Capítulo 45 - A Odisseia de Circe Lethê Parte 8
A organização dirigida por Aurelius Daath, As Manchas do Sol Branco, iniciou suas buscas em todo o território da nação de Rotsala. Desde florestas até o interior de cavernas, desejavam cobrir toda a enorme área em algumas semanas.
A população, que sentia saudades do antigo e desaparecido líder, encarava aquelas buscas como um desrespeito. Um povo externo, que provavelmente os queriam mortos, agora perambulava por seu país tentando se certificar de que sua liderança mais duradoura estava morta.
Durante as buscas, alguns habitantes se mostraram hostis, mas Aurelius conseguiu acalmá-los. Sua presença trazia um encanto forçado, causado por seus poderes divinos — uma admiração invasiva e irracional que rastejava para dentro da mente de quase qualquer um, como uma infecção persistente.
Aos poucos, alguns começaram a vê-lo como uma possível nova liderança, ignorando Circe e o avô de Rotsala, os detentores do poder naquele momento. Apesar da influência daquele carisma sobrenatural, certa parte da população continuou com visões fortemente negativas sobre As Manchas do Sol Branco.
Ao fim da sétima semana de buscas, terminaram com uma certeza concreta: Rotsala não existia mais naquele lugar. Não existiam traços, nem mesmo algo que explicasse seu desaparecimento completo. Os três investigadores, Belphegor Nerose, Esra Vortiger e Aurelius Daath retornaram à capital no dia seguinte após o término dos serviços.
Era uma manhã fria e enevoada na região do grande lago ciano. O trio caminhava pela ponte de concreto, rumo ao edifício administrativo central, discutindo as descobertas feitas ao longo do caminho.
Rotsala, com seus jornais, havia criado tecnologias incrivelmente avançadas para a época. Rádios, televisões e até carros podiam ser encontrados em áreas específicas. Aurelius refletia sobre a possibilidade de realizar engenharia reversa nessas criações para compreendê-las melhor. Talvez a Deusa do Conhecimento, Benten, fosse a chave para desvendar esses mistérios. No entanto, antes disso, precisavam resolver as tensões internacionais com aquela nação.
— E foi tudo muito mais rápido do que eu imaginava — admitiu Bel, com as mãos atrás da cabeça, em um tom descontraído. — Depois de conversarmos com a Circe, vou voltar para casa. Minha esposa e minha filha devem estar com saudades!
— Às vezes eu esqueço que você tem família… — disse Esra, acelerando o ritmo das palavras antes de resmungar: — Você não parece o tipo de pessoa que conseguiria fazer sexo com alguém.
— Não fala isso, eu fico envergonhado… — Ele baixou a cabeça, e ela riu, com uma voz carregada de um cansaço notável.
Aurelius continuava sorridente e leve, como se nenhum peso ou preocupação pairasse sobre seus ombros. Os olhos verdes estavam fixos nas janelas do prédio à frente, enquanto um desejo estranho tomava-lhe o coração.
Ao chegarem, encontraram a grande porta dupla da entrada entreaberta. Espiaram por um instante antes de abri-la completamente. Lá dentro, Circe, Zhemo e Higan conversavam atrás da ampla mesa da recepção, trocando papéis entre si e rindo. O clima parecia amigável, como uma reunião entre bons amigos.
— O Rotsala fez mesmo isso?! — perguntou Zhemo, com um sorriso enorme estampado no rosto enquanto olhava uma foto.
— É verdade! Ele jogou um pedaço de chocolate gigante na minha cabeça por eu não ter dado bom dia para ele — respondeu Circe ao puxar o braço dele para ver a foto de perto.
Na fotografia colorida, Circe emergia de um bombom gigante com uma feição confusa e um tanto engraçada. Nas laterais do grande chocolate, alguns pontos roxos se apresentavam — regiões para o apagamento da existência.
— Ei…
Ela notou a expressão de Higan, que estava ao lado, tornar-se mais séria, e olhou por cima do ombro. O trio de buscas havia finalmente retornado. A felicidade em seu semblante desmaeceu, tomando uma rispidez impessoal.
— Acabaram de procurar? — Apoiou-se na grande mesa da recepção e esperou alguém falar.
Aurelius a reverenciou e deu alguns passos suaves adiante, sorrindo, sereno.
— Não existem traços que indiquem Rotsala nesse território. — Agarrou levemente no longo cabelo dourado. — Declaro oficialmente que Rotsala está morto.
Em resposta, Circe deu um longo suspiro, aprofundando-se num sentimento de resignação e tristeza. Pulou a mesa e caminhou pesadamente até o Deus da Fantasia. Trocaram olhares breves antes de questioná-lo:
— Agora que tem essa confirmação, vai cumprir sua parte do combinado?— Obviamente. Sou um homem de palavra. — Sua voz soava encantadora, invadindo a mente de todos no recinto e trazendo uma calmaria forçosa. — Mas decidi adicionar uma clausula extra nesse acordo… Quero que permita o estudo de suas tecnologias por Benten, A Deusa do Conhecimento. Há diversas coisas úteis e maravilhosas nessa nação, e acredito que o mundo inteiro deva desfrutar delas.
Pensava Aurelius: “Também posso adicionar outra coisa com o tempo…”
— Sem problemas, não tenho nada contra a expansão tecnológica…
— Hahaha, ótimo! Perfeito, perfeito! Como prometido, usarei meu nome para acabar com as ideias de destruir sua nação. Dê-me duas semanas e voltarei aqui, dando certeza da paz!
— Tudo bem…
Pouco tempo depois, o trio foi embora para continuar suas atividades para além daquela fronteira, deixando-os a sós novamente. Circe voltou à mesa, pedindo uma das fotos para Zhemo. Com ela em mãos, observou o olhar de Rotsala.
Em algum lugar de seu coração amolecido por aquelas experiências, queria acreditar que ele ainda estava em algum lugar. Entretanto, naquele momento precisava se focar em administrar aquela nação. Não tinha metade da popularidade do Jornalista Carmesim, mas precisava manter a ordem.
“Pelo menos agora tenho certeza de que não morrerão por causa de um ataque…”
“É destino de todos morrer, mas espero tenham uma vida digna até lá.”
Higan se aproximou vagarosamente e colocou a mão no ombro dela.
— Estamos aqui…
Um sorriso resignado surgiu em seus lábios antes de agradecer: — Obrigado por terem possibilitado tudo isso, buscando a paz. Foram os únicos de fora que conheci e acreditaram na bondade de Rotsala, e com quem pude compartilhar suas histórias… Aquele bobão me deixou mais carinhosa do que achei que poderia ser, mas quero dizer que vocês são quase como irmãos para mim.
— Podemos ajudar você e o avô dele a lidarem com as coisas. — Higan apertou o ombro dela.
— É, sem problemas por mim também!
Enquanto Circe e os outros conversavam, Aurelius e seus dois seguidores mais fiéis trocavam ideias obscuras sobre o futuro, já nos picos gélidos da região.
— Agora, preciso conquistar a confiança dela aos poucos… — O mesmo sorriso doce continuava em sua face. — Vou extrair dela a verdade sobre a Lua Negra, a qualquer custo.
“Quero saber a verdade proibida capaz de fazê-la assassinar deidades.”
— Deve conseguir rápido — murmurou Esra. — Se for verdade aquilo que Ni contou apenas para nós, da Circe poder ser de fora do nosso universo, algo interessante certamente surgirá.
— Essa é com vocês, vou voltar para casa! — Bel acenou e correu para longe, desaparecendo no horizonte como um pequeno pontinho.
Aurelius deu uma longa risada com o jeito desengonçado de Bel, e declarou: — Vamos Esra, é hora de anunciarmos ao mundo a morte de Rotsala! Precisamos convencê-los de que essa nação é merecedora da vida!
Em meses, o véu assombroso que pairava sobre o nome daquela nação se dissipou. Circe, Miguel, Zhemo e Higan trambalharam juntos na administração para cuidar da logística e das novidades. Inúmeros turistas e deuses foram visitar a região e conhecer suas maravilhas.
Alguns mantinham algum certo nível de apreensão por Circe ter tomado o controle do país, mas nada faziam a respeito por medo de contestá-la. Lembravam bem da facilidade dela em chacinar e arrancar deidades da existência; contrariar seria suicídio. Aurelius sempre afirmou que ela estaria em paz desde que nunca tocassem na população, então acreditaram parcialmente no controle da situação.
A impressão de que um tempo luminoso e próspero começaria naquelas terras foi estraçalhada pouco tempo depois. As Manchas do Sol Branco tinham algumas ideias para colocar em prática.
A tristeza dos populares pelo sumiço de Rotsala foi erradicada e deu lugar a uma admiração bizarra por Aurelius. O nome do Jornalista Carmesim foi gradualmente caindo em esquecimento, como se ele nunca tivesse existido. Na presença do Deus da Fantasia, tudo parecia convergir para sua figura santificada.
