Capítulo 4 - A Realidade do Anjo Caído
O Anjo caído ainda era rememorado no ano seguinte. Porém, sua jornada teve fim e, com ela, outra começaria.
Ano 22 do Calendário da Calamidade.
Na grande casa rústica, o peculiar filho daquele homem acordava em uma cama confortável. Esfregou os olhos sem muita vontade, e abriu a cortina, quase tombando para trás com o brilho do sol.
“Eu te apago, me espera só…”
Ainda de pijama, foi até o banheiro lavar o rosto. Posicionou um banquinho para conseguir usar a pia e se encarou no espelho. Viu que seus cabelos castanhos estavam um caos, mas não iria pentear.
Minutos depois, ele bateu na porta do quarto da irmã mais velha. Nenhuma resposta veio, então, após pensar muito, criou coragem para chamá-la.
— Yun?
— O que é…?
— Tudo bem com você? — Aproximou a mão da maçaneta.
— Não se preocupa comigo… por favor.
O som de papel no interior do quarto dela era o único ruído na casa, indicando que a mãe deles não estava lá. Um tanto decepcionado por não ter recebido uma resposta satisfatória da irmã, seguiu ao primeiro andar.
Encontrou um recado da mãe junto de alguns pães na mesa da sala, ao lado da foto de família.
Verion, vou até Raptra conversar sobre algumas propriedades intelectuais de seu pai. Ele sempre ganhou milhões por mês com suas patentes, mas revertia tudo para caridade. Quero uma porcentagem para nós. Merecemos mais do que essa casa.
Tente convencer Yunneh a comer alguma coisa. Desde que Elta morreu, só fica trancada naquele quarto lendo livros deprimentes de uma tal de Lya.
“Pão, né…”
Os pães ficaram tão bons que ele comeu todos antes de sequer cogitar em guardá-los para ela. Sua atenção se perdia facilmente, esqueceu o pedido da mãe enquanto comia, então não se sentiu culpado por isso. Abriu a porta da frente e foi até um balde com água.
Nos últimos meses, após a morte de Elta, Verion havia criado um lindo jardim com inúmeros tipos de rosas. Cuidava delas todas as manhãs, regando e observando os insetos da área para que não comessem nada.
As rosas vermelhas que seguiam pela terra batida, que levava ao galpão, eram as mais bem cuidadas. Ele não conseguia entender totalmente o que o levou a fazer tudo isso, mas sentia-se bem em dar continuidade ao que ele e o pai começaram.
Após regar cada um das rosas, foi a passos largos, e com uma ideia que sobrevoava sua mente há meses, de encontro ao espaço abandonado.
“Espero que o galpão não seja difícil de abrir.”
Seguiu entre as árvores e arbustos carmesim que continuavam tão vibrantes quanto sempre foram. A grama verde, que era rasteira, estava mais alta sem os cuidados de Elta em cortá-la.
Podia estar bem cedo, mas o calor, já forte, fez ele acelerar até o local de pesquisas do pai.
Quando chegou, abriu as portas um tanto enferrujadas do galpão com rapidez. Ar abafado e ambiente empoeirado, não poderia se esperar algo diferente.
— Finalmente, sombra! — Seu olhar logo passeou pelas coisas abandonadas enquanto recuperava o fôlego.
Expostas à umidade, as cadeiras e mesas apodreciam naquele interior. A papelada de alguns projetos ficou ilegível e as paredes repletas de mofo. Buracos no teto eram a resposta da rápida deterioração.
“Já foram 9 meses…”
Cof, cof.
O garoto queria encontrar algo que animasse a irmã após a partida do pai. Era o mais preocupado, até mais do que a mãe da família. Todas as manhãs batia naquela porta para checar se estava tudo bem.
A melhor alternativa era o galpão, apenas lá deveria ter alguma coisa interessante o suficiente para fazê-la sair do lugar. Nem mesmo as preces à Deusa da Vitalidade, Vegarten, a tiravam do quarto.
Verion foi até o enorme armário metálico de diversas gavetas, que ficava perto de uma fornalha. Começou a abrir cada uma delas, tentando achar algo de notável.
Gaveta após gaveta, durante minutos, horas e mais horas, nada além de estudos e peças de rádio. Limpava com a mão o suor que escorria por seu rosto. E mexendo em uma das gavetas pela segunda vez, acabou sentindo algo estranho.
Crrr.
— Um fundo falso?! — berrou antes de o remover por completo.
Os olhos cansados do garoto brilharam como estrelas ao achar um caderno bem preservado. Ele o pegou e abriu suas páginas finais em cima de uma mesa, empurrando os objetos para ter mais espaço. Puxou uma cadeira para lê-lo, sem notar que balançava as pernas com entusiasmo.
Iniciava sua leitura pelos registros de 12 meses atrás.
Infelizmente, meus dias estão acabando. Esse tipo de câncer deveria ser curável pelos efeitos da Definição da Vitalidade, entretanto, não houve qualquer resultado real.
Existem poucas doenças incuráveis para mim agora, então, provavelmente, isso está sendo causado por uma maldição. Me pergunto que deidade se viu tão amarga comigo.
Não acredito que eu vá encontrar algum meio de atrasar esse processo ou de, de fato, colocar fim neste. Acho que é um bom momento para os preparativos.
Tudo aquilo que tinha como certo mostrou-se pouco confiável. Não passou pela cabeça de ninguém que o pai pudesse ter sido amaldiçoado. Apenas acreditaram que o poder de Vegarten não tinha meios de lidar com aquele câncer em especial.
Ele cogitou a possibilidade da deusa ter traído o pai, mas logo afastou aqueles pensamentos. Sobrando uma alternativa…
“A única outra que ele seguia era a Deusa do Conhecimento, mas ela também nunca faria algo contra um seguidor tão fiel!”
Há 11 meses.
Os preparativos para a iniciação do meu filho foram encerrados, mas tenho uma coisa a fazer antes. A representante do Deus da Calamidade, Layla Zayn, requisitou minha presença na reunião a ser promovida na Zona Neutra Internacional.
Já era hora de me conceder o título de Anjo. Eu salvei 250 milhões de pessoas naquela última guerra, é o mínimo que mereço.
Verion começou a roer as unhas enquanto encarava as palavras.
Ter ido à ZNI foi uma grande perda de tempo. Aquela mulher é a síntese da falta de caráter. Todo o foco foi para a menor das coisas: Arthur Vogrinter, o Escolhido.
Darem maior importância a esse moleque do que às milhões de vida salvas é uma piada infeliz. Não queria ter recebido esse título sendo rememorado como o salvador de um só.
Ter criticado isso pode ter sido um erro, mas me sinto bem. Prefiro a aprovação das pessoas que salvei, a nobreza internacional não me importa.
“Então era disso que ele e minha mãe conversavam às vezes… Lembro de ter ouvido algo sobre esse Arthur.”
Há 10 meses.
Os efeitos mais óbvios que fazem ser fácil identificar alguém amaldiçoado começaram a surgir: cabelos brancos e alguma incapacidade. Perdi totalmente tato e olfato.
Havia uma inconsistência gritante naquela situação. Verion não lembrava de ter visto os cabelos do pai brancos em momento algum. Por conta disso, uma maldição jamais fora cogitada pelos familiares e amigos.
A iniciação de Verion começou, agora ele também é capaz de curar, e tenho que admitir que sinto muito orgulho. Espero que um dia alcance o mesmo nível da irmã.
O rádio que ganhei quando visitei o oriente quebrou. Aquele lugar me assusta, em pouco tempo atingiram tecnologias que eu nem poderia imaginar. E vi mais delas na ZNI.
“Agora é perto do final…”
Há 9 meses.
Não esperava que meu cabelo ficaria branco por conta de uma maldição, achei que a idade faria isso comigo. A dor que sinto está atenuada, mas não posso fazer nada além disso.
Verion tem ficado cada vez melhor com o uso de sua magia, mas nesse nível ele não tem como me substituir. E ainda não existe uma poção capaz de curar ferimentos.
Tentei, em vão, desenvolver isso de todas as maneiras. Depender da magia de cura significa que nós, médicos, precisamos estar lá; poções poderiam fazer nosso trabalho.
Consegui erradicar algumas doenças, mas o principal ainda falta. Preciso de algo que consiga reconstruir braços e pernas, tal como faço.
É estranho pensar que agora, olhando minhas anotações mais antigas, eu não consiga reconhecer de onde vinham aqueles meus pensamentos de quando eu surgi. Textos podem guardar informações, mas sentimentos perdem-se nas linhas.
Eu fico imaginando o que eles dois vão se tornar quando forem mais velhos. Bem, não devo me deixar levar, essa tarefa fica para mãe deles.
As pernas pararam de balançar. Seus dedos suavam com um mau pressentimento que parecia rastejar pelas costas. Naquele ponto, uma das problemáticas que o infernizaria durante anos estava nos próximos parágrafos.
Hoje vi um homem de cabelo preto e olhos vermelhos brilhantes de pé no telhado de casa durante toda a madrugada. Aquela espada com lâmina serrada era estranha.
Consigo sentir que ele é muito mais forte do que eu, reagir e não reagir terão o mesmo efeito. Vamos ver o que o tempo dirá.
Restava pouco texto um dia antes da morte.
Esse homem se apresentou como uma das deidades mais antigas, e sem sombra de dúvidas era. Aquela sensação foi pior do que tudo que já vi e senti.
Falou que buscaria meus filhos quando fosse o momento certo. A morte deles seria a chave para algo, mas não consegui entender.
Não sei o que esse homem quer, porém tenho uma hipótese: talvez tenha alguma coisa a ver com aquele disco dourado.
Consertarei o rádio da gaveta, sei bem como fazer isso e sinto saudade das notícias. Espero conseguir mover meus dedos por mais tempo; essa fraqueza aumentou.
Glória à Vegarten e Benten.
Despencou da cadeira no momento em que, aparentemente, entendeu a situação. A tal divindade que portava uma espada era a resposta óbvia à morte de Elta. Contudo, não bastava aquela breve descrição para saber qual, dentre os mais de vinte seres divinos, era o culpado.
Sentiu um pesado agouro recair em seus ombros. Mal conseguia pensar após tantas horas revirando gavetas, então decidiu ir imediatamente atrás de quem poderia ajudá-lo.
“Cadê minha irmã?!”
Yunneh observava calmamente o pôr do sol pela janela do quarto. A feição séria deu lugar a um pequeno sorriso ao ver o céu alaranjado. Ela prestou atenção na direção do galpão e viu uma coisinha correndo entre as árvores.
“Uh, que isso?”
Verion avançou até a casa com os olhos focados no segundo andar. Com uma magia de Vento, atravessou a janela da irmã como se fizesse um mergulho. O reflexo dela foi suficiente para sair do caminho no último momento.
— Yun! Soocorrooooo! — Ele olhou para o braço sujo de sangue. — Ai, ai, ai!
— Você só percebeu a dor quando olhou? — Estava do outro lado do quarto, tão expressiva quanto uma caixa de sapatos.
A adolescente de longos cabelos castanhos e olhos azuis curou o irmão em segundos. Ajeitou o pijama no corpo e destrancou a porta do quarto.
“Melhor evitar que esse exagerado pule pra fora também.”
O chão tinha diversas camisas largadas, pedaços de papel e algumas cascas de fruta. O cheiro de mofo era forte, ela não costumava abrir a janela desde o incidente.
Yunneh recebeu o diário aberto nas páginas finais, e acendeu um lampião para iluminar o quarto após o pôr do sol. Forçava os olhos para entender as letras à luz das chamas que dançavam no interior do objeto. Sua expressão foi tomada pela confusão em questão de minutos.
— Você também não lembra do cabelo dele ficar branco, né? — O coração do garoto palpitava tão forte que doía.
Ela manteve a calma ao máximo. Juntando as peças da questão, aquilo ficou mais assustador do que sugeria ser a princípio.
Caso Elta tivesse de fato sucumbido por uma maldição, isso implicaria que o assassino conseguiu alterar as memórias ou percepção da realidade de milhares de pessoas para que vissem seu cabelo na coloração natural. Ninguém, sem exceção, ficava com a aparência igual após ser amaldiçoado.
— É mais provável que esse cara dos olhos vermelhos não esteja sozinho… — Ela passou uma página após o fim das anotações do pai e encontrou um ponto amarelo rabiscado.
A curiosidade a forçou a passar até a próxima. Tinha algo escrito em letras tão perfeitas que pareciam saídas de uma máquina de escrever.
Daath.
Ela guardou muito bem aquela palavra e colocou o diário na gaveta da mesa de cabeceira. Via nitidamente na expressão do irmão que ele estava para desmaiar de tanto medo.
A jovem não tinha certeza do que fazer também, e, apesar de não estar apavorada como ele, teve a mesma conclusão que passava na mente do garoto: “Vamos morrer…”.
Arranhou o próprio braço enquanto remoía cada pedaço daquela situação. Por que logo eles? Qual era a razão de serem alvos de alguém tão poderoso e ameaçador quanto uma deidade? Nada fazia sentido em particular, e apenas aceitar, ou lidar com a situação, era difícil.
Uma conclusão imperfeita foi agarrada naquele instante. Uma contramedida que beirava o completo irracional.
— Vamos retomar as pesquisas do velho! Talvez continuar com os projetos nos dê ferramentas para sobreviver quando esse desgraçado vier nos buscar!
“Humanos contra uma dessas abominações divinas? Que piada… Dos poucos registros e eventos de deuses em ação, a maioria acabou com o fim de civilizações inteiras. …Só que acho que tá tudo bem fazer ele acreditar nessa mentira por agora.”
Ela estendeu a mão ao garoto, que agarrou como uma última esperança. No fim das contas, ele ganhou o que queria, ver a irmã animada com algo. O sorriso falso dela trouxe uma paz momentânea ao seu coração.
— M-mas como que nós vamos continuar pesquisando aquelas coisas? Parece tudo muito complicado…
— Confia na sua irmã, não existe conhecimento complexo o bastante que muito tempo livre não dê conta! — Ela deu um sorriso confiante, com o punho cerrado.
Os longos dias passaram e os irmãos tentavam entender as peculiaridades do pai nos papéis que organizavam. Alguns termos inexplicados dificultavam em muito a compreensão. Liam e reliam na sala de casa. O chão, sofá, mesa e até as paredes foram cobertas de papel.
Um grande copo de café estava entre as pernas dela, quase vazio. As olheiras profundas no rosto eram gritantes, não dormia há muitas horas.
— Tá de sacanagem, que criptografia desgraçada é essa?! — Yunneh folheava desesperadamente um dicionário com uma mão e outros papéis com a outra.
— Eu aprendi a ler faz uns três anos… mas isso aqui tá de mais! — Lacrimejava e se perdia toda hora antes de alcançar o fim de um parágrafo complexo.
— Poxa, mas aí era o esperado. — Ela suspirou e abaixou a cabeça, grunhindo de pura inconformação.
“Pra que que eu tô me empenhando tanto nisso? Nem tem como a gente vencer…”
Existia um mar de abreviaturas e siglas inexistentes em qualquer outro lugar do mundo. A certeza era de que as terminologias estavam explicadas em algum canto. Contudo, aqueles quilos de papel soavam tão ameaçadores quanto uma bomba relógio.
Irritada, jogou o dicionário pela janela. Verion continuou tentando encontrar as explicações, e ela foi ao segundo andar para buscar um livro. O quarto permanecia com roupas pelo chão e os cacos da janela só varridos para um canto.
Pegou o livro da autora que acompanhava e retornou ao primeiro andar, deparando-se com a mãe de volta ao lar. Reconheceu o vestido negro dela de imediato.
Mirya Velgo olhou toda aquela papelada em silêncio durante segundos e apenas aceitou a bizarrice, bufando.
— Bom dia — cumprimentou e tirou do ombro a bolsa que carregava, colocando na mesa.
O garoto largou tudo para abraçá-la assim que notou sua chegada. A mulher elegantemente vestida compartilhava muitas semelhanças com Yunneh. Diferiam-se pelo corte de cabelo e por ela usar maquiagem.
— O que estão fazendo? — Afagava os cabelos do filho e fitava a bagunça. Quando parou de o acariciar, ele voltou ao sofá.
