Capítulo 47 - A Odisseia de Circe Lethê Parte 10
No templo na nação de Rotsala, deuses e semideuses discutiam confusos sobre o que estava acontecendo. Muitos que gostavam de Aurelius, por conta de sua influência sobrenatural, agora questionavam sua figura. Embora parecesse tão deprimido e miserável trouxesse má impressão, vê-lo empalar a própria esposa no dia do aniversário de casamento, em pleno altar, indiscutivelmente era pior do que parecer um cachorro abandonado.
A estranha força carismática começava a se desentrelaçar das mentes, em alguns mais rapidamente. Em paralelo às discussões, três deusas conversavam entre si.
— Não esperava que Aurelius fizesse isso… Não aparentava ser desse tipo. — Benten cruzou os braços, mantendo o olhar no chão. — Existe um detalhe que me deixa preocupada com Circe nesse duelo entre ela e ele. Aurelius nunca compartilhou a Definição da Fantasia com ninguém e, por conta disso, não há quem saiba como ela funcione.
— Considerando que ele era apenas um humano comum e se tornou uma deidade, não esperaria algo além de fantástico. Ele sempre esteve fora de todos os limites que conhecíamos. A maior prova disso é o Ritual de Transcendência — dizia Vegarten, inquieta. — Mas… Circe é capaz de apagar coisas da existência em questão de segundos, não deve ser difícil para ela.
— Curioso que estejam torcendo por ela desse jeito… — apontou Etinova, a Deusa do Equilíbrio. A elfa de cabelos verdes como grama e orelhas pontudas sorriu, tranquila. — Até pouco tempo atrás a maioria das deidades queriam vê-la morta, então me soa um tanto engraçada essa mudança.
— Depois de ter visto a expressão de Aurelius ao tentar matá-la aqui dentro, prefiro ficar do lado de qualquer coisa que esteja contra ele. Ninguém que eu gostava em particular foi morto por Circe, então pouco me importa. Ficarei do lado dela — confessou e explicou Benten, erguendo o olhar novamente para ver o céu azul através do buraco no templo.
— Se vamos fazer algo, deveríamos ir agora… — Vegarten bateu os dedos de madeira contra a palma. — Zhemo e Higan foram na frente tentar ajudar. Acho que está na hora de fazermos alguma coisa, nem que seja para colher informações.
Minutos depois, reuniram-se fora do templo. Era hora de partirem rumo ao campo de batalha… Entretanto, algo estranho aconteceu.
Um clarão irrompeu no horizonte, tão violento que pareceu rasgar o céu. A luz branca e amarelada inundou tudo. Tão brilhante que fez até mesmo os deuses fecharem ou semicerrarem os olhos. Uma onda de calor, decorrente da luminosidade, chegou aos seus rostos, trazendo uma sensação de ardência na pele.
— O-o que é essa coisa?! — Etinova cobriu os olhos por reflexo.
— Ah… O Aurelius começou a agir. — Benten elevou o Roha para não sentir nenhuma consequência do calor. — Avisem para todos os deuses se prepararem para o impacto.
— Impacto?!
— Por essa quantidade de energia, esse brilho, uma explosão catastrófica aconteceu a 900 quilômetros daqui, algo próximo disso. A onda de choque deve chegar em 12 minutos ou um pouco menos. Digam para todos se prepararem e deem um jeito de não se machucarem muito.
Benten estalou o pescoço, balançou a cabeça e, então, caminhou, acelerou numa corrida e saltou rumo aos céus. Centenas de metros acima do templo, fechou a palma da mão e um grande dragão mecânico surgiu abaixo de si.
Montada, aumentou a concentração de Roha, gerando um compacto campo eletromagnético com o Elemento Raio.
— Vamos voar até a onda de choque e atravessá-la, amigo. — A deusa acariciou o dragão metálico, que logo mergulhou rumo ao chão, ganhando velocidade antes de erguer-se novamente. Sorria animada pela situação, e julgava-se estranha por isso.
