No começo da noite, após se separarem, começou a operação na vila.

    Mark encontrava sobreviventes fisicamente aptos para ajudá-lo e pedia para libertarem as pessoas soterradas pelos escombros. Cuidava delas, apenas os primeiros socorros para que não morressem, entregando a promessa de que um Velgo chegaria em breve.

    Existiam inúmeras vítimas com problemas que não tinham solução pela medicina convencional. Pernas, braços, até o movimento completo do corpo se perdeu para alguns. Verion era a única mínima esperança de que poderiam volta a ter uma vida normal.

    Enquanto Mark e os populares trabalhavam em conjunto para a mitigação de danos, Verion e Jon repetiam a mesma lógica do outro lado da vila. O guia removia pessoas dos escombros e o garoto as curava com rapidez.

    O Velgo pedia a cada um que salvava: — Por favor, ajudem a gente a desenterrar as pessoas dessas casas e tragam elas para mim!

    A maioria aceitava o pedido, partindo para trabalhar ao lado de Jon no resgate. O processo era cansativo e delicado. Apesar da Definição da Aniquilação de Quilionodora dificultar as mortes, ainda precisavam tomar cuidados para não acabarem matando alguém acidentalmente.

    Quem estava mais suscetível à morte por falha humana na remoção de escombros eram crianças e idosos. Os com menor volume de Roha no corpo eram frágeis como coelhinhos indefesos.

    — Por aqui! — gritava Jon, chamando os voluntários que carregavam pessoas em seus braços.

    Uma das ruas principais da vila havia se tornado o local de tratamento e repouso. Pessoas eram levadas, fazendo uma fila para que fossem curadas. O brilho dourado na mão de Verion era uma visão tranquilizadora em meio ao caos.

    Ele passou pouco mais de vinte minutos curando aquelas pessoas do lado direito da vila, e partiu para o esquerdo quando ninguém mais pareceu chegar com o grupo formado pelo guia. Enquanto ele seguia em alta velocidade para a outra área, uma gélida garoa se iniciou.

    As fraquíssimas gotas de chuva caíam pelas ruas, formando lentamente uma mistura rala de lama e sangue. Ajudava a apagar as chamas mais enfraquecidas, mas nada fazia contra o fogo alto que ainda persistia em algumas casas.

    Verion colocou a mão no peito e notou o coração em um ritmo anormal. Sentia formigamento nos pulsos.

    “Espero que seja só cansaço…”

    Abriu a bolsa que carregava no ombro enquanto corria, dando uma boa olhada nas poções que ainda tinha. Três de sua experimental e duas Quilis.

    “Já foram duas hoje… É melhor evitar.”

    — É ele!

    — Por aaaqui! Rááápidoo!

    — Velgoooo!

    Dirigiu-se aos chamados, encontrando dezenas de pessoas feridas. Os primeiros socorros de Mark haviam dado frutos. Era evidente o quão péssimo estava o estado de alguns pacientes, porém resistiram pela ajuda do médico.

    “Ah…”

    Verion não conseguia mais se assustar ou sentir repulsa com as feridas horríveis depois dos minutos que passou do outro lado da vila. Tudo que sentia naquele ponto era um misto de pena e infelicidade. Demorou alguns instantes antes de começar, apenas encarando todos.

    — Vegarten — murmurou o nome da deusa e teve a mão circundada pelo brilho dourado.

    Uma, duas, três… dezessete, trinta e daí por diante. Parecia uma tarefa interminável. O que era uma leve arritmia do coração tornou-se uma dor aguda. O formigamento que sofria nos pulsos se espalhou para o resto do corpo.

    “Ninguém, ninguém no mundo inteiro merece sofrer com coisas assim.”

    Restituía braços e pernas inteiras, ignorando a própria dor para livrar os outros das dores que sentiam. E, pela primeira vez em sua vida, o processo curativo começou a falhar. O dourado da Vitalidade minguava, lutando para se manter.

    Após concluir o tratamento de todas aquelas pessoas, ele se acomodou em um canto, ofegante. A sensação que percorria seu corpo era semelhante a estar envolto por uma roseira cheia de espinhos por longas horas. Cada parte de seu corpo doía, e ele tinha plena consciência da origem daquela dor.

    Seu momento de descanso não veio, pois mais uma pessoa apareceu, avisando que alguns não aceitaram deixar suas casas para irem até lá. Verion encarou, atônito, o sangue em suas mãos, piscando em silêncio. Foram longos minutos até que levantasse.

    Ele e Jon seguiram para a casa de um idoso, que aguardava no quarto. Foi nesse momento que o guia sentiu um arrepio ao perceber a mudança no olhar do contratante. Verion agora tinha a mesma expressão exausta de Mark quando o encontraram no casarão.

    O Velgo sustentou um falso sorriso ao curar a perna quebrada daquele senhor de idade. Foi demorado, uma série de falhas ocorreram até a Vitalidade resolver a questão.

    “Gastei muito Roha indo ver a cratera do Quilionodora, e bastante pra sobreviver à queda na montanha…”

    “Se eu não tivesse me desviado do caminho ou sido tão precipitado…”

    — Você vai ficar bem, só descansa um pouco, por favor — disse, com voz trêmula e debilitada.

    — Obrigado, garoto. Mal me aposentei e já levei porrada de uma assombração estranhíssima! — Ele tossiu, risonho. — Se eu não conhecesse bem o Charles, acharia que era um plano pra não pagar minha aposentadoria!

