Índice de Capítulo

    O ar pesava como aço sobre os ombros dos convidados. As expectativas pelo que viria a seguir rastejavam por suas mentes, uma mistura de medo e curiosidade mórbida.

    No altar, Circe e Aurelius trocavam olhares enquanto as invocações ganhavam forma. O Deus da Fantasia materializou uma rapieira afiada — a lâmina reluzente apontada para baixo —, empunhada à altura do pescoço.

    — O que é esse olho roxo atrás de você? — perguntou Aurelius, e logo depois notou a confusão nos rostos ao redor. Ninguém mais parecia ver.

    — Acha que tem direito a perguntas depois do que fez? — Circe arrancou a foice das mãos de uma de suas invocações e a empunhou com firmeza.

    O homem loiro baixou o olhar, um suspiro inquieto escapando. Saber a verdade por trás daquela força que censurava a própria realidade era um desejo que queimava como o sol. Tinha palpites do que era, mas só ela poderia confirmá-los.

    — Irritante…

    Num movimento rápido como um relâmpago, Aurelius avançou contra o avô de Rotsala. Sua mão livre projetou-se em direção ao pescoço do homem, pronta para tomá-lo de refém.

    Mas…

    Por trás, Circe o interrompeu. Agarrou pelo ombro e, num golpe preciso, cravou a foice em suas costas tão profundamente que a ponta da lâmina saiu na frente. Aurelius olhou de relance o vestido ensanguentado dela e, olhando para si, viu suas vestes ganhando o mesmo tom.

    — Todo loiro é covarde e aproveitador? É um padrão que tenho notado na minha longa vida… — Soltou do ombro e puxou para fora a lâmina, deixando o sangue fluir livre.

    Em resposta, o deus elevou o Roha, e Circe o acompanhou nessa escalada de forças. A energia densa de ambos tornou-se visível a olho nu, sem necessidade de esforços para enxergá-la. Uma obscuridade que parecia não ter fim, contraposta a um dourado tão lindo que enojava.

    — Vegarten… — Aurelius lançou um olhar macabro contra a deusa. — Nos cure agora, quero que nós façamos isso em perfeito estado.

    Receosa, a deidade acatou ao pedido sem questionamentos e curou os dois.

    — Affhh… Vamos para um lugar vazio, não quero causar problemas para meus habitantes. — Apoiou a foice no ombro.

    — Sem objeções por minha parte.

    Tudo ocorreu muito rápido, e, quando os deuses se deram conta, parte do teto estava em destroços. Uma pesada poeira pairava no ar e a luz solar invadia o espaço pelo buraco na estrutura.

    — Para onde eles foram?! — gritou Zhemo, sentindo um calafrio percorrer a espinha.


    O vento soprava sem piedade, avançava sobre as dunas esculpindo e remodelando o deserto em grandes ondas de areia. Não existia nada naquela área além do arenoso amarelo que tudo cobria. Nem mesmo cactos se atreviam a nascer e fincar suas raízes naquela escaldante vastidão.

    Separados por meros passos: Aurelius e Circe. Seus olhares, carregados de rancor e ressentimento, cruzavam-se como navalhas enferrujadas. Permaneciam com suas armas empunhadas, preparados para tudo.

    — O que você pretende fazer agora? — perguntou ela, a voz firme e decidida.

    — Quero destruir e consumir todos os deuses… Assim, com minha Definição da Fantasia, vou poder romper as barreiras desse universo e ver o que há lá fora… — Apontou a rapieira. — Sei que você está recebendo ordens, e suspeito que esse olho roxo que flutua atrás de você seja um fragmento dele. Embora nunca tenha feito parte dos meus planos dizimar todos que me amam, essa coisa censurando a realidade me fez reconsiderar esses ideais. Antes, queria proteger o mundo da Lua Negra, até por isso criei o Ritual de Transcendência, mas agora vejo que isso não é importante.

    Aurelius fechou os olhos e continuou: — O destino de todos nós é decair até esse abismo de sofrimento infinito, é uma lei inescapável estipulada em nome de um objetivo. Compreendo perfeitamente a bondade no ideal final, mas esse plano é incerto e acredito que não valha tanta angústia. Pode ser que infindáveis humanos passem bilhões de anos ou até mais condenados a essa loucura, sem um mísero sinal de resultados. Honestamente, meu coração treme apenas de imaginar-me em tal posição… Eu tenho medo e não me envergonho de admitir isso, temo esse inferno!