“Então é esse fim que ele decidiu dar para a pólvora? Que interessante…”
“A onda de choque deve estar, nesse momento, viajando entre 6 a 7 vezes acima da velocidade do som.”
— Vai ser fácil… — Abaixando mais no dragão, segurou-se com mais força para não cair.
Benten canalizou o Roha, reforçando o campo eletromagnético ao redor do dragão mecânico. Como dois ímãs com polos idênticos se repelindo, ela ajustou a polaridade do campo para criar uma força de repulsão direcionada para a frente.
Quando o campo atingiu grande intensidade, ela liberou um pulso magnético. Foi como se o dragão fosse arremessado por um estilingue gigante. Cada novo pulso amplificava a velocidade exponencialmente.
Cruzavam o céu como um míssil, deixando um rastro elétrico para trás. As repulsões aumentavam, cada vez mais violentas, até que o dragão se igualou e, posteriormente, superou a velocidade da onda de choque. Havia alcançado Mach 12: 4,1 quilômetros por segundo.
O campo eletromagnético ionizava o ar ao extremo e criava uma zona de vácuo parcial adiante, eliminando quase totalmente qualquer atrito com a resistência do ar. Seguiam sem perturbações. Os cabelos azuis esvoaçavam com a velocidade insana, e ela ria de olhos fechados.
“Certo, considerando nossas velocidades, vamos nos chocar em menos de dois minutos!”
O solo ao redor parecia um borrão incompreensível por conta da agilidade imensa. Árvores eram carbonizadas por uma incontável quantidade de raios gerados pelo campo. Tudo era lançado para o alto com a passagem do dragão e suas ondas de choque contínuas em formato cônico. Nuvens em baixa altitude eram dissipadas e cumes de montanhas eram arrancados como folhas.
A deusa se levantou, ficando de pé no dragão antes de unir suas mãos lentamente. Permanecia serena, vendo aquela parede de ar maciço — a onda de choque supercomprimida — se aproximar.
Alcançou a área do deserto e viu o mundo tornar-se verde por efeito dos poderes de Aurelius. Enquanto toda a areia próxima virava vidro, ela respirou o ar rarefeito e quente, entoando: — Revelação Apoteótica: Dharmapala.
Rasgando os céus como mísseis, surgiram novos noventa e nove dragões, altamente carregados de eletricidade. O campo eletromagnético se expandiu e ficou cada segundo mais intenso. Benten, que agora tinha um Dharma acima da cabeça, utilizou mais da metade de seu Roha para uma próxima ação: intensificar aquilo ao máximo.
Uma luminosidade brutal irradiou do campo. Toda a luz ao redor era distorcida, como se estivesse ao redor de um buraco negro. O tempo-espaço se curvava. O céu, solo, tudo parecia esticado, duplicado e invertido por efeitos visuais do campo abismal criado pela deusa. A luz era refletida com perfeição pela área esférica, como um estranho espelho gigante.
Instantes depois, a eletricidade vazou para fora. Uma espiral de raios que pareciam estáticos, parados no tempo. Subsequentemente, uma série de explosões intensas começava a tomar conta dos arredores, desmanchando tudo.
“Preciso estudar como melhorar isso ainda mais…”
Os dragões se uniram, próximos uns dos outros, concentrando toda aquela força bizarra. Uma aurora boreal surgia acima enquanto a deusa preparava-se para desferir um único soco.
A onda de choque, sete vezes acima da velocidade do som, contra um campo eletromagnético extremo e concentrado.
A resposta era óbvia: com um soco, Benten atravessou.
A pressão enorme foi defletida para os lados por uma distorção espacial. Ela atravessou a massa de ar de milhares de graus tão facilmente quanto uma agulha furaria tecido. A explosão gerada pelo encontro devastou ainda mais do deserto, mas isso não importava mais.
Sentiu dores excruciantes por ter utilizado tanto Roha de uma única vez, e viu diante dos próprios olhos o campo se enfraquecer muito. Entretanto, o sorriso animado em seu rosto não cessou.
“Senti você!”