A admiração se transformou em respeito e, depois, em uma devoção doentia. Milhões de habitantes, em um ritmo sobrenatural, começaram a vê-lo como o único digno de governar, como se suas mentes tivessem sido parasitadas. Circe foi ignorada pelo povo por qual tanto zelou.
Quando ela finalmente percebeu a influência macabra dele… já era tarde demais. Nem mesmo Circe pôde resistir àquela força invasiva que obrigava todos a adorarem Aurelius. Suas defesas ruíram, e, com cada visita dele, algo dentro dela se perdia.
A deusa se apaixonou por Aurelius a contragosto, forçada como em velhas histórias sobre poções do amor. Ele propôs um casamento — seu meio para se aproximar do objetivo final — e ela aceitou com um sorriso belo, acreditando, em sua mente violada, que aquilo era fruto de seus próprios desejos. Seu coração foi espremido até jorrar obediência.
13 Milênios Antes do Calendário da Calamidade, um ano antes da Guerra das Deidades.
O casamento havia ocorrido horas antes, e Circe observava seu vestido branco no reflexo de um grande espelho, com uma mistura de felicidade e incredulidade. O anel de brilhantes, a marca daquele falso e repudiável amor, cintilava em seu dedo.
— Esse dia está sendo maravilhoso… — sussurrou, com a voz embargada, sonhando acordada aquele pesadelo do qual não conseguia escapar.
Todo o amor ardente em seu peito era uma mentira doloroso e revoltante que, quando descoberta, traria náuseas e frenesi. Ainda longe de despertar daquele horror, sorria compulsivamente, crendo naquela paixão como se verdade fosse.
Quanto mais Aurelius fazia ela o amar, forçando-a a isso com sua presença, mais conseguia mudá-la, como um texto a ser retificado. Manipulava sua existência, reescrevendo-a como uma personagem em sua grande obra de Fantasia. Gradualmente, gerou nela uma confiança gigantesca… ao ponto de fazê-la falar aquilo que tanto queria saber.
O relato que Ni o contou: o aparecimento da Lua Negra nas tapeçarias em Juno foi capaz de fazê-la decidir assassinar quatro deidades em questão de segundos. Com certeza era algo importante e crucial para ela, e seria ainda mais impressionante se fosse verdadeira a teoria exposta por Ni: Circe ser de fora daquele universo.
A tentação de descobrir o significado daquele evento profetizado na catedral encheu seu coração, inundando-o em curiosidade. A verdade por trás da Lua Negra, um fato potencialmente vindo de fora do universo… tudo isso fez Aurelius varrer cada grão de sua ética para longe. Aos seus olhos, aquele ato hediondo orquestrado para domá-la não tinha peso quando comparado ao valor dessa possível descoberta.
Em certo dia na semana seguinte, encontraram-se pela manhã no prédio administrativo central da nação. Ambos sorriam docemente um para o outro, mantendo aquela relação doentia e impensável. O Deus da Fantasia bebia chá em um xícara dourada, assoprando vez ou outra o líquido quente. Circe o acompanhava com outra xícara.
— Circe, se me ama de verdade… — A voz de Aurelius rasgou o clima agradável, enquanto seus olhos se estreitaram. — Me diga o que é a Lua Negra.
O silêncio que se seguiu foi sufocante, como se o tempo tivesse congelado. Circe ficou pensativa, sua respiração quase imperceptível, até que escapou de seus lábios:
— A Lua Negra é…
E então, a verdade desabou sobre Aurelius como uma tempestade apocalíptica.
Não foram apenas palavras.
Uma revelação lacerou sua sanidade de forma irreversível. Ele soube, então, da existência de um vazio além das bordas da criação — O Coração da Inexistência. Um lugar onde os mortos de incontáveis realidades eram arremessados em um sofrimento sem data para acabar.
Era um purgatório, um pesadelo sem fim, onde almas gritavam em agonia, esmagadas por medo e dor infinita. E Circe… Circe havia enviado milhões para lá por conta própria.
Mas o pior para ele não foi saber do sofrimento naquele espaço. O pior foi saber que tudo isso existia por um certo plano inconclusivo, que Circe apoiava devotamente. Não existia qualquer certeza de que aquilo iria funcionar, mas ela empurrava incontáveis para agonizaram lá, aguardando algum milagre.
A Lua Negra servia como uma forma de erradicar toda a vida de uma realidade de uma só vez. A profecia deixava claro que aquilo era o aparente destino, aquele mundo seria afetado pelo fenômeno em algum momento, e todos que Aurelius conhecia iriam ser afogados naquele horror interminável.
Quando a verdade finalmente foi processada por Aurelius, seu sorriso — tão orgulhoso, tão seguro — desmoronou. Seu rosto transfigurou-se em horror puro, seus olhos tremendo como se encarasse um demônio.
Seu peito ardia com um terror primitivo, como se cada fibra de seu corpo gritasse que ele estava diante de algo inatural, algo que não deveria estar lá. Ele tocou o próprio rosto e sentiu lágrimas, lágrimas de desespero.
Sabia que, não importava o que fizesse, nunca mais sorriria.
— Você continua fazendo isso… por quê? — questionou, a voz embargada e arranhada.
— É o único jeito que conheço de alcançar o bem maior… Pode demorar, mas em algum momento, tudo deve se resolver.
“Esse plano, o resultado, não vale a agonia de tantos…”
O plano final ███ ███████ ██ ██ ██████ ███████ ██ █████:██████████ █████ ██ ███████ ██ ██████, █████, ███████ ██████ █ █████ ██ ██████ ███ ███████ ███████, █ █████ █████ █████ ██ ██████ █████ █████ █ ████████. █ ███████ ███ █████ ████████ ████ ██████ ██████ ███ ███████ █████ ██████, ███████ ██ ██████ ██████ ██████ █ █████ █████ █ █████ █ █████████.
“Eu preciso fazer alguma coisa para intervir nisso.”
Os dias voaram, rápidos como uma ave de rapina, trazendo inúmeros momentos em que viram Aurelius aos pedaços. O mundo inteiro se perguntava, genuinamente, do estado do Deus da Fantasia. O belo sorriso radiante e a serenidade mágica que fluíam dele desmaeceram até morrer. As olheiras pesadas, os tremores e os murmúrios desconexos, tudo gritava sua decadência.
Alimentava-se mal, dormia mal e mal tinha noções de autopreservação. A dor daquela descoberta o rasgava de ponta a ponta todo santo dia, afogando sua mente em pavor e desesperança. Não pensava mais em si, pensava apenas nos levados ao Coração da Inexistência, amargando a incapacidade de fazer algo sobre isso.
As preocupações crescentes tomaram-no por inteiro quando alucinações vieram, puxando ainda mais sua figura para as sombras. Embora tudo piorasse, em sua mente ainda havia resquícios de algo singular: uma ideia intocável… e tão palpável aos seus olhos.
Esvaziado de outras razões para além de intervir naquela crueldade cósmica, moveu-se para lutar contra o destino. Isolou-se de tudo e todos, indo até as profundezas de um templo abandonado que venerava uma deidade sem nome ou registros. Prostrado diante de uma estátua sem braços, permaneceu lá por meses, até conseguir compreender a essência do poder divino.
Teve sucesso em sua busca.
Aos seus pés, estendia-se um colossal e intrincado símbolo ritualístico, irradiando com uma luz dourada e majestosa. Suas linhas e padrões complexos tornavam a mera experiência de observar em um espetáculo, como se observasse o céu estrelado. O Ritual de Transcendência — a fórmula para tornar qualquer humano ou animal em uma divindade incompleta, um semideus.
“Com isso… talvez este mundo ainda tenha uma chance contra a Lua Negra.”
O ritual era apenas o começo. Além daquele plano existencial, além das ilusões da realidade mundana, algo muito maior o aguardava.
“Preciso fugir dessa realidade… e encarar o que há do outro lado.”
“Se eu não desmanchar o Coração da Inexistência e ele… minha vida não terá utilidade.”
Nos meses seguintes, Aurelius demonstrou o ritual para várias pessoas de sua confiança, forjando a primeira geração de semideuses na terra. Aquele feito foi recebido com uma mistura de surpresa e pavor, mas era o estado dele que mais chamava atenção. Parecia ainda mais pálido, quase cadavérico, e seus olhos verdes — antes reluzentes como esmeraldas — estavam opacos, sem brilho.
O fim do ano estava próximo. Ele convocou uma reunião geral e chamou quase todas as deidades para participarem. Reuniram-se 96 deuses naquele evento, acompanhados de 12 semideuses e 400 humanos de grande importância. Foram ao interior do templo de marfim em que ele e Circe se casaram.