    Abriu os olhos, estreitados e irritados, e concluiu: — No entanto, se há uma remota possibilidade de destruir o Coração da Inexistência e livrar essa infinitude de pessoas desse tormento, aceitaria algo incomensuravelmente pior sem hesitação! Uma única vida não vale a de bilhões! E um universo não vale mais do que incontáveis outros! Vou te matar aqui e destruir esse mundo antes da Lua Negra surgir em nossos céus… Preciso ser rápido e, para isso, não irei me conter! Salvarei todos!

    A energia dourada foi expandida pelo espaço, movendo as dunas tão violentamente que os ventos pareciam irrelevantes. Circe continuava parada no mesmo ponto sem dificuldades, os cabelos esvoaçando com o Roha massivo do inimigo.

    — Alguns amam se martirizar, né? — ironizou, erguendo a foice com as duas mãos. — Conhecendo as coisas, provavelmente foi Ni quem te deu a ideia de arrancar essas informações de mim!

    — Sua suposição está correta!

    “Aquele desgraçado não cansa de causar problemas… Pelo menos Aurelius é incapaz de compartilhar a verdade.”

    — Bem… — O Roha massivo e obscuro se contrapôs ao de Aurelius, acelerando o deslocamento de areia. — Primeiro, vou matá-lo! Em seguida, caçarei Ni até nos confins deste mundo… e depois procurarei Rotsala!

    Um breve silêncio, movimentos suaves de seus pés se preparando.

    Circe e Aurelius moveram-se para a batalha.

    Quando suas lâminas se chocaram, o impacto não foi trivial. Uma onda de choque poderosa explodiu do ponto de contato, uma ventania uivante. A força do golpe levantou as areias circundantes com brutalidade. Como um tsunami amarelado, a tempestade de areia varreu tudo no caminho, engolindo rochas e apagando qualquer vestígio de vida em dezenas de quilômetros.

    Firmaram seus pés na camada rochosa que jazia abaixo das dunas, o arenito firme. Aproximavam os rostos, forçando um a arma do outro. Ambos sentiam os braços tremerem com a pressão.

    — Nosso divórcio, Aurelius! — Os lábios se torceram em um sorriso selvagem. — Vou oficializar isso quando separar sua cabeça do pescoço!

    Rapidamente, Circe concentrou Roha nas pernas e se moveu na base da força bruta. Rompendo a barreira do som, derrubou Aurelius, que rolou pelo arenito por vários metros.

    Aproveitando-se de sua perda de equilíbrio, ela veio como um raio, destroçando o solo no caminho. Aurelius sentiu a movimentação e rolou para o lado, evitando por pouco centímetros um corte monstruoso da foice.

    O loiro se levantou rápido, notando a cratera estreitada ao lado, que parecia ruir sobre si mesma.

    Ele pensou: “A força física dela é razoável.”

    Um vulto em sua visão periférica o fez por reflexo concentrar Roha para atenuar o impacto.

    Um erro.

    Circe o atingiu em cheio, de um segundo para o outro, mandando a maior parte da concentração de energia para a ponta da lâmina. Golpeado quatro vezes acima da velocidade do som, Aurelius teve o braço direito arrancado e parte da barriga cortada.

    A rapieira foi ao chão e, quando ela o atingiria outra vez, uma lâmina bloqueou o movimento. Toda a velocidade foi dissipada facilmente, explodindo em uma corrente de ar. Os olhares se cruzaram.

    — Como chegou aqui tão rápido? — perguntou ela, livre de preocupações.

    — Sou uma semideusa… Não espere que eu seja lenta. — A expressão pesada e sanguinolenta mantinha-se imutável.

    Circe e Esra Vortiger forçavam impetuosamente suas lâminas diante do Deus da Fantasia.

    “Mais forte do que eu esperava…”

    “Para ter conseguido bloquear meu ataque tão fácil assim, possivelmente suas capacidades estão ligadas com uma anulação de danos.”

    “Não uso isso desde a época da catedral…”

    — Revelação Apoteótica: Ein Sof.

    O céu inteiro tornou-se negro, pulsando como um coração desolado, tomado por uma dor aguda. Fraturas na realidade abriam-se em todos os cantos, rasgando a existência de tudo aquilo que não possuía Roha.

    O arenito lentamente sendo devorado por um púrpura que trespassava a escuridão. Gradualmente, tudo tornava-se roxeado e frágil, apagável.

    Acima, Esra e Aurelius notaram uma grande forma. Pairava além da escuridão abismal que tornou dia em noite. A criatura mais branca que todas as tonalidades que deveriam existir havia retornado. Seus milhares de metros, um colosso, fizeram a intrusa se distrair.