    — Isso seria muito exagerado por parte do prefeito, coisa de vilão caricato de livro — respondeu o guia, encostado na parede.

    Jon pensou: “Existem realmente pessoas estranhas fora do mundo da minha antiga profissão… Alguém agir de forma tão casual diante de uma tragédia dessas levaria a um caso de execução. Porém, talvez seja só desespero disfarçado, vi gente agir assim antes.”

    — É… relaxa, você vai curtir sua aposentadoria. Ninguém iria contrariar as leis da Lisbeth. — O garoto acenou brevemente. — Tenha uma boa noite.

    Seguiram para outra casa.

    À luz de velas, Verion curava uma criança em seu quarto mal iluminado. Fechou todas as feridas rapidamente, por sorte não eram muito graves.

    — Vai ficar tudo bem, tá? Pode dormir.

    O garoto sorriu e respondeu: — Obrigado, tio!

    — Tio? Não sou tão velho assim. Tio é o Jon ali. — Apontou para o rosto dele.

    — Eu só tenho 34 anos, não sou velho — reclamou, chateado.

    Verion aguardou, com um sorriso no rosto, o garoto fechar os olhos para dormir. Assoprou a vela e seu sorriso se foi junto ao fogo. A expressão morta gerada pelos eventos recentes tomou lugar novamente.

    Saíram do quarto com cuidado para não fazerem barulho e acabarem acordando o garoto. O pai da criança, que aguardava ansioso no corredor da sala, nem precisou perguntar para entender a situação. A expressão calma habitual de Jon deu a resposta: seu filho estava bem.

    — Não precisa se preocupar, ele teve muita sorte — balbuciou o Velgo, olhando o sangue em suas mãos sem piscar.

    A visão começou a embaçar, as cores lentamente se diluindo para o preto, cinza e branco. Um zumbido agudo tomou os ouvidos, aumentando a cada batida do coração. A certeza de que estava prestes a perder a consciência surgiu como um peso enorme no corpo.

    A visão oscilante e a dor escabrosa que subia dos pés à cabeça o fizeram apoiar a mão na parede. Jon identificou rapidamente que gasto de Roha do garoto beirava o limite.

    — Aconteceu alguma coisa? — perguntou o dono da casa.

    — N-nada de mais, p-preciso continuar. Boa noite… — Seguiu cabisbaixo pela porta da frente, cambaleando.

    “Eu…”

    A dor profunda o tirou a noção do tempo e de seus atos. Caminhava com o olhar perdido para muito além do horizonte. Despertou daquele estado ao sentir um braço forte o apoiando para andar.

    — Nada de mais? — Jon olhou nos olhos dele com um grau de seriedade que Verion não havia visto ainda.

    Gritou com voz esganiçada e rouca: — Não quero te ouvir, só vamos pra próxima casa logo!

    “A Yun já teria resolvido isso tudo. É patético, ridículo que eu não possa fazer isso… Deveria ter treinado mais!”

    — Não vou permitir que continue e morra!

    — Tá com tanto… tanto medo de não receber seu pagamento? — Fechou os olhos por um momento, suspirando.

    — Não é isso! — Segurou o braço dele com mais força. — Em Raptra já vi muitos jovens imprudente como você morrerem! Não posso permitir que aconteça de novo na minha frente!

    Verion se desvencilhou dele utilizando Roha e cambaleou adiante. Os passos erráticos, descompassados, davam impressão de que ele desabaria a qualquer instante.

    — É um risco que preciso correr para ver meu novo mundo florescer com o máximo de pessoas! — Começou a correr, ofegante.

    “A apoteose é inevitável…”

    — Esperaaa!

    Harlon, 26/04/029, às 03:16.

    Verion abriu os olhos em meio à escuridão, a dor latejando em suas têmporas. Embora um tanto mais tênue, era difícil suportar as fisgadas que sentia pela cabeça e pelo restante do corpo. O sofrimento ocasionado por seus excessos com Roha não sumiria tão rápido.

    O fraco brilho de uma lamparina chamou sua atenção, pegou-a em mãos após levantar. Forçando os olhos e tentando se aperceber de seus arredores, notou Jon dormindo sentado ao lado. Uma chuva pesada caía lá fora, e a temperatura havia diminuído.

    “Que lugar é esse?”

    “Merda… Eu desmaiei mesmo?”

    Andou pela casa para explorá-la, descobrindo que estavam sozinhos dentro dela. O lugar tinha poucos móveis, apenas cadeiras e mesas bem velhas. O cheiro da poeira e da chuva que vinha de fora tomavam a casa.

    Enquanto explorava com mais cuidado a sala, avistou algo que o fez gelar. Uma face branca como gesso o encarava através da janela. Inerte, meramente observava em silêncio total. O cabelo negro como breu, encharcado, caía sobre o olho direito.

    “Não, não, não!”

    — A… — Antes que pudesse gritar para Jon, sua voz desapareceu, juntamente do som da chuva.

    Por impulso, arremessou a lamparina contra a janela, quebrando o vidro contra o rosto dela. A tinta escorria pelos cortes, e a reação que presenciou foi imprevista: tristeza genuína.

    Com um avanço irracional, ele saiu pela porta da frente, tentando alcançá-la. A figura branca apenas correu e o despistou em questão de segundos, sumindo entre as ruas. Verion ficou paranoico na chuva silenciosa, olhando para todos os lados. Berrava palavras inaudíveis, exausto.

    E uma única palavra cortou o silêncio de forma visceral: — Durma.

    Verion foi golpeado na cabeça.

    Apoie-me

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota