Capítulo 49 - O Plano de Lya Seshat
Nas florestas a sudoeste de Harlon, 20/04/029, às 03:46 — 5 dias antes do ataque à vila.
Era noite e o frio imperava cruel na escuridão de uma floresta densa onde uma fogueira quebrantava as trevas de um céu sem lua. O brilho suave das chamas dançantes tocava uma pequena área, e nesse lugar estava Lya.
A escritora deslizava seu dedo indicador pela lateral do livro fechado, simplesmente tentando se cortar com o papel. Não conseguia, mas permanecia passando o dedo pelas folhas. Seus cabelos laranja, um pouco ressecados pela falta de cuidados recentes, tocavam o tronco de uma árvore na qual ela estava apoiada com as costas, sentada no chão.
O sobretudo de Lya encontrava-se em seu colo, juntamente das luvas brancas que utilizava normalmente. O calor próximo da fogueira deixava desconfortável vestir aquelas coisas. Os olhos azuis, quase ocultados pela grande franja que tinha, vagaram buscando por algum movimento dentre as árvores.
E esse movimento veio, soturno e quieto, como um gato silencioso. Tsukumo, a Semideusa do Amor, aproximava-se a passos largos pela grama baixa, sendo gradualmente mais e mais iluminada pela fogueira. Seus cabelos púrpura e óculos de sol eram chamativos na madrugada.
— Finalmente… — Deixou o livro no colo e segurou os próprios joelhos, abrindo um pequeno sorriso que misturava medo e expectativa.
— Eu nem demorei tanto assim… — Deu dois tapinhas na cabeça dela e se sentou ao lado, cruzando as pernas e levantando os óculos para altura da testa. — Fez o que enquanto me esperava?
— Nada… — Olhou para o dedo, notando uma pequena gota de sangue.
A semideusa retirou de suas vestimentas alguns fragmentos pretos que pareciam vidro. Na palma da mão, mostrou à Lya de perto, com um sorriso confiante no rosto.
— Consegui solidificar a alma da Circe em algo físico, igual acreditava que conseguiria. Agora uma parte dos nossos planos está concluída, só precisamos trazer sua personagem à vida.
— Sim…
Tsukumo colocou a mão no ombro de Lya e a pediu para segurar os fragmentos. Quando os tivesse em mãos, poderia ouvir a voz da deusa e se comunicar com ela. Era hora de explicar o que de fato queriam com Circe.
Com aquilo nas palmas unidas, sentiu uma força opressiva que parecia a observar de todos os lados, das sombras ao redor. A voz da deusa logo veio na mente da escritora, ríspida e indiferente.
— Quem são vocês?
— M-meu nome é Lya Seshat e sou uma ex-membro das Manchas do Sol Branco… — Ela semicerrou os olhos, como que na expectativa de sentir alguma sensação pior, pois aquele era um nome delicado para a deusa.
As Manchas do Sol Branco eram a organização de Aurelius Daath, que Circe logo entendeu que ainda existia naquele tempo. Mesmo após 13 milênios ainda restavam traços daquela deidade no mundo: seu grupo.
Um breve silêncio veio, cortado suavemente pelo som das folhas farfalhando com o vento noturno.
— Teve envolvimento com essa corja…? — A voz de Circe soou arranhada, parecendo prestes a gritar na mente de Lya. — Onde eles estão?! Eu preciso matar cada um deles! Vou exterminar cada um deles… VOU MATAR, MATAR, MATAR!
— E-ei, calma por fa…
— ESTÁ MESMO ME PEDINDO CALMA? FOI ESSA GENTE QUE PROVAVELMENTE TIROU MEU MELHOR AMIGO DE MIM E FOI O LÍDER DESSA ORGANIZAÇÃO INFERNAL QUE ME FEZ PASSAR 13 MIL ANOS PRESA NAQUELA CRATERA SOLITÁRIA! EU NÃO QUERO ME ACALMAR, EU NÃO VOU ME ACALMAR!
Os sentimentos negativos e tão genuínos alcançaram e tocaram o coração de Lya. Sentia com clareza o quão pesada era sua revolta, os fragmentos deixavam-na compreender o que ela sofria.