    A espada dela, manchada em púrpura, foi desintegrada, consumida pelo toque da foice. E tudo piorou para ela quando emergiu do arenito uma enormidade de invocações, um mar de criaturas vorazes que traziam ainda mais camadas de roxo ao mundo, e até para sua pele.

    Aurelius balançou a cabeça, como se estivesse lidando com uma criança impertinente. Sua gargalhada subsequente deixou Circe e Esra confusas por um momento. A hemorragia que jorrava de suas feridas estancou, cessando por completo.

    — Que comece minha grande ficção! — Seu braço foi reconstruído, agora em um dourado translúcido e cintilante. — Podemos parar com as brincadeiras, não acha?

    A seguidora do Deus da Fantasia recuou, escondendo-se atrás dele. Com um gesto despreocupado, ele forjou outra espada através da imaginação e entregou a Esra.

    — Então vamos levar isso a sério? — O olhar rosa de Circe brilhava com antecipação e prazer, animada pela chance de matá-lo. — Para mim, parece perfeito!

    Aurelius deu passos largos adiante, erguendo um dos braços para o céu negro e púrpura. A energia dourada fluiu até a ponta dos dedos.

    — Se você precisa tornar as coisas roxas para poder apagá-las da existência… Então removerei o azul e o vermelho do campo de batalha! — Estalou os dedos majestosamente. — Revelação Apoteótica: Alteração!

    O ambiente tornou-se verde, a cor restante.

    “…?”

    — Você está de sacanagem com a minha cara, não é?! — A deusa suspirou e revirou os olhos, não acreditando naquela jogada escarnecedora.

    Na ausência das cores que formavam o roxo e diversas outras tonalidades, aquela habilidade tornou-se inútil.

    “Puta merda…”

    Ele puxou Esra suavemente pelo braço, colocando-a lado a lado consigo. A mulher de cabelos laranjas e pretos, que agora eram vistos apenas como dois tons de verde, brandiu a espada, ainda perplexa com ideia de seu líder para se livrar daquele problema.

    — O resto é comigo… Você lida com ela. — A seguidora dobrou os joelhos, preparando-se para correr. — Revelação Apoteótica: Donnerblitz!

    Esra, como Circe antes fez, quebrou a barreira do som. Em míseros milésimos de segundo, milhares de invocações foram despedaçadas pelos cortes selvagens da espada imaginária. O som de seus movimentos ecoava como um assovio agudo, girando em turbilhão pelo campo de batalha.

    Nos instantes seguintes, a devastação contra o exército da deusa só aumentou. Pedaços de corpos e gotas de sangue voavam no ar, formando uma terrível tempestade sangrenta. O caos despertou a atenção do colosso invocado, que ergueu seu braço alongado e o desceu contra o campo de batalha.

    Com seus oito mil metros de altura, o monstro era uma visão catastrófica. Mesmo em meio a loucura do massacre, a espadachim reagiu no último instante, erguendo sua lâmina para conter o impacto. O golpe, capaz de esmagar montanhas, foi neutralizado com um simples movimento de sua espada.

    — Haha… — Esra saltou, fincando a arma na carne do colosso antes de correr em velocidade extrema pelo seu braço, rumo à cabeça.

    De repente, Circe surgiu ao lado dela, também acima da velocidade do som. A espadachim reagiu e bloqueou um golpe vindo das costas sem olhar, apenas movendo a espada para trás de si. Virando-se, interceptou dezenas de ataques de foice, anulando cada um deles.

    O Roha empregado nos ataques de Circe seria o suficiente para ferir qualquer semideus. Entretanto, ela não era uma qualquer, decerto não era. Com um sorriso no rosto, causado pela adrenalina, ela revidou com um único ataque.

    Voltou.

    Circe recebeu de volta todos os danos anteriormente anulados, sendo jogada ao chão como um meteoro. A pressão massiva arrebentou alguns de seus ossos como vidro e abriu uma série de feridas. Mesmo com a defesa enorme do Roha, ela não era imune às próprias forças.

    — O que há com essa garota…? — Seus lábios formaram um sorriso curioso, vendo ela correr como um raio pelo braço da grande invocação.

    Esra percorreu os oito quilômetros do braço da criatura em pouco mais de 8 segundos. No instante em que alcançaria o ombro, a monstruosidade simplesmente abocanhou e engoliu um pedaço de si com ela junto.

