significado das palavras que ela falou passou batido por ele, não entendeu coisa alguma. Sua mistura de sensações perturbadoras e preocupação o deixaram com os pensamentos fora da realidade por completo.

    Dentre os devaneios trazidos pelo cansaço e ansiedade que o devoravam como chamas, qualquer significado externo ao seu objetivo primário ficava confuso como um grande borrão. Esfregava o sangue vagarosamente, o olhar perdido no reflexo dos próprios olhos.

    — Mark, você não tá me ouvindo?! — Ela o segurou no ombro, sentindo imediatamente a tremedeira que dominava o médico.

    — D-desculpa Maria… — murmurou, recobrando sua noção.

    — Você precisa descansar um pouco!

    — Ainda restam muitos feridos esperando atendimento… Não existe chance alguma de eu descansar agora. Só preciso lavar as coisas com álcool e água, e voltar logo. — Ao terminar de limpar o sangue, apanhou uma gaze e uma atadura.

    Maria o ajudou a cobrir o ferimento adequadamente diante do espelho. Viu de perto o rosto dela e o próprio reflexo adiante. A expressão preocupada no semblante dela gritava o nível de sua inquietação com a situação.

    “Aquele anestésico dos Velgo acabou no estoque… A única coisa que sobrou foi um pouco de morfina. Ela ainda está boa?”

    “Mas… não posso simplesmente usar morfina em crianças ou em qualquer pessoa sem ter plena certeza de seus históricos médicos.”

    “Que droga, se eu não fosse o único médico da vila poderia ter um conhecimento mais amplo da população! Sem ter esses detalhes posso acabar empurrando alguém para uma dependência química ou causar um problema respiratório.”

    “Esses riscos… eles valem pela mitigação da dor?”

    Teve seu rosto firmemente segurado por Maria, que o encarou com seriedade.

    “Seus olhos continuam lindos…”

    — Fica aqui, por favor, só descansa um pouco primeiro.

    — Não tenho o direito de descansar enquanto outras pessoas estão em perigo. — O médico abraçou a mulher, deprimido. — Aquela explosão durante a madrugada foi a pior coisa que poderia acontecer nessa vila.

    — Sei como se sente, mas precisa respeitar seus próprios limites também. Chega de se martirizar em toda crise que acontece nessa vila. Você nem mesmo deveria estar lidando com isso tudo sozinho! A antiga médica da vila só foi embora pela insensibilidade do prefeito. É culpa dele que você esteja sozinho.

    — Argh… Me escuta! Me escuta! — berrou, desesperado, e parou de abraçá-la. — Não me importa que esse cenário não seja o ideal e que eu esteja sozinho. Eu faria o dobro pela Madallen, e eu enxergo cada criança dessa vila como um dos meus filhos…

    O homem começou a lacrimejar e passou a caminhar em direção ao porão da casa, local de seu estoque principal. Maria cerrou o punho e desviou o olhar, trêmula.

    — Mark, você não dormiu nada à noite! — Apontou para o rosto dele. — Faria isso por todos como se fossem nossa filha, mas se acabar morrendo durante isso, que pai ela terá?

    “Nossa vida particular não importa mais que a de dezenas de pessoas.”

    — Ela aguenta — respondeu secamente, descendo ao sombrio porão.

    Seus passos irregulares, às vezes barulhentos, outras vezes leves, o levaram ao espaço obscuro. Tateou os arredores, encontrando e puxando a cordinha de seu sistema de iluminação. Uma lâmpada a gás, muito intensa, ligou-se no ambiente, atravessando a escuridão.

    Viu-se diante da velha mesa em que organizava suas coisas e colocou sua maleta sobre ela. Um peso em suas pálpebras tentava o arrastar para o sono profundo. Olhou os arredores do porão, avistando suas dezenas de caixotes de madeira.

    “Não queria recorrer a isso, só que agora não importa mais.”

    Pegou uma seringa em um dos caixotes e foi até uma extremidade que não costumava frequentar por saber dos efeitos colaterais pesados que aquelas substâncias podiam ter. Encheu a seringa rapidamente com uma droga estimulante e injetou sem qualquer medo.

    Demorou alguns instantes, mas a enxurrada de sensações veio. O cansaço se esvaiu tão rápido que pareceu nunca ter existido, porém, em contrapartida, seu coração acelerou ainda mais. Brutais palpitações o deixaram em pânico achando que teria um infarto.