— Queremos retomar as pesquisas do nosso pai! — disse orgulhosamente a filha.
— Do nada assim? — soltou em um tom tão informal que sentiu um pequeno pico de ódio contra si, policiando-se para não repetir, engrossando a voz. — Pensei que não teria ânimo de sair do quarto tão cedo.
— Ééé que… Aconteceram umas coooisinhas aqui e ali, daí eu quis continuar as pesquisas com o Verion!
O baixinho encheu os pulmões antes de tentar dizer que:
— É que tem um de…!
E ter a boca tapada pela irmã, que tinha ficado pálida só de pensar na possibilidade dele ter dito a verdade. Tentando ocultar sua expressão, que acreditava estar terrível, ergueu o livro diante do rosto de Verion.
Sabia que seria tão efetivo quanto atrair um touro ao balançar um pano vermelho. Mirya era pessoalmente contra aquele tipo de livro que a filha tanto amava. Histórias que, ao seu ver, pareciam romantizar o sofrimento humano eram uma besteira ilógica. Lixo não descartado.
— Ainda lendo essa coisa? — Sua feição se transfigurou em desgosto puro.
— É um bom livro, me identifico com a personagem principal!
— E isso é preocupante — Verion cochichou e tomou uma livrada na cabeça. — AAAAIIIII!!! P-pra que issooo? Você quer me matar?!
— Vou te mostrar algo preocupante de verdade! — ao resmungar isso, o irmão deu um passo para trás por precaução.
A mãe bateu uma palma firme para chamar a atenção deles. Os dois travaram. Mesmo antes de virarem a cabeça, tinham certeza de que ela estava os encarando com aquele estranho olhar frio que mostrava de tempos em tempos.
— Daqui a um mês, teremos uma renda passiva de 16 milhões de Zaykkas — disse e exibiu um sorriso fraco de canto de boca.
— Isso tudo?! — Ele levou as mãos à cabeça, não por surpresa e sim pela dor latejante daquele livro de capa dura.
O testamento de Elta concedia à Mirya direito total sobre as propriedades intelectuais. Ela apenas esperou alguns meses antes de tirar uma casquinha dos valores astronômicos que eram movimentados para instituições humanitárias.
Uma curiosidade despontou na mente da filha.
— Quanto você removeu da caridade para termos isso?
— Apenas 2% do valor mensal. Acredito que não fará tanta falta, e se fizer não terei qualquer peso na consciência. — Deu de ombros, mantendo o olhar fixo na dupla.
Yunneh pensou em pedir para que ela pegasse uma fatia ainda menor. Sempre foi desejo do pai utilizar aquela riqueza para ajudar pessoas. Contudo, após ponderar um pouco, ela desistiu de contestar. Tendo em vista a possibilidade de investimento nas pesquisas, optou por dizer:
— Tudo bem então.
“Elta fazia as pesquisas com o dinheiro de vendas no comércio local. É uma doideira ele ter gerado um lucro milionário com uns trocados! Mas como não somos ele, o dinheiro de muleta é uma ótima ajuda.”
Mirya complementou após a fala da filha: — Caso tudo dê certo nas pesquisas, essas pessoas recuperarão o que lhes foi tirado.
— Vamos nos esforçar!
Em pouco tempo, a dupla mergulhou naquele mundinho que o pai vivera no galpão. O lugar foi completamente reformado e os equipamentos melhorados. Apaixonaram-se pelos estudos após entenderem parte das terminologias próprias do Anjo. Recriações de suas invenções, ainda que imperfeitas, davam frutos após um mês, e finalmente o rádio havia sido consertado.
Bbrrzz.
O líder de Raptra, Daren Vogrinter, anunciou hoje que fará uma grande reforma no sistema carcerário do país. Inúmeros criminosos perigosos dominaram as fronteiras e, portanto, a área de segurança como um todo receberá investimentos.
— Tá captando sinal de outra nação! — Verion quase se desequilibrou da cadeira antes de aumentar o volume.
— É, quase ninguém daqui têm acesso à tecnologia desse tipo. Não vale a pena fazer transmissões no país.
A dupla usava jalecos brancos de alta qualidade, o caçula com um muito maior que o seu tamanho. Ninguém esperava que um garotinho daquela idade iria precisar de um. Fizeram pedidos a uma alfaiataria para que trouxessem modelos sob medida nos dias seguintes.
Apesar de terem questionado o que alguém de oito anos estaria fazendo metido com pesquisas, e se uma criança deveria mesmo trabalhar com coisas assim, aceitaram pelo valor chamativo. Verion, apesar de meio bobão, era mais esperto que as outras crianças da idade. A intervenção de Elta com o Conhecimento mostrou resultados rápidos.
No momento é impensável lidar com a facção Estrela da Manhã. Um confronto direto causaria destruição em massa, levando a muitas perdas civis.
— Precisamos dar um jeito de ficar tão fortes quanto esses caras! — Yunneh bateu a mão na mesa, fazendo alguns frascos balançarem.
— Hahahaha… Caramba, usar uma facção como exemplo? — Verion se debruçou sobre a mesa. — Acho que faz sentido… parece legal ser forte assim.
Yunneh ganhou alguma confiança após os investimentos. Mesmo ainda achando impossível, uma fagulha de ânimo surgiu nela para conhecer mais das coisas do pai.
Voltou a anotar sobre o Experimento Sinérgico de Quilis-Jooguni, a primeira coisa importante das documentações a identificar corretamente.
“Preciso fazer isso dar certo, aquele dinheiro tem que voltar pra caridade logo.”
— Yun, acha que devíamos contar pra mãe o que tá acontecendo?
— É melhor deixarmos o assunto só entre nós por enquanto.
Permaneceram lá até o anoitecer, só saindo quando a mãe os chamou para jantar. A casa agora tinha duas empregadas cuidando das coisas e, apesar disso, Mirya mantinha a rotina de afazeres na casa. Era muito confuso, as moças nem sabiam o que fazer.
Sua antiga carreira ainda impactava pesadamente em sua personalidade. Não queria deixar que as empregadas fizessem algo por conta própria sem sua supervisão — odiava quando os novatos que comandava décadas antes cometiam erros.
Após o jantar, os irmãos foram ao segundo andar da casa, cansados. Desejaram boa noite um para o outro e seguiram aos seus quartos. A serena madrugada veio, era hora para um bom tempo de descanso.
Porém, enquanto restauravam suas energias, algo ocorria naquele território.
Um homem alto, de túnica branca, segurava um revólver apontado para Mirya. Seus enormes cabelos brancos firmemente enrolados no pescoço. Os olhos cintilavam num dourado etéreo.
— Você já fez isso uma vez, aceite e eu solucionarei a questão que lhe atormenta há décadas! — Com um sorriso cínico, deu passos adiante.
— Saia daqui. — Ela cruzou os braços, os olhos fixos nele, sem piscar. — Não tenho tempo pra suas ameaças.
O homem de branco engatilhou o revólver e colocou o dedo no gatilho.
— Minha querida, quero mais do que meras in…
Mirya pisou no chão, prendendo o invasor numa camada de gelo extremamente densa. E no segundo seguinte, ela sentiu o metálico cano da arma na ponta do nariz.
O gelo havia desaparecido como se nunca tivesse existido. Não restaram fragmentos ou gotículas d’água.
— Me matará caso eu recuse? — Pressionou o rosto contra a arma.
Os olhos, esvaziados de razão, pareciam preparados para o apertar do gatilho. Não tremia, não suava, não piscava. Apenas permaneceu encarando o sorriso no rosto do homem, como uma marionete sem cordas a serem puxadas.
Ficaram lá dessa forma, ouvindo o som suave dos ventos, até o homem lamber levemente os lábios ressecados e dizer algo.
— Você disse que sem seus sonhos a vida não fazia sentido. Partindo desse ponto, o que é hoje além de um cadáver?
Doeria cometer aquele erro duas vezes, porém a possibilidade de realizar um sonho de infância a fez aceitar o cruel pedido daquele homem. No frio noturno, ela apertou a mão daquele imortal, um dos envolvidos na trama da morte de Elta, para firmar um compromisso.

Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.