— Me desculpa… — respondeu com a voz trêmula, fechando os olhos.
Tsukumo, que não conseguia ouvir Circe, perguntou: — Ela está brigando com você?
— É…
— Bom… melhor explicar tudo logo. — A semideusa começou a brincar com o ioiô que sempre carregava por aí, esperando que Lya resolvesse tudo sozinha.
— Fala logo o que você quer — exigiu Circe.
Os olhos azuis de Lya se abriram outra vez, focando-se nos fragmentos. Tinha receio de falar aquelas palavras, mas as colocou para fora com o máximo de sua sinceridade:
— Eu conheço todo o plano de Aurelius e o que ele pretende fazer agora! Mas por favor, por favor… escuta tudo que tenho para te dizer. E-eu já disse, mas sou Lya Seshat. — Sua voz embargou antes mesmo de chegar na parte mais crítica, parecia querer chorar. — Eu trabalhei nas Manchas do Sol Branco, a organização de Aurelius, por quase 14 anos…
Após um longo suspiro, continuou: — Eu fui sequestrada por Belphegor Nerose ainda quando era criança por causa dos meus poderes… Consigo afetar a realidade de algumas formas com os textos que escrevo, e isso o interessou profundamente. Fui usada nos planos deles e me forçaram a matar milhares de pessoas inocentes contra minha vontade… Honestamente, eu preferia ter me… matado naquela época para evitar trazer tantas dores e horrores ao mundo assim, mas não tive coragem. Na verdade… Na verdade eu nem sei dizer se estava pensando em terminar com minha vida pelo bem dos outros ou por temer as consequências dos meus atos. Tenho medo de acabar olhando nos olhos de alguém que fiz perder uma pessoa importante, sinto que isso me destruiria ainda mais.
Prosseguiu: — Eu pensei em fugir e contar tudo para os outros, mas foi aí que eu descobri algo. A organização tem uma deusa, Siralia Okeron, que é capaz de observar as memórias de todas as pessoas do mundo a cada 10 minutos. E ela… soube que eu planejei trair a organização…
Lya colocou todos os fragmentos na mão esquerda e levantou vagarosamente a camisa branca que utilizava com a mão livre. Uma série de cicatrizes enormes tomava todo seu torso. Pareciam de facadas, queimaduras e produtos químicos.
Ela soltou uma risada tremida: — É horrível, né? Fizeram isso comigo por mais de duas semanas sem parar… Só acabou quando a Siralia entendeu que eu não tinha mais intenção de os trair. Passei mais anos, mais anos sendo uma covarde e só obedecendo de cabeça baixa tudo de horrível que me mandavam fazer. Não tive uma vida de verdade, tudo que fiz desde a infância foi cometer mais atos hediondos do que eu poderia me lembrar.
— Lya… — A voz de Circe ressoou em sua cabeça, sem um pingo da agressividade de antes.
— Eu só quero sua ajuda… Siralia adormeceu há alguns anos e está prestes a acordar! Nesses últimos tempos, essa minha vontade de fugir retornou e me aproveitei do descanso dela para tentar acabar com tudo isso que eles estão fazendo! Eu sabia, eu sabia que ia ser morta por ter pensado de novo em ser livre! EU ME CONDENEI A MORTE POR SONHAR EM VIVER MINHA VIDA! Então, um ano atrás, decidi que precisava fazer isso ser útil e corri atrás de Benten para contar tudo que eu sabia sobre isso antes que Siralia acordasse. Ela sabe de Aurelius, sabe de tudo que está acontecendo! Foi então que a Tsukumo, uma amiga dela, decidiu me ajudar depois de ouvir minha proposta de trazer você de volta à vida!
Mesmo com um nó na garganta, seguiu: — Aurelius no fim daquela guerra foi selado por Quilionodora e Benten, mas ele conseguiu se apagar das memórias de quase todos ao fim… por isso praticamente ninguém lembra do final da guerra. Dentre as deidades, só Benten e Quilionodora agora, na atualidade, sabem quem é Aurelius. O dragão reteve as memórias de alguma forma.
— Então foi isso que aconteceu na guerra… — A voz de Circe soava cansada. — Eu tentei matar esse desgraçado e falhei… muitos devem ter morrido por minha culpa, não é?
— Humm… Aurelius naquela época matou mais de 70 deuses sozinho… a quantidade atual é pequena comparada com a daquela época, não restou quase ninguém do passado. Mas não adianta se culpar por coisas tão fora do seu controle. Acho que essa é uma lição difícil que aprendi: nem sempre vamos fazer nosso melhor.
— Seshat, eu aceito te ajudar com essa traição contra Aurelius! Tenho muitos assuntos para resolver com essa doença que se recusa a sumir desse mundo! Vou matá-lo, não importando o que precise ser feito para isso! — declarou a deusa. — Me diga: qual é o plano dele?
— De algum modo que não consegui descobrir, o Deus da Fantasia se alojou nos corpos de duas pessoas: Verion Velgo e Yunneh Velgo. Aurelius precisa que esses dois fiquem fortes até um certo ponto e, nesse momento, ele tomará posse do corpo de um deles para reencarnar completamente nesse mundo. E a forma de fazê-los ficarem mais fortes rapidamente é infligir sofrimento a eles… Aurelius quer que a organização realmente os traumatize de formas horríveis para fazer o Roha se fortalecer. Planejam fazer de suas vidas um inferno… por isso até mesmo mataram o pai deles.
— Argh… isso é definitivamente algo que ele faria.
— Se Aurelius voltar, esse mundo com toda certeza vai encontrar seu fim. Ele está muito mais forte do que você se lembra, ele é uma ameaça existencial. Não podemos deixar que ele retorne. Caso isso ocorra, o apocalipse é uma certeza. Quero que você impeça isso…
— Como vocês planejam me trazer de volta? Não consegui entender como isso seria possível. — O questionamento de Circe trouxe um silêncio repentino.
Enquanto a madeira na fogueira estalava com as chamas que a consumiam, Lya sorriu docemente. Lágrimas passaram a descer por seu rosto, mais frias que o ar gélido daquela madrugada.
— M-meu poder é afetar a realidade com meus textos… Eu sempre pensei sobre uma das minhas personagens, a Lyria! Escrevi a história dela na época após ser torturada, então por isso a história é triste pra caramba! — Seu sorriso aumentou. — Já que eu quero tanto morrer e não posso viver minha vida, quero que pelo menos ela conheça a felicidade que nunca pude ter! Vou me destruir e me apagar desse mundo para trazê-la até aqui… e você habitará no corpo dela…
— Ei… você não deveria aceitar a morte tão fácil assim…
— Eu já machuquei gente demais, já me machuquei demais. Fui egoísta por não morrer naquela época em que me usavam de arma. Agora quero ser egoísta e descartar tudo para que minha criação viva uma existência plena. Só preciso sumir e vai ficar tudo bem. A Lyria merece sorrir e amar alguém, viver de verdade, fora do meu livro.
Circe naquele momento sabia que o destino dela seria o Coração da Inexistência, assim que morresse só haveria um sofrimento ainda pior. Ela ignorou essa dúvida, nem mesmo quis pensar e fingiu para si mesma que estaria tudo bem.
Por mais que a deusa visse a utilidade no plano final por trás do Coração da Inexistência, ainda tinha fagulhas de dúvida quando sabia que o destino de alguém com qual se afeiçoou era aquele lugar. No fundo, odiava que todos fossem para aquele sofrimento eterno, mas aceitou isso por tanto tempo que não sabia mais como rejeitar o ideal de seu criador.
— Tudo bem… Vou apoiar essa ideia, por mais estranha que ela me soe.
— Ahh… não precisa ter medo de ser cruel ou truculenta com a Lyria para resolver a situação. Mate os Velgo antes da reencarnação de Aurelius e impeça que o mundo acabe. Depois só deixe ela ser feliz e pare de controlar o corpo dela. Esse é meu último desejo em vida.
Ela abaixou a cabeça e disse: — Siralia logo acordará e tudo se tornará um caos… é mesquinho da minha parte dizer isso, mas fico feliz em saber que não estarei aqui para presenciar. No fim… só quero que a Lyria viva a vida que eu nunca consegui viver.

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