Benten avistou a situação completa e a analisou com rapidez. Uma cratera de 14 quilômetros de diâmetro resultante da explosão de pólvora, com uma profundidade de 700 metros. Tudo no interior do buraco parecia refletir a luz solar. Areia havia virado vidro, e arenito de quartzo cristalizado. Granito e basalto subterrâneos, agora expostos, tornaram-se rochas vítreas. Um estranho prisma gigante e reflexivo.
Um abismo negro estendia-se a sudoeste, efeito da Revelação Apoteótica Completa de Circe — uma região deletada da existência.
Utilizando-se do eletromagnetismo, manipulou a luz vinda dos reflexos para ver o que estava no interior da cratera, mesmo a uma grande distância. Era uma visão pouco clara, como uma miragem quebrada e fragmentada. Zhemo e Higan estavam vivos, mas feridos pela explosão. Circe estava intacta.
Benten não hesitou ao avistar Aurelius.
Com um comando mental, o dragão mecânico inclinou-se em um mergulho suicida na cratera colossal, cortando o céu como um meteoro. O vento reverberava em seus ouvidos, mas ela mal o ouvia. Sua mente já estava três passos à frente, calculando trajetórias.
Então, ela saltou.
Ainda naquela velocidade absurda — tão rápida que o ar atrás dela parecia queimar —, sua mão fechou-se como um terremoto em torno do pescoço de Aurelius. O impacto foi tão brusco que todos os outros ao redor foram arremessados.
Seus dedos cintilavam com energia acumulada, e um novo campo eletromagnético brilhava em suas pontas. Aurelius, ainda surpreso, mal teve tempo de reagir antes que Benten apertasse ainda mais. A eletricidade o paralisou, o dominou.
Enquanto via o sangue escorrer pelo pescoço dele, ela não disse uma palavra.
Não precisava. Seus olhos transmitiam a mensagem: “Você errou. E agora, eu decido o que vem depois.”
As sombras dos outros diversos dragões, ainda em voo, cobriram a região e atraíram o olhar trêmulo do Deus da Fantasia. Assim como uma lâmpada atrairia uma mariposa. O Dharma, o círculo parecido com um timão de navio, girava loucamente acima da cabeça de Benten.
— Decidiu… se intrometer aqui? — Aurelius sorriu, e ela apertou mais forte. — Argh… gosta de guardar segredos também, não é? O que é essa coisa em cima de você?
— Descubra sozinho.
A cada giro, mais Roha Benten regenerava. Tudo que precisava era tocar diretamente alguém tão poderoso quanto ela com sua eletricidade ou atingir com os ataques das invocações mecânicas.
“A defesa de Roha dele não é forte o suficiente para conseguir se mover, afetado por mim. Ter deixado que eu o tocasse foi o único erro que ele não poderia cometer.”
“Preciso recuperar energia e depois mato esse meu aluno mal-educado…”
Um detalhe cruzou sua mente.
“O abismo da Circe… Se ela apagou aquela área da existência, como é que ele está vivo? Ele desviou?”
Benten chamou pelos três outros deuses presentes, pedindo para que explicassem a situação em detalhes. Assim, ela descobriu a razão de tudo estar verde por lá e também como cada um deles resistiu àquela explosão.
Higan havia criado uma barreira de ventos em velocidades extremas, manipulando o fluxo de ar para se separar da onda de choque. Zhemo se alojou no interior de uma invocação sua, um enorme verme. E Circe, ela simplesmente cortou da existência parte da explosão e tudo que a atingiria. Fácil como fazia parecer.
Não sabiam como Aurelius escapara do apagamento existencial, e isso tornava a situação inquietante. O que mais ele poderia estar escondendo? Esse possível segredo era o que lhe fazia continuar tão afrontoso mesmo naquele momento? Questões levantadas e não respondidas.
— Todos nós, assim que eu recuperar minhas forças, vamos usar nossos maiores poderes de uma única vez contra ele. É melhor não darmos chances para ele fazer algo. Não sabemos o que mais a Definição da Fantasia guarda além dessa criação enorme de matéria.