Um clima tenso e desagradável pairava no ar, como um mau agouro, uma presença pestilenta. Muitos convidados forçavam as costas contra os bancos, tentando sentir uma mínima segurança naquele espaço impregnado em angústia. Poucos eram os que mantinham a compostura diante na nova face de Aurelius.
De pé no altar, ele segurava um microfone rudimentar — criação de Benten. O sistema de som ao seu redor era uma réplica grosseira da tecnologia que Rotsala trouxe para aquele mundo com seus jornais. Funcionava, mas com limitações: fruto de engenharia reversa, estava longe de ser perfeito.
— Eu vim fazer um anúncio! — Com a mão livre, gesticulou. — Meses atrás, fiz uma descoberta terrível! Consegui descobrir qual é a função e o significado da Lua Negra, e o motivo de sua existência!
O medo incrustado no ambiente foi varrido e deu lugar a um entusiasmo claro de muitos dos convidados. Olhavam animados, esperando que o anfitrião revelasse para todos a verdade.
— Criei o Ritual de Transcendência para termos uma chance de sobrevivência contra esse cataclismo! — As mãos tensas e trêmulas racharam o microfone, reverberando um chiado. — Consegui compreender a essência da energia divina e do Roha, e quero criar muitas outras coisas!
Aurelius respirou fundo e gritou:
— █████ ██ ██████ ███ ████ ██ ███████ █ ███ █████ ██ ██████ █████████! ███████████ ███ ███ ███ ████ ████ ████████, █ ███ █████ █████████ ███████████ ██ ███████ ████████ ██ ██████ ██ █████ ██████! ███ ███████ ████████ ████ ████ █████ ███████ ████ █████ ██ ██████ █ ███████ ███████, ███ ████ ███ ███ ██████! ████████ ███ ██ ███ █████ ██ ██████ ████ █████ █ ████████ █████ ████ ███████!
Quando as últimas palavras ecoaram pelo salão, um silêncio pesado tomou conta. Os olhares se cruzaram, cheios de dúvida e confusão, como se cada presente tivesse ouvido algo radicalmente diferente. O curto discurso parecia quebrado, terrivelmente fragmentado e distorcido.
Um murmúrio inquietante começou a surgir das fileiras de convidados, primeiro como sussurros isolados, depois crescendo em volume e intensidade. O som se propagou no salão como fogo em palha seca. Perguntas sem respostas saltavam entre os grupos.
À medida que o caos crescia, Aurelius permanecia no altar de marfim, a expressão piorando a cada segundo. Sua determinação inicial, a pequena fagulha de coragem que o levou a organizar aquela reunião, dissolvia-se como sangue em água corrente. Seu olhar morto agora vagava sem foco pela multidão, buscando uma explicação.
Ele repetiu suas palavras, mas, novamente, ninguém o entendeu.
Repetiu.
Repetiu.
Outra vez e de novo. Nada podia ser entendido.
— O que você está tentando dizer?! Não sou capaz de ouvir nada além de um ruído estranho e abafado! — contou Vegarten, a voz elevada, quase gritante.
“Não… isso não pode ser verdade…”, remoía na própria cabeça, enquanto lágrimas pingavam no marfim.
“Sem que me entendam, como poderei formular um plano para fugirmos dessa realidade e acabar com tudo isso?!”
E quando instintivamente gritaria aquelas palavras outra vez, viu-a na entrada, imóvel como um espectro. O sorriso desconcertante emoldurado pelos cabelos brancos e rosados, delicados. Circe caminhou adiante pelo salão, de encontro ao altar, cada um de seus passos fazendo Aurelius encolher mais os ombros, como se sentisse que algo o esmagaria.
— T̴e̵m̵̴ a̸l̸g̷o̸̷ d̷e̵̶ e̸r̴r̶a̷d̶o̵,,̵̸a̴m̴o̵r̴?̸
Algo a seguia. Uma presença monstruosa, vasta e inescapável, que só os dois podiam enxergar, apartados do resto dos viventes. Uma força distorcia o ar atrás dela, sugando a luz e a razão. Emergiu das sombras um grande olho roxo, pulsante, fixando-se nele com frieza. Não era um mero olhar, parecia diluir a consciência de Aurelius como sangue em água corrente.
— H̸o̸j̷e̴̴ é̷̶ n̵o̵s̴s̸o̷̴ p̶r̴i̶m̵e̵i̸r̵o̸̸ a̶n̷i̵v̴e̴r̸s̶á̵r̵i̸o̴̴ d̷e̴̵ c̶a̵s̶a̸m̷e̵n̵t̸o̷!̵
Ela trajava o impecável vestido branco, segurando um buque de muito bem arranjado. Circe tinha uma beleza intrínseca, como uma rosa vivaz, porém, também como uma rosa, trazia seus espinhos. Aurelius sentia-se perfurado e pressionado por mãos inexistentes.