    — Oh… Ora… — sussurrou Aurelius, botando as mãos na cintura e esperando com um sorriso cínico no rosto.

    A cabeça da criatura foi aberta de dentro para fora, desabrochando como uma flor. Incontáveis rastros de Roha, deixados pelos rasgos da lâmina, tomaram conta do grande corpo. A luminosidade dos ataques contrastante à escuridão acima.

    Quando aquilo morreu, as trevas foram varridas do céu e deram lugar ao estranho brilho verde. As nuvens de tons esverdeados e claros cruzavam a vastidão.

    Ela despencou do alto, mas no último centímetro sua espada tocou o arenito e toda a força da queda foi anulada. Ergueu-se, orgulhosa, apontando a arma para a deusa enquanto exibia seus longos cabelos.

    — Seu cabelo agora parece um monte de alface…

    — Ah, tá… Por um momento esqueci que tudo ficou verde. — Esfregou os olhos.

    — Ótimo trabalho, Esra. — Aurelius a alcançou e acariciou seus cabelos, enquanto, em simultâneo, via resignadamente Circe se levantar logo à frente.

    O som dos ossos fragmentados sendo movidos e a visão do sorriso alegre de Circe, manchado de sangue, deixavam claro que ela não iria desistir, que aquilo não foi um problema. Firmada novamente no chão com seus pés, ergueu a foice e a apontou para Aurelius.

    — Uma vez, no passado desse mundo, eu causei uma catástrofe mundial e mergulhei tudo em um mar de trevas cinzentas. — A voz soava doce, alegre como a de uma criança entusiasmada. — Quando cometi o massacre na catedral, apaguei biomas inteiros da existência!

    Um breve silêncio decorreu.

    — Está disposta a fazer isso novamente? — perguntava o loiro, deixando escapar uma expressão um tanto misteriosa em seu semblante.

    — Ter removido a cor roxa da existência dentro do campo de batalha… Isso definitivamente dificulta minha vida. Entretanto, ainda tenho essa cartada na manga! Se for necessário, me matarei para te matar! — As mãos, pingando o sangue quente e vivaz, ergueram a foice acima da cabeça.

    Antes que Circe pudesse dizer suas próximas palavras, Esra avançou novamente acima da velocidade do som. Num piscar de olhos, a deusa viu a seguidora de Aurelius a poucos metros de si. A lâmina imaginária se aproximava mais, mais e mais, até que…

    — Chega! — Higan, o Deus da Vingança, interceptou o golpe com uma espada de lâmina serrada. Enquanto mantinha o movimento da inimiga travado, virou levemente a cabeça para trás. — Circe, acho que você não gostaria de ver a gente aqui, mas não vou me importar muito com isso agora.

    Zhemo, O Deus do Tormento, surgiu logo depois, posicionando-se à esquerda de todos, observando calmamente ao longe. Seus olhos azuis e roxos fincaram na figura de Aurelius, sabendo que era o alvo prioritário.

    — Senhor Aurelius! O que devemos fazer agora? — Com a aparição de dois deuses para auxiliar a portadora da foice, sentiu apreensão, principalmente por não conhecer suas capacidades.

    — Esra… — quando proferiu isso, uma grande chuva negra, um pó obscuro começou a descer do céu. Acumulava-se rápido, como dunas negras que tomavam o lugar da areia. — Tape os ouvidos se quiser.

    “Esse cheiro…”

    “Isso é pólvora?!”

    O pó explosivo gerado através da imaginação de Aurelius se infiltrou em tudo. Para todos os lados, até o horizonte, tudo estava escuro, cinzento e negro. Camadas e mais camadas erigiam-se, como verdadeiras e imponentes montanhas.

    — Interessante… — Circe murmurou, segurando ainda mais forte o cabo da arma.

    — Benten me ensinou a composição química da pólvora, agora posso apenas imaginar e trazer ao mundo. — A mão livre foi levantada num movimento suave, como de um maestro. — Custou muito de meu Roha, mas são 700 milhões de toneladas de pólvora aqui nesse deserto…

    Todos tomaram suas ações segundos antes da explosão catastrófica.

    Higan gritou: — Revelação Apoteótica: Abram-se os Portões dos Quatro Ventos; Norte, Sul, Leste e Oeste!

    Zhemo proclamou: — Revelação Apoteótica: Aka Allghoi Khorhoi!

    — Revelação Apoteótica Completa: Elipse. — Circe desceu a foice e sua escuridão infinita contra o estrondo.

    Apoie-me

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota