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    No momento em que Verion, Charles e Nuni conversavam, Mark entrou no casarão. O médico, com uma feição terrível, foi diretamente até o andar em que todos estavam. Seus passos pesados anunciaram a chegada.

    — Falou que eu não serviria de muita coisa, mas você foi um fracasso ontem, Velgo — disse olhando nos olhos dele. — Morreram mais de oitenta por sua falta de capacidade.

    — Não vale a pena começarmos a discutir agora. Nenhum de nós teria como lidar com a situação dessa vila nos nossos estados atuais… Também não estou feliz com nada disso, mas ficar remoendo é inútil. — Verion desviou o olhar.

    — De qualquer jeito, não tenho tempo de ficar falando com um moleque ignorante igual você. Onde está aquele tal de Jon?

    — Nem eu sei, perguntei isso ao Charles e ele não quis me responder. — Deu de ombros.

    — Prefeito, vou atrás daquela mulher que causou isso na vila. Acredito que minha filha está com ela. — Mark se aproximou dele rapidamente. — Me fala agora, onde está o guia do garoto?

    O prefeito deu um pequeno sorriso, inconformado, e apagou o tabaco no próprio braço. Ele foi até o sofá em que Verion estava anteriormente deitado, abrindo uma brecha no tecido para puxar algo de lá.

    — Jon decidiu ir até a caverna sozinho para buscar possíveis sobreviventes. Não falei porque queria que o Velgo descansasse um pouco.

    — Isso não é algo que você deveria esconder! — Verion levantou da cadeira na hora e correu para pegar a bolsa, ao lado do sofá. — É perigoso demais se envolver com aquela coisa sozinho!

    Casualmente, Charles puxou uma carabina enorme daquele espaço escondido. A arma de ação por ferrolho, de pouco mais de 4 quilos, era feita de madeira vermelha e tinha algumas de suas partes metálicas um tanto enferrujadas.

    — Preferia ficar de fora, mas vamos juntos.

    — Quê?! Pai, desde quando você esconde essa coisa aí?! — Nuni olhou de perto e teve certeza de que a arma era de fato real.

    — Faz um tempinho — respondeu, tranquilo, enquanto pegava o único pente de munição.

    — E o que você acha que vai fazer com uma arma? — questionou Verion.

    — Eu vivi durante a guerra, não ache que sou idiota. Essa arma não é uma arma normal, então não se preocupe com minha utilidade no meio de vocês.

    O olhar do médico deixava evidente não querer Charles os acompanhando, era um risco desnecessário. Porém, antes que pudesse dizer qualquer coisa a respeito, o prefeito resmungou:

    — Mark, detesto aquela médica falastrona que abandonou a vila. Não quero nem imaginar você batendo as botas e eu precisando pedir para aquela imbecil voltar! — Ele encaixou o cartucho na arma, irritado.

    — Esse é o motivo mais idiota pelo qual já vi alguém correndo risco de morrer…

    Ouviram repentinamente um som alto, era Verion pulando pela janela do segundo andar.

    — Esse moleque não bate bem da cabeça… — Charles sorriu e balançou a cabeça.

    — De muitas pessoas no mundo, acho que você é uma das últimas que tem o direito de fazer esse comentário. — Nuni deu dois tapinhas nas costas do pai.

    Harlon, 26/04/029, às 08:07.

    Verion, Mark e Charles encontravam-se diante da entrada da caverna. Uma espessa escuridão dominava tudo a partir da entrada. O médico tentou iluminar o ambiente adiante com um lampião, porém nada conseguiu com isso.

    — Parece que os poderes dela estão em funcionamento…

    — Se entrarmos agora, não vai dar pra fazer nada com segurança — disse Verion, lembrando do breu e da ausência de sons que vivenciou ao lado do guia.

    “Entrar desse jeito vai ser um problema. É ainda pior que andar de olhos fechados, já que nem som teremos pra nos guiar lá dentro.”

    “Preciso pensar em alguma coisa logo…”

    — Prefeito, você disse que essa sua arma não era normal. O que ela faz além de, obviamente, atirar?

    — É um pouco incomum para os lados de cá, mas existe um minério chamado de Quartzo das Profundezas. Normalmente usam isso para anéis, colares e outros acessórios. Mas também pode ser usado para fins militares, como munição. — Ele bateu levemente na arma. — Descobriram que nas maiores purezas o minério é capaz de ignorar parte do Roha.

    — Interessante… — Verion fechou os olhos por um instante.

    — É um jeito de gente fraca se defender dos usuários de Roha mais habilidosos. Não vai ser o suficiente para derrubar essa pessoa da caverna, mas um estrago acho que consigo fazer!

    “Isso não ajuda em nada contra essa escuridão, mas foi bom perguntar.”

    — Acham que vai demorar muito até isso sumir? — indagou Mark.

    — Não sei se… — Antes que pudesse concluir sua resposta, Verion viu Mark ser agarrado por um paredão de girassóis negros.

    O médico foi arrastado para dentro do breu em questão de segundos. O Velgo não pensou duas vezes e se atirou nas trevas para tentar resgatá-lo. O som do vento, do lado de fora, desapareceu juntamente de todos os outros quando deu o primeiro passo dentro.

    Correu o máximo que pôde, sentindo o desequilíbrio inevitável causado pela perda de dois sentidos. Movia as mãos adiante, tentando segurar em alguma coisa, mas nada era tocado além do ar. Vibrações no solo chamaram-lhe a atenção.

    Uma série de tremores ficava cada vez mais perceptível conforme avançava no solo acidentado. Os inúmeros desníveis, pedras molhadas e buracos tornavam a tarefa de manter-se de pé em um verdadeiro desafio.

    “Que droga tá acontecendo aqui dentro?”

    De repente, uma coisa mordeu seu braço, escorrendo um líquido quente e doloroso. Não teve tempo de pensar sobre a sensação de seu braço estar derretendo, logo foi arrastado brutalmente pela criatura caverna a dentro.

    Os gritos aflitos eram absorvidos e anulados pelas trevas que reinavam nas profundezas. O ardor da pele ralada e dos ossos quebrados pelos impactos não eram sabidos por ninguém além dele. Curava-se em simultâneo ao surgimento de novas feridas.

    Debateu-se pelas centenas de metros em que foi arrastado, tentando inutilmente se desvencilhar. Os tremores ficaram ainda mais intensos e, em resposta, focou-se em aumentar a própria resistência ao máximo com o Roha. Sentiu-se jogado ao chão em algum lugar desconhecido e levantou rapidamente.

    “Tem alguma coisa muito perto!”

    A apreensão aumentou ao sentir algo metálico envolvendo seu corpo, o amarrando. Foi puxado e abraçado por uma mulher que não sabia quem era, sendo salvo no último segundo de algo que fez todo o espaço começar a colapsar.

    A voz peçonhenta de Circe lacerou o silêncio: — Olha quem temos por aqui!

    A luz foi devolvida ao ambiente, deixando os cogumelos luminosos revelarem tudo. Verion era abraçado por Madallen, que estava sangrando. Notou as correntes ao redor de seu corpo, usadas para pegá-lo, e se desvencilhou delas rapidamente.

    “Essa não é aquela garota que a Yunneh queria muito beijar? Ela mora aqui?”

    “Ah… Isso fica pra depois.”

    Verion curou ela o mais rápido possível e se concentrou na figura adiante. A divindade exibia uma feição sombria, enquanto girava uma foice de tinta cristalizada acima da cabeça.

    “Essa não é a menina da janela, esse olhar é totalmente diferente… Quem é essa?”

    Uma energia nefasta emanou daquela figura, espalhando-se por metade da região. O som retornava enquanto a existência definhava na ponta daquela lâmina, decaindo ao nada.

    Observar aquela lâmina trazia uma sensação de vazio, a energia parecia chamá-los. A cada instante, as memórias pareciam ficar embaçadas, e a vontade de tocar aquela escuridão crescia. Sussurros baixos passaram a percorrer suas mentes.

    — Desgraçada! Para de ficar apagando tudo! — Madallen entrou no caminho dela e começou a girar a corrente.

    Ela pensou: “Não tem como eu sobreviver a um ataque direto… Mas ainda tenho uma chance.”.

    O movimento da corrente aumentava progressivamente. O barulho forte do metal confrontando a resistência do ar intensificou-se até atingir o máximo.

    — Revelação: Eos! — A corrente, coberta de um verde feroz, gerou ventos tão violentos que arrancaram partes da montanha, lançando Circe para uma floresta próxima com enormes pedregulhos. Os sons dos estrondos e do deslizamento de pedras tomaram tudo.

    A grande devastação revelou o céu azul acima; o vento cortou e ergueu tudo ao longo do caminho, transformando aquela região da montanha numa área plana. A luz do sol fez com que abaixassem o olhar devido ao brilho repentino.

    — Verion, cai fora daqui logo! — Madallen continuava girando o objeto, preparando-se para o próximo movimento.

    “Então ela lembra de mim também…”

    — Não posso sair daqui agora, preciso saber onde tá o Jon e o Mark!

    — Mark? O que meu pai veio fazer dentro das cavernas?! O meu velho tá maluco?!

    — Então você que é a filha dele… — Verion concentrou o Roha nas pernas e começou a manifestar o Vento para correr mais rápido. — Eu vim atrás dele, mas se ele não tá aqui, deve ter ficado pelo caminho em que vim! Vou tentar achar ele!

    — Beleza, só vai rápido! Não sei por quanto tempo aguento segurar as coisas por aqui!

    Verion partiu de volta pela parte não afetada pelo corte de vento, logo atrás deles.
    Madallen repetiu: — Revelação: Eos!

    Os ventos cortaram e arremessaram toneladas e mais toneladas de pedra, e destruíram parte da floresta adjacente, exterminando tudo pelo caminho, exceto Circe. A deusa caminhava entre os ventos com o olhar de uma mãe lidando com birra de criança.

    — Ni — pronunciou o nome do Deus do Enigma e surgiu instantaneamente atrás de Madallen.

    — Onde que ela foi parar?! — Olhou para todos os cantos do que restou da floresta, não encontrando coisa alguma.

    — Interromper o ataque alheio é uma tremenda falta de respeito. — Com uma feição irônica, de quem estava se divertindo, Circe cutucou o ombro dela. — Não concorda comigo?

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