A deusa piscou.
Parou de sorrir.
— V̸̭̓͊̓̍̇ͅo̸̦̳̲̟͘c̵͈̓̆ế̴̸̟͈͈͔̣͂͂̆̉̕͠͠ͅͅ e̷͈͙̦̗̫͌͛̏̕s̷͇̭̱̣͐͋͠t̷̳̜̺͔͌á̷̴̡̼̬̈̀̐m̶̜̥͔̣̤͂̈́̓̀̚e̶̸̺̲̿͋̇͝ö̶̮̖̞̱́̕͠ͅṳ̵̡̼̎v̴͖̲̈́̃͝i̵͍̞̕n̸̗̼͙̫̅͊͋̊͜͝d̴͉̥̓̚o̸̥͛̀͝?̷̡̈́̄̈́̇̉
Era como um nó na garganta; Aurelius gritou novamente aquelas palavras. Ouviu a própria voz minguar e se tornar um ruído irreconhecível, perturbador. A presença do olho estava mais forte, opressiva.
“Isso está censurando a realidade? Está devorando a verdade?!”
“D-deve ser parte daquela coisa lá de fora…”
Circe o alcançou e estendeu o buque para ele, no aguardo de uma reação. Aurelius permaneceu de pé no altar, em silêncio, imerso na visão daqueles olhos rosas por tanto tempo que perdeu a noção de seus arredores. Cada parte de si doía, ardendo com uma ansiedade flamejante.
Aquele momento parecia eterno, além de eterno.
“Existem incontáveis realidades, inúmeras pessoas e civilizações diferentes fora daqui. Eu… Eu não posso aceitar que essa infinidade de seres caía naquele purgatório insano por causa de ██████-███████████████. O plano tem uma boa finalidade, mas, mas… Tanto sofrimento não vale a pena. Um verdadeiro vazio eterno é um final melhor para todos.”
“Aurelius… Aurelius… pense…”
Sangue escorria na palma da mão, pressionada brutalmente pelas unhas.
“Sacrifícios sempre são necessários, e esse plano de Circe e ██████-███████████████ corrobora isso. Eles levaram esse absurdo adiante como um sacrifício necessário para um bem maior… Por que eu também não poderia?”
Seu olhar, arregalado, se voltou aos convidados.
“Talvez… Talvez se eu ficar forte o suficiente, possa utilizar a Definição da Fantasia para corromper as barreiras da realidade… Tudo pode ser uma ficção se houver Roha o suficiente, tudo…”
Uma espada de lâmina aguda empalou Circe, bem no coração.
“Caso seja necessário destruir poucas vidas para salvar muitas outras, não devo me dar ao luxo de pensar duas vezes.”
“Esse mundo perecerá para me permitir desafiar esse destino. Somos como uma pequena gota d’água, nossas mortes são irrelevantes em comparação com a ideia de salvar o oceano como um todo.”
“Empurrar meus semelhantes para o abismo para poder salvar uma infinitude de outros merecedores de paz… Parece um preço pequeno a se pagar.”
“Serei eu então a Lua Negra desse mundo! Consumirei tudo para aumentar minha força antes que esse fenômeno ocorra! Todas as outras realidades precisam de mim!”
Com a espada que criou através da própria imaginação, rasgou o torso de Circe, derrubando-a no chão. O vestido branco coloriu-se em escarlate sangrento, e os olhos cor de rosa perderam o brilho inocente que tinham até aquele instante.
Enquanto lentamente percebia tudo que Aurelius havia feito com ela, seus lábios tremulavam de ódio. Assédio era pouco para descrever tê-la forçado a um falso amor incondicional e a um casamento. Um ato hediondo, uma humilhação indescritível para extrair dela o conhecimento mais importante de sua vida: sua razão de ser.
Ele desfez a lâmina e deu alguns passos para trás.
— Ninguém além de nós dois é capaz de saber disso agora… Você está fadado a ser incompreendido para sempre. — Sorriu, o rosto furioso tornando-se rosado, como se estivesse em exstasse. — Você voou perto demais do sol, e agora vai se queimar.
Em um piscar de olhos, ela se levantou, fazendo com que emergissem do chão diversas de suas invocações

Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.