“Quanto Roha ele gastou para gerar tanta pólvora assim?”
“Isso é uma amplificação muito elevada do Elemento Imaginário…”
O Deus da Fantasia permaneceu paralisado no mesmo lugar, sangrando e tendo o sangue evaporado pela eletricidade. Incapaz de se mover, apenas permaneceu olhando para eles. Seus sentimentos não eram identificáveis pela expressão.
Quando o Dharma parou de girar e a energia de Benten havia sido plenamente recuperada, eles notaram algo estranho se aproximando dentro da colossal cratera em que estavam. Uma figura caminhava, cercada por bolhas de sabão que pareciam a acompanhar.
— Aquela seguidora irritante dele ainda está viva — resmungou Circe, erguendo a foice novamente.
Esra Vortiger caminhava arrastando a espada no solo vitrificado, rachando e partindo. Algo havia mudado nela. Tão branco que trespassava aquele verde intenso que tudo dominava, seus cabelos haviam mudado. Um nevado emoldurando uma face confiante.
— Bel estava certo em algo! Reviver é uma sensação estranha! — gritou e levantou a lâmina imaginária com as duas mãos, empunhando com firmeza. — Revelação Apoteótica: Donnerblitz!
A barreira do som foi destroçada e, em um piscar de olhos, Higan viu a ponta da espada dela diante dos seus olhos. Desviou por reflexo, mas teve a bochecha rasgada profundamente, deixando seus dentes expostos na lateral direita do rosto.
— Mais rápida e forte, é? — Higan imbuiu a espada de lâmina serrada com o Elemento Vento, uma aura esverdeada e rodopiante, que agora dançava pela arma. — Vai ser derrotada do mesmo jeito!
O Deus da Vingança sofreu uma série de cortes em poucos segundos, não reagindo a nenhum deles. Suas feridas abertas pela explosão sangravam mais e mais, e ele continuava imóvel. O Roha que cercava seu corpo reduzia a potência dos numerosos ataques. Segurava a espada com a mão direita.
Sua mão livre se moveu em um momento perfeito. Agarrou.
— Hum? — Esra encarou os olhos opacos de Higan, que agora a segurava pelo pulso. — Como você fez isso?
— Ha… Não faria sentido tentar identificar sua posição pelo som, já que ele sempre estaria atrasado… O ar e a vibração ao redor foi a resposta. — Sua espada serrada se incendiou em um escarlate intenso. — Controlo três elementos, vale dizer…
Vortiger tentou recuar, mas a força contra seu braço era grande demais. Sorriu, crendo que, por conta das capacidades de anulação, não seria afetada.
A espada passou por sua cabeça com ventos e chamas vorazes, atravessando como se não houvesse resistência.
Caiu sem vida.
E ergueu-se do chão outra vez, com bolhas de sabão borbulhando ao seu redor. Ainda mais do cabelo estava branco, e sua expressão tornou-se ainda mais animada, uma empolgação pura.
— O que foi isso?! — Pegou a espada imaginária de volta em um movimento rápido.
— Essa minha espada escarlate, ela consegue cortar qualquer coisa que seja feita de carne e osso, não importando qualquer outro fator. — Ele apontou a arma na direção de Aurelius. — Pretendia usá-la contra ele, mas aquela explosão atrasou meus planos…
— Hahaha… não que fosse adiantar com ele. — Esra, enquanto se preparava para atacar novamente, notou que Circe caminhava em sua direção, juntamente de Zhemo. — Três contra um? Vocês não tem vergonha?
— Pra quem pode reviver, parece assustadinha demais — ironizava Circe, cansada de ver o rosto dela.
— Vamos ver o quão mais forte você ficou… — Zhemo segurava uma mão com a outra, apertando conforme andava.
Benten continuava prendendo Aurelius, intensificando ainda mais da corrente elétrica para se certificar de que ele não diria uma única palavra para ativar seus poderes. Com um comando mental, mandou todos os dragões mecânicos descerem ao solo para ajudar contra Esra.
Mais uma etapa do confronto se seguiria.

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