Índice de Capítulo

    Os passos velozes de Verion ecoavam pelas frias e profundas cavernas. A energia permanecia desregulada após os esforços do dia anterior.

    Ele se concentrava em captar até o menor som ou movimento nos amplos e, por vezes, apertados espaços pelos quais passava, apressado como um guepardo. Durante seu caminho indefinido, percebeu algo.

    “Caramba… os tremores pararam?”

    “A luta com a Madallen acabou?!”

    — Se afasta! — A voz de Jon veio de muito longe, abafada, mínima.

    Verion parou abruptamente, virando-se na direção do som. Fechou os olhos e acalmou o coração disparado, buscando o ponto exato. Dentre os ruídos de gotas, um som distinto surgiu.

    — VOCÊ! — A voz furiosa do guia reverberou e indicou o caminho.

    “Deve estar perto.”

    Percorreu o emaranhado de cavernas que atravessavam umas as outras e despontou em um espaço grandioso. Um salão natural do subterrâneo, iluminado por um gigante cogumelo esverdeado. O brilho irradiado não era capaz de vencer a escuridão nos cantos.

    — Jon? — Forçou os olhos para ver melhor.

    O guia segurava uma das criaturas, firmemente agarrado ao braço dela. Lançou contra o chão e deu um chute que fez o solo pedregoso daquele espaço rachar por completo. A criatura grunhiu de dor e começou a manifestar diversos girassóis negros.

    “É, eu tava certo! Esse cara não é só um guia normal!”

    Enquanto observava, Verion notou uma movimentação estranha na parte mais escura. A parede da caverna escorria como tinta, esparramando-se pelo solo. Pares de mãos, dezenas deles, surgiram atravessando para dentro do local.

    Um total de dezoito aberrações, derramando seus líquidos pelo crânio, cercaram Jon em questão de segundos. Juntos passaram a exibir as chamas coloridas, e tudo foi tomado por girassóis. Um paredão de flores negras engolfou o homem e o cogumelo gigante.

    “F-foi uma coisa assim que atacou a vila?!”

    Sem a luz natural da caverna, tudo que restava para Verion era a pequena esfera de ar comprimido incandescente que mantinha. Gritou o nome do companheiro… e nada além de silêncio veio aos seus ouvidos.

    “Não tenho o que fazer agora…”

    “A Yunneh daria conta disso em uns dois segundos! Maldita hora pra ter me focado tanto nos estudos!”

    Tentou uma aproximação até a barreira, porém logo foi interceptado. Diversos girassóis se retorceram e avançaram até ele. Por pouco não perfuraram-lhe a cabeça. Passou a correr em círculos para evitar os ataques, acelerando à medida em que tentava pensar numa solução.

    De repente, uma explosão ressoou como um trovão. Verion viu uma labareda iluminar por completo o local. Cortando os girassóis com as mãos envoltas em chamas, Jon emergiu do paredão.

    Com um salto veloz, virou-se de cabeça para baixo em pleno ar e bateu os pés no topo da caverna para ganhar impulso. Mergulhou contra as criaturas, inexpressivo.

    — Raptra! — proclamou o nome do Deus da Caça e foi coberto por uma aura verde instável.

    Tudo que Verion enxergou depois disso foi um vulto esverdeado rodeado por chamas. Jon dizimou os girassóis e atingiu cada um dos alvos com dezenas de socos flamejantes. Com superioridade em agilidade, reuniu todos em um mesmo ponto.

    Ao uni-los, elevou o Roha ao máximo e deu uma investida, jogando-se como uma bola de boliche contra vários pinos, a pouco mais de 900km/h. Os inimigos foram estraçalhados e uma grande mancha de tinta se espalhou contra as paredes.

    “No mínimo ele deve ser Grau Intermediário! Que pancada… ”

    “Hum?”

    Tinha algo errado.

    A aura verde se desmanchou, como tintura diluída em água corrente. Minguaram as chamas e a força de Jon, que caiu de joelhos sobre a pedra. Os pulmões ardiam como se estivessem sendo fervidos em água suja e salgada.

    — Ei, você tá bem?! — Verion correu para checar o que havia de errado.

    A Vitalidade não conseguiu encontrar nenhuma doença ou anomalia. Não existia nada em que pudesse interceder para ajudar. Era algo inexplicável aos seus conhecimentos atuais. Frustrado, cessou a energia dourada.

    — O-onde está a criança? — A voz saiu quebrada, como um sussurro rouco que arranhava a garganta a cada palavra.

    — Tinha alguém aqui?

    — Sim… — Jon levou as mãos à cabeça.

    Verion franziu a testa, os olhos fixos no guia enquanto uma sensação desconfortável se instalava em seu peito. Era algo sutil, mas suficiente para inquietar. No pouco tempo em que foi acompanhado, nunca o viu parecer inseguro. Uma mistura de culpa e arrependimento mancharam toda aquela calmaria que ele aparentava.

    — O que aconteceu? O que você tá sentindo? — Segurou os ombros dele, firme.

    — Vá atrás da garota que vi… Não é hora de se preocupar com um impres…

    Zzznnn!

    Jon ouviu um zunido estridente, um rasgo no silêncio que perdurava no ar. Seus olhos se arregalaram. Agarrou Verion, jogando-o para fora da linha de ataque. Uma foice atingiu-lhe com força brutal e o cravou na parede.

    O homem se contorceu, as mãos agarradas na lâmina que o perfurava. Os grunhidos desesperados logo diminuíram com a rápida perda de sangue. Pendurado como carne no abatedouro, enxergou Verion correr até ele.

    Com a visão turva, distinguiu uma figura desconhecida se aproximar sob a luz esverdeada do grande cogumelo. No segundo que o coração pararia de bater, foi tocado e curado.

    Verion virou-se na direção daquela que atacou e pensou: “A luta com a Madallen acabou? Ela já tá aqui!”.

    Jon criou fogo concentrado e rigoroso, derretendo a foice dentro de si para se libertar. Segurou o garoto pelo pescoço e o bateu no chão com tudo, caindo junto dele. Uma espada de tinta cristalizada explodiu a parede ao lado.

    — Ah! Essa foi por pouco… — Verion abriu, desajeitado, a bolsa que carregava no ombro para pegar uma poção.

    “Uh… tá tudo quebrado! Molhou meu dinheiro todo!”

    — Ótimos reflexos, bonitão! — ironizou Circe, a voz açucarada e irreverente vindo bem de perto.

    — Minha antiga carreira exigia isso… — balbuciou Jon ao levantar e colocar-se no caminho entre ela e o Velgo.

    No chão, atrás do guia, o mesmo pensamento que teve anteriormente surgiu na cabeça do garoto:

    “Tenho certeza que essa não é garota que vi na janela… Isso é mesmo outra pessoa?”

    — Recomendo que dê alguns passos para o lado… Parece que lutar sério te deixa bem patético depois. — Formou uma foice de tinta em cada mão.

    — Quem é você?!

    — Ninguém importante… — Ela repensou um pouquinho e desmentiu: — Aaahhhh, na verdade sou importante sim!

    “Está envolvida com o deus misterioso?”

    Os pensamentos de Verion foram interrompidos abruptamente por um calafrio desconsertante. Circe sorriu, balançou as foices, e desapareceu por completo após encará-lo nos olhos.

    “O-onde?!”

    Bem atrás deles.

    As lâminas surgiram na visão periférica do Velgo, cercando o pescoço do homem aflito que queria protegê-lo. Mas antes que fosse decapitado, o guia desapareceu sem mais nem menos.

    Tsc…

    — Jon…?

    Uma fúria indistinguível brotou na feição da deidade, um prelúdio dos próximos momentos terríveis. Ela, trêmula pelo mais puro ódio, ergueu e atravessou uma foice dezenas de vezes na própria barriga.

    — PARA DE ME ATRAPALHAR, LYRIA!

    Aproveitando-se do surto que não sabia explicar, levantou e correu para fora da área. Utilizando Roha e Vento para maximizar a velocidade, voltava na direção em que veio. Queria desesperadamente saber o resultado final do confronto com Madallen.

    O avanço desenfreado fazia os ossos da perna doerem a cada passo. O barulho dos ventos ecoava à frente. Acelerou ainda mais para alcançar o lado destruído da montanha. Queria ver a luz, sentir o calor do sol sobre a pele, respirar o ar puro outra vez.

    “Esse é só o terceiro dia da viagem! Logo agora?! Eu nem sei o que tá acontecendo e vou morrer assim?”

    “Nunca mais vou poder ver a Yunneh? E a minha promessa com a Karina? Nem pra isso vou servir?”

    Sob a luz da esfera de ar incandescente, uma visão fez o coração gelar: Circe. A deusa apareceu ao lado com um largo sorriso malicioso. Como um vulto surgindo nas trevas por inúmeras vezes, emergia na visão periférica dele a cada mísero metro percorrido.

    A energia obscura emanada pelas foices parecia se enrolar ao pescoço de Verion. Sentia-se como um prisioneiro condenado à morte, sentenciado ao fim. Sufocado pela mera intenção assassina de Circe, arranhou o pescoço com uma das mãos, buscando desatar um nó inexistente.

    Não importava o quanto tentava e o esforço empregado naquilo, ela sempre estava lá. Velocidade não era a resposta.

    Estava cada passo mais próximo da luz, da liberdade de encarar o azul celestial do céu outra vez. Em contrapartida, a imaginação aprofundava-se em uma visão decadente e cruel. Via-se no escuro, perante uma escadaria de madeira que levava até uma forca.

    Contra a própria vontade, moveu-se rumo à escadaria naquele devaneio. A textura áspera da corda envolvia o pescoço antes de sequer chegar ao local. Queria fugir, desaparecer de lá, que Yunneh o salvasse, mas nada disso ocorreria.

    Não era destino, mas, naquele dia, Verion morreria.

    Voltou à realidade quando sentiu estar em queda. Teve as duas pernas arrancadas com um único golpe rápido e impessoal. Seu grito viajou pelas profundezas; ninguém além de Circe pôde ouvir.

    — VEGAR… — Teve as cordas vocais atravessadas e partidas, a foice afundada no pescoço.

    — Não, não! Nada de pedir socorro. — A voz irritada arrepiava.

    A visão escurecia, falhava repetidamente como um televisor defeituoso. Tentava se curar sem a potencialização dada por Vegarten. Ao ter a lâmina puxada para fora, tremeu, soluçando com um choro afogado em sangue. A consciência à beira de colapsar foi capaz de sustentar a cura.

    Fazia de tudo para pelo menos fechar as feridas e encerrar a hemorragia por ora. Perder mais sangue era morte certa. A magia minguava, enfraquecida, e o olhar trêmulo começava a desacelerar.

    Um brilho branco e etéreo floresceu do sangue, fluindo pelo ar como fumaça. Circe balançou a cabeça em negativa e ergueu uma foice outra vez.

    “Yunneh…”

    — Desculpa, tá? Acabei passando um pouquinho do limite com você. — Abriu um sorriso tão genuíno que fez Verion ficar incrédulo com uma reação tão feliz diante de sua desgraça.

    Como um último esforço revoltado e amedrontado, curou as cordas vocais para fazer uma pergunta: — Por quê?

    Segundos de silêncio perduraram, até Circe desviar o olhar e desfazer ambas as foices, que esparramaram-se no chão. O cheiro forte de tinta se impregnou por cada canto. Calmamente, encostou-se em uma das paredes pedregosas.

    A figura de cabelos pretos como o céu sem estrelas e pele branca como gesse fechou os olhos. Gotas de tinta escorreram pelos braços e caíram à frente. Uma nova criatura foi formada através disso, enrolando o pescoço de Verion em raízes de girassol. Emanava luminosidade azul.

    — Uma razão por trás de suas dores? A razão tem nome: Aurelius Daath, o deus que está escondido no seu corpo!

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