    Foi ao chão, arrastando-se em surto. Era difícil de respirar, como se sua garganta estivesse sendo pressionada. O que era apenas um lacrimejar virou uma crise choro e uma gritaria irrefreável. Batia na próprio peito, jurando que isso iria solucionar a questão.

    Ele escutou o som dos passos de Maria indo ao porrão. Não conseguia para de gritar, a garganta seca tornava ainda mais agoniante. Os barulhos repentinamente pareceram maiores e maiores, e o espaço ao redor confuso, como se não encontrasse mais padrão em nada.

    “Que lugar é esse? Que lugar… lu… lugar. Onde eu estou?!”

    Começou a arranhar o próprio rosto e, logo, foi impedido por Maria que o abraçou e passou a gritar com ele palavras que já eram inalcançáveis para sua percepção.

    Mais rápido e mais rápido, sua ansiedade, o medo, a falta de sono, a fome, e a droga, tudo se uniu em uma sensação infernal.

    Empurrou a esposa, não entendia mais que era ela lá. Seu corpo em colapso seguiu até a mesa, onde suas mãos incontroláveis recolheram um recipiente de álcool e um de água. Abriu a maleta e manuseou suas ferramentas com imprudência, ferindo Maria.

    A mulher se afastou, assustada com a cena e pressionando o corte feito em seu braço. O sangue manchou suas roupas brancas, trazendo ainda mais noção da quantidade perdida. Maria passou a ignorá-lo e revirou os caixotes para encontrar gaze e ataduras para fechar aquilo provisoriamente.

    Quando ela notou, Mark havia partido.

    O médico seguiu correndo pelas ruas de forma assustadora e desordenada por minutos a fio, até que finalmente a parte mais pesada do efeito se foi, deixando-lhe novamente consciente de suas ações.

    “A maleta, a male…”

    Abriu, checando que tudo estava esterilizado como pretendia ter feito.

    Questionou-se de quando havia feito isso, porém logo prosseguiu com seu objetivo apesar de uma dor latejante na cabeça. Tratou outros ferimentos, agora sem anestesiar ninguém. Por cinco vezes, costurou feridas entrando em seu estado completo de concentração.

    Era como se toda sua consciência e inseguranças fossem deixadas de lado para um processo quase que mecânico. Nem mesmo os gritos e choros de alguns o tiravam dessa precisão. Mas, no instante em que terminava, cada sensação voltava.

    Pediu perdão pela dor causada e retornou, frenético, até em casa. Esterilizou os equipamentos novamente, acabando por não encontrar Maria em lugar algum. Recolheu toda a morfina que tinha e levou em uma segunda maleta com o material necessário para aplicar.

    “É-é melhor que eu pergunte aos familiares sobre usar ou não…”

    A Definição da Aniquilação, os poderes dados aos seguidores de Quilionodora, incluíam poderes regenerativos, porém, necessitando de um certo acúmulo de Roha para funcionar. As pessoas mais fracas, abaixo de um certo nível, não tinha essa opção.

    A proteção da deidade nesse caso meramente desacelerava os sangramentos e podia manter órgãos funcionando em situações extremas. Com base nisso, Mark acreditava ter chance de cuidar de todos a tempo caso corresse com seus cuidados.

    Permaneceu nesse vai e vem por horas ininterruptas de tratar um grupo de pessoas e voltar para casa. Enquanto cuidava de mais pacientes, já às 16:00, acabou cometendo um erro grotesco por conta do cansaço acumulado.

    Não entendeu como ocorreu, estava perdido demais no ciclo que parecia infindável. Apenas notou quando sentiu uma dor aguda e escabrosa. Acabou cortando um de seus olhos com uma tesoura cirúrgica.

    A família da casa que ele atendia entrou em pânico e tentou ajudar de alguma forma, mas nada puderam fazer. O homem apenas caiu desmaiado, com alguns últimos pensamentos.

    “Sangrar… isso me lembrava de que sou alguém.”


    Nas proximidades, Lya Seshat e uma mulher de cabelos roxos escuros caminhavam rumo a Harlon. A escritora segurava a versão original de seu livro mais famoso, e a figura ao lado brincava com um ioiô, descontraída.

    — Precisamos encontrar uma caverna propícia para o ritual. O tempo limite está chegando, temos que trazer ela de volta dos mortos.

    — Sei muito bem disso… — disse Lya, forçando os dedos contra a capa